Português

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Análise de "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil

             O poema que serviu de base ao tema musical foi composto em 1973 pelos compositores e intérpretes brasileiros Chico Buarque e Gilberto Gil, para ser apresentado no programa “Phono 73”, que divulgava os trabalhos, em duplas, dos maiores artistas agregados à editora Phonogram.
 
            A canção, graças ao seu conteúdo profundamente crítico da situação política brasileira da época, acabou por ser lançada apenas em 1978, tornando-se um dos maiores hinos anti-ditadura, inscrevendo-se, portanto, no campo da música de protesto.
 
            O tema do poema é a denúncia da repressão, do autoritarismo e da violência que caracterizaram a ditadura no Brasil.

            A composição abre com uma referência bíblica a São Marcos: “Pai, se queres, afasta de ruim este cálice”. Esta citação bíblica remete-nos para o calvário de Jesus Cristo, marcado pela perseguição, pelo sofrimento e pela traição de que foi vítima. Por outro lado, ela contém um pedido de um filho dirigido ao seu pai: o afastamento de si de um cálice. No entanto, tendo em conta o contexto político brasileiro de então e a semelhança de pronúncia entre o nome «cálice» e a forma verbal «cale-se» (semelhança essa acentuada pela fonética do português do Brasil), é possível fazer outra leitura desta passagem. Assim, o sujeito poético pede ao pai que afaste de si esse «cale-se», isto é, implora-lhe que afaste a censura e a violência, dado que o cálice contém «vinho tinto de sangue». Deste modo, o sujeito lírico estabelece uma analogia entre a paixão (o sofrimento) de Cristo e o do povo brasileiro, sujeito a um regime violento: na Bíblia, o cálice continha o sangue de Jesus; no poema, o sangue é o das vítimas do regime.
            Na primeira estrofe, o «eu» interroga-se como será possível beber essa «bebida amarga», ou seja, como será possível aceitar a amargura, a dor, o trabalho árduo e mal remunerado, como se fossem coisas normais. Além disso, tudo isto é obrigado a aceitar calado, em silêncio, uma referência clara à opressão e à ausência de liberdade de expressão. De acordo com o próprio Chico Buarque, a «bebida amarga» é Fernet, uma bebida alcoólica italiana que o cantor e compositor costumava beber. Resta-lhe o peito, isto é, o que ele sente relativamente à situação e, quiçá, a coragem e determinação para resistir.
            O sujeito poético continua a socorrer-se da linguagem metafórica de cariz religioso, afirmando-se «filho da santa», subentendendo-se que se refere à pátria, entendida pelo regime político como inquestionável, à semelhança de um dogma bíblico. Porém, preferiria ser «filho da outra». Tendo em conta a sequência rimática, pode deduzir-se que o termo a usar seria provavelmente «puta», contudo, por causa da censura, os autores terão optado por uma linguagem mais «suave». O «eu» deseja outra realidade, caracterizada pela inexistência da mentira, de autoritarismo e de violência.
            O início da segunda estrofe alude a um método usado pela polícia militar: invadir, durante a noite, as casas das pessoas, arranca-las das suas camas, prender umas e fazer desaparecer outras. A consciência deste facto dilacera o sujeito poético, por acordar em silêncio tendo consciência da violência que ocorria durante a noite e que, eventualmente, também o atingiria («Se na calada da noite eu me dano»).
            O sujeito lírico deseja soltar um «grito desumano» contra a situação, procurando, assim, ser ouvido e combate-la. O silêncio deixa-o atordoado, impotente, mas, apesar disso, conserva-se atento, pronto para agir se surgir uma oportunidade. Entretanto, mantém-se passivo na arquibancada, esperando que o «monstro da lagoa» surja. A expressão «monstro da lagoa» remete-nos para o imaginário dos contos infantis, simbolizando o mal que nos vem aterrorizar e que devemos temer. Neste sentido, a expressão poderá ser entendida como uma metáfora da ditadura, do poder repressivo que estava escondido, mas pronto para atacar a qualquer momento. Por outro lado, ela designava também os corpos de pessoas desaparecidas que apareciam, ocasionalmente, a boiar nas águas de um rio ou do mar, vítimas do regime ditatorial.
            A terceira estrofe abre com nova metáfora – a da «porca gorda» –, que representa o governo ditatorial e corrupto, que «já não anda», isto é, não funciona mais. A gordura remete para o pecado da gula, ou seja, para a ganância que dominava a «porca», o governo, que, de tão gorda(o), já não se consegue mexer. A «faca», nova metáfora, que simboliza a violência e a brutalidade, já não «corta» por ter sido tão usada, ou seja, está a perder força, eficácia. A alusão ao facto de ter sido muito usada sugere o grau de violência que tem sido praticada sobre as vítimas pelas entidades governamentais e policiais.
            A referência à dificuldade de abrir a porta representa o desejo de liberdade do «eu», que permanece silenciado, com «essa palavra presa na garganta». De seguida, questiona-se de que adianta «ter boa vontade», numa referência à passagem bíblica «Paz na terra aos homens de boa vontade», sugerindo que não tem paz. De que adianta ter boa vontade para com o governo se a paz não vem? Daí vem o «pileque homérico»: tudo estava tão fora do lugar que é como se o mundo estivesse todo bêbedo.
            Perante a impotência e a repressão, mantém-se, no entanto, o pensamento crítico, mesmo que calado, representado pela «cuca / Dos bêbedos do centro da cidade», isto é, as pessoas rebeldes e desajustadas que procuram sobreviver e continuam a desejar e a lutar por uma vida melhor.
            A estrofe seguinte contrasta com as anteriores, porque introduz a ideia da esperança, através da possibilidade de o mundo não ser pequeno, ou seja, de o mundo não se limitar àquilo que o sujeito poético conhece. Além disso, talvez a vida não seja um facto consumado, isto é, talvez não tenha de ser tão dolorosa e a ditadura não seja uma circunstância irremediável, eterna.
            Numa atitude de rebeldia, o «eu» reclama o direito a ser dono da sua vida e a escolher o que fazer com ela, de acordo com os seus desejos e regras, sem ter de obedecer a ordens e regras de outrem. É isso que significam os versos «Quero inventar o meu próprio pecado / Quero morrer do meu próprio veneno». Para que tal se concretize, é necessário «perder de vez tua cabeça», ou seja, é necessário derrubar o poder opressivo e ditatorial. O sujeito poético deseja ser livre e reprogramar-se de tudo aquilo que a sociedade conservadora lhe inculcou e deixar de estar subjugado a ela. «perder teu juízo».
            Os dois versos finais fazem referência a métodos de tortura comuns na época: a inalação de óleo diesel por parte das pessoas que eram presas. Além disso, apontam para uma tática de resistência: fingir perder os sentidos, para que a tortura fosse interrompida.
 

Análise de "Eu cantei já, e agora vou chorando"

 
Introdução:
                O soneto é da autoria de Luís de Camões, poeta renascentista português que viveu, provavelmente, entre 1524 ou 1525 e 1580, sendo um dos cânones da literatura portuguesa e insigne na cultura universal. Este poema insere-se na chamada corrente renascentista, visto assumir a forma de um soneto, composição poética importada de Itália por Sá de Miranda, após a sua passagem pelo país. É, portanto, um exemplo da chamada medida nova.
 
Desenvolvimento:
. Tema
 
. Assunto
 
 
 
. Estrutura externa
 
 
 
 
 
 

 

 

. Estrutura interna

– 1.ª parte

 
– 2.ª parte
 
 
 
. Contraste passado / presente
 
 
. Estado de espírito do sujeito e suas causas
 
. Recursos expressivos
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 














 
Conclusão

 

                Neste texto, é abordado o tema do infortúnio e o assunto compreende a saudade por um tempo passado que, comparativamente ao presente, embora enganador, era preferível à desolação que o rodeia e à implacabilidade e inexorabilidade do destino.

                O poema é constituído por duas quadras e dois tercetos (um soneto), num total de catorze versos decassilábicos heroicos, visto que são acentuados na sexta e décima sílabas (Eu/can/tei/já/e a/go/ra/vou/cho/ran), com rima interpolada e emparelhada, de acordo com o seguinte esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE. Em todos os versos encontra-se rima grave ou feminina (“chorando”/”confiando”), consoante e incompleta (“confiado”/”passado”), à exceção dos versos 9 e 12, que possuem rima completa. Nos grupos de versos 1 e 4, 2 e 3, 10 e 13, 11 e 14, a rima é pobre, dado que as palavras rimantes pertencem à mesma classe gramatical (“chorando”/”criando”), enquanto que nos restantes é rica, pois rimam palavras de classes diferentes (“quando”/”julgando”). Por outro lado, nos versos 11 e 14 existe rima imperfeita.

                O soneto pode dividir-se em duas partes. Na primeira, correspondente às duas quadras e ao primeiro terceto, o sujeito lírico lamenta o passado ilusório e enganador que o destino o obrigou a viver, o que acentua a precariedade do momento presente. No último terceto, a segunda parte, o sujeito poético, através do recurso a duas interrogações retóricas nos versos 12 e 14, responsabiliza o destino que, sendo inimigo e implacável, se sobrepõe aos erros de uns e/ou à falsidade de outros, tornando inútil qualquer esperança.

                O sujeito poético começa por estabelecer uma relação antitética entre o passado e o presente, salientando a alegria experimentada em contraste com a tristeza do presente (“Eu cantei já e agora vou chorando” – v. 1). Note-se a abundância de vocábulos de cariz negativo, tais como “chorando” (v. 1), “lágrimas” (v. 4), “fui enganado” (v. 6), “triste” (v. 7), “som de ferros” (v. 11), “mente” (v. 12, “culpa” (v. 13), “injusta”, “erros” (v. 14), que exprimem a sua dor e desalento presentes. Por outro lado, as diversas antíteses (“cantei”/”vou chorando” – v. 1; “canto”/”lágrimas” – vv. 3 e 4; “triste (…) presente” – v. 7 / “passado (…) ledo” – v. 8) confirmam o contraste existente entre a felicidade passada e a tristeza presente vivido pelo sujeito lírico. Este chega mesmo a revelar a consciencialização do fator que contribuiu para o seu desencanto e a sua desilusão: a traição de que foi vítima por parte de alguém, como se pode comprovar pelas expressões seguintes: “(…) fui nisso enganado” – v. 6; “Fizeram-me cantar, manhosamente” – v. 9; “(…) tudo mente” – v. 12. Ao tomar consciência disto, o sujeito põe em causa a aparente felicidade anterior, considerando-a um prenúncio da desgraça que está a viver (“Parecer que no canto já passado / Se estavam minhas lágrimas criando” – vv. 3-4), acentuando, deste modo, o momento presente como muito negativo e infeliz (“É tão triste este meu presente estado” – v. 7). O eu diz-se vítima da alegria tranquila e ilusória que conheceu [“(…) cantei tão confiado” – v. 2; “Fizeram-me cantar (…) / confianças” – vv. 9-10] de ter , a qual não era senão um esboço, um indício do seu destino de desventura, que metaforicamente identifica com prisão, com sofrimento, já que foi esse o resultado que obteve: “Cantava, mas já era ao som dos ferros” – v. 11.

                O sujeito, tal como foi anteriormente referido, realça o tempo passado, predominando as formas verbais no pretérito perfeito (vv. 1, 2, 5, 6, 9) e imperfeito (vv. 4 e 11), o advérbio de tempo “já” (vv. 1, 3, 11), a forma verbal repetida “cantei” (vv. 1, 2, 5), bem como outras formas do mesmo verbo (vv. 9, 11) e outros vocábulos pertencentes ao mesmo campo semântico (“canto” – v. 3), de modo a salientar a existência de uma situação calma e tranquila que foi alterada contra a sua vontade. Deste modo, o sujeito sente-se objeto de manipulação de uma entidade superior [“(…) a Fortuna injusta (…)” – v. 14], que, para além de ter modificado a sua vida e o seu estado de espírito, atuou de forma camuflada, deixando-o viver na ilusão, até que fez desmoronar a encenação e contribuiu para o estado presente do eu. Note-se a importância da conjunção coordenativa adversativa “mas” (vv. 5, 10, 11), com o intuito de reforçar o contraste entre o comportamento que o eu assumia e as suas causas reais: não sabe concretizar a real época da sua felicidade, desconhecia a presença nefasta do destino nos seus atos. É de salientar igualmente que o tempo passado, a felicidade, ocorreu num momento pontual, concreto, definido, para o que contribui o pretérito perfeito, reforçando o seu caráter efémero, enquanto que o presente, marcado pelo sofrimento e pela dor, se reveste de um cariz durativo, que é conseguido através da conjugação perifrástica, fazendo pressupor que a infelicidade, a tristeza são sentidas com maior intensidade: “vou chorando” (v. 1); “estavam (…) criando” (v. 4); “estou julgando” (v. 8). O pessimismo e o dramatismo do momento presente vivido pelo sujeito, resultado de um passado fictício, encontram-se sintetizados no verso 12 quando o eu afirma ”(…) tudo mente”, o que vem corroborara existência de uma ilusão, de um engano vividos, fruto da atuação de uma força superior, manipuladora.

                Temas como este, onde sobressaem a fatalidade, a desgraça, a infelicidade, a desilusão, são frequentes na lírica camoniana, quer se refiram à força do Destino sobre o próprio sujeito poético, quer à influência exercida pela mulher amada.

 

 

O mito de Orfeu e Eurídice - Brendan Pelsue

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Análise da esparsa "Os bons vi sempre passar"


Assunto: para o sujeito poético, não existe justiça humana e os valores éticos e morais estão invertidos, pois os maus recém prémios e galardões diversos, enquanto os bons são severamente castigados. Ao dar-se conta dessa injustiça, o sujeito faz-se mau, na esperança de também ser premiado, de obter as vantagens e benefícios que observou nos outros, porém para ele logo a justiça funcionou e foi castigado.
 
 
Tema: o desconcerto / as injustiças sociais (abordado de forma jocosa).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª hipótese
 
1.ª parte (5 versos iniciais) – Observação: o «eu» foi observando («vi»), ao longo do tempo («sempre»), que os bons eram castigados e os maus premiados.
 
2.ª parte (vv. 6-8) – Estratégia e consequências: como resultado da sua observação e perante a inversão de valores e os exemplos de injustiça, o «eu» decide ser mau, porque entende ser a melhor forma de alcançar «o bem tão mal ordenado», mas acaba por ser castigado.
 
3.ª parte (vv. 9-10) – Conclusão: o «eu» conclui, de forma irónica, que, afinal, só para si «anda o mundo concertado», dado que só ele foi castigado quando foi mau.
 
 
2.ª hipótese
 
1.ª parte (vv. 1-5) – Situação genérica: o «eu» constata a injustiça no mundo, pois os maus são premiados e os bons são castigados.
 
2.ª parte (vv. 6-10) – Situação pessoal: o «eu» confessa que decidiu mudar o seu comportamento e tornar-se mau, no entanto foi castigado, já que para si o mundo está «concertado».
 
▪ Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o sujeito poético acaba por não saber como se conduzir, dada a injustiça e a arbitrariedade que reinam no mundo: se for bom, arrisca-se a passar «graves tormentos»; se for mau, será castigado. Assim, estará sempre à mercê dos caprichos da desordem de um mundo que parece persegui-lo pessoalmente.
 
▪ O poema procura denunciar a inversão de valores que caracteriza a sociedade: os bons são castigados e os maus são recompensados, como se o mundo andasse às avessas.
 
▪ O tema mantém-se atual, visto que ainda hoje deparamos com situações que exemplificam que nem sempre quem tem mérito é recompensado, muito pelo contrário.
 
 
Retrato / Caracterização do sujeito poético
 
            Perante o desconcerto e a injustiça que caracterizam o mundo, o sujeito poético mostra-se admirado e espantado com o que observa. Por outro lado, manifesta toda a sua desilusão, desencanto e tristeza com a injustiça e a arbitrariedade, quando verifica que, quer seja bom, quer seja mau, o mundo castiga-o sempre, o que gera nele pessimismo, frustração e impotência para alterar o estado de coisas e a sua vida.
            Além disso, o «eu» lírico apresenta-se como uma exceção, visto que apenas para si «anda o mundo concertado», ou seja, só ele foi castigado quando praticou o mal. A sua observação das coisas, a sua experiência de vida levou-o a acreditar que deveria ser premiado (como os demais que praticaram o mal), no entanto não foi isso que sucedeu.
 

Intertextualidade
 
• Esta esparsa aborda a questão do desconcerto do mundo, um tema que atravessa a literatura de forma transversal.
 
• Assim, pode relacionar com a cantiga de amigo, nomeadamente com o exemplo da donzela que ama sinceramente o seu amigo, mas não é correspondido.
 
• Por outro lado, pode associar-se também à cantiga de escárnio e maldizer, havendo diversos textos que abordam o tema de forma idêntica, como, por exemplo, aqueles que denunciam os elogios exagerados e artificiais da figura da mulher.
 
 
Análise formal
 
Classificação: esparsa.
O poema é constituído por uma única estrofe de 10 versos, sendo designado, por isso, décima. De facto, a esparsa é uma composição poética de uma só estrofe na qual, de forma breve, se apresenta um pensamento artisticamente construído. Foi um tipo de poema muito cultivado na segunda metade do século XV e no século XVI, tanto em Portugal como em Espanha.
 
Métrica: todos os versos têm 7 sílabas métricas – redondilha maior.
 
Rima:
» esquema rimático: abaabcddcd
» rima cruzada, emparelhada e interpolada
» consoante (“passar”/“espantar”)
» pobre (“passar”/”espantar”) e rica (“assim”/”mim”)
» aguda (“passar”/”espantar”) e grave (“tormentos”/”contentamentos”)
A palavra rimante «tormentos» associa-se ao verbo «passar» e ao adjetivo «graves», todos com conotações negativas e referentes aos bons. Por outro lado, «tormentos» relaciona-se com o verbo «nadar» e com o nome «mar», que sugerem a felicidade, a descontração e a liberdade que esperam os maus.
 
 
Recursos expressivos
 
Antíteses (bem/mal; bons/maus; graves tormentos/mar de contentamentos): os «bons» passam «graves tormentos», enquanto os «maus» vivem num «mar de contentamentos», ou seja, o mundo está desconcertado e dividido em dois grandes grupos, é injusto, dado que os bons sofrem e são punidos e os maus são premiados, por isso vivem felizes e tranquilos. Estas antíteses, por outro lado, realçam os contrastes existentes no poema, nomeadamente entre as consequências dos atos dos bons (penalização) e dos maus (recompensa) em termos gerais e entre as consequências dos maus atos do sujeito poético (penalização) e as dos atos dos outros (recompensa).
 
Repetição da expressão «vi sempre»: traduz a ideia de que o sujeito poético observou, pessoalmente, os acontecimentos ao longo do tempo, isto é, é testemunha da situação. Por outro lado, a repetição sublinha a recorrência desse facto.
 
Metáfora «nadar em mar de contentamentos»: exprime a felicidade e a despreocupação dos «maus» através da ideia de grandeza associada ao mar, bem como a enormidade das vantagens de que beneficiam, e acentua o espanto e a estranheza do sujeito poético perante a injustiça que grassa no mundo.
 
Aliteração, por exemplo, em /s/ (verso 1).
 
Ironia presente nos dois versos finais do poema: traduz a constatação de que o mundo só anda concertado para si.
 
Forma verbal «anda», no presente do indicativo, sugere a intemporalidade da inversão de valores que caracteriza o mundo e da arbitrariedade de que é vítima.
 
Conectores:
▪ a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 8) marca a oposição entre o castigo do sujeito poético e a impunidade dos outros;
▪ a locução «Assi que» introduz a conclusão do sujeito poético: apenas para si existe justiça e ética no mundo.
 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

O mito de Prometeu - Iseult Gillespie

Análise do poema "Erros meus, má fortuna, amor ardente"

 Assunto: balanço/reflexão do sujeito poético da/sobre a sua vida, dominada pela conjura dos erros, da fortuna e do amor, que o tornaram infeliz.
 
 
Tema: o desespero do sujeito poético.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-12) – Num discurso autobiográfico, o sujeito poético confessa que viveu uma vida marcada pelo sofrimento, devido aos erros cometidos, à falta de sorte / ao destino e ao Amor.
 
2.ª parte (vv. 13-14) – Conclusão do balanço de vida, numa expressão de raiva e desespero intensificados pelo desejo de vingança.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
▪ O «eu» começa por identificar os fatores responsáveis pela sua perdição, pela vida infeliz e pelo sofrimento: os erros próprios, a má fortuna e o amor ardente.
 
▪ Os versos 3 e 4 clarificam quem os erros cometidos pelo «eu» e a «má fortuna» foram seus inimigos ao longo da vida e conjuraram/conspiraram contra si, impedindo-o de ser feliz. Por outro lado, acrescenta que o Amor era suficiente para provocar a sua perdição, para o fazer infeliz – constituindo, pois, o principal responsável.
 
▪ Na segunda estrofe, o sujeito lírico esclarece que o passado interfere e condiciona o modo como o presente é vivido. Assim, os momentos difíceis, as “cousas que passaram”, provocaram tão grande sofrimento que ainda estão bem presentes no seu espírito. Por isso, o passado ensinou-lhe uma lição: aprendeu a não desejar ser feliz, desistiu de procurar ser feliz (“Que já as magoadas iras me ensinaram / A não querer já nunca ser contente.” – vv. 7-8), a fim de evitar mais sofrimento. Assim, no presente sente-se condicionado pelas memórias tristes do passado, que impedem a felicidade e o sossego no presente.
 
▪ No primeiro terceto, de forma amargurada, o «eu» confessa que também é culpado pelo seu infortúnio, pelos sucessivos erros que cometeu, daí que a sorte o não tenha bafejado. Por isso, foi castigado pela Fortuna / Destino, provocando-lhe grandes desilusões (“As minhas mal fundadas esperanças.”). Assim sendo, a sua infelicidade foi resultado dos seus erros sucessivos e das punições do Destino, de quem foi vítima.
 
▪ No verso 12, considera que o Amor lhe provocou “breves enganos”: as suas experiências amorosas constituíram breves ilusões (experiências amorosas curtas e enganadoras) e nunca foram a verdadeira vivência do amor.
 
▪ Nos dois versos finais, o sujeito poético manifesta um desejo impossível de realizar: ver alguém puni-lo por toda a culpa que teve na sua vida infeliz. O «eu» sente-se vítima e deseja vingar-se. Trata-se de mais um momento de hipertrofia do «eu», de excessivo egocentrismo.


Estado de espírito do sujeito poético
 
            O estado de espírito do sujeito poético é marcado por diversos sentimentos, tendo em conta o seu percurso de vida:
▪ amargura (v. 1);
▪ perseguição (v. 2);
▪ dor (v. 6);
▪ exasperação e revolta (vv. 7-8);
▪ mágoa (v. 7);
▪ desilusão e sem esperança (v. 8);
▪ desencanto (v. 8);
▪ amargura (vv. 8-9);
▪ culpa (vv. 9-10);
▪ frustração (v. 12);
▪ cólera (v. 12);
▪ desejo de vingança (vv. 13-14).
 
 
Tom do poema
 
            No poema, predomina o tom confessional, melancólico e de ira.
            Este tom adequa-se a este soneto, no qual o «eu» reflete sobre a sua existência, marcada pelo sofrimento e pela infelicidade, e exprime toda a sua revolta perante o que lhe sucedeu.
 
 

Recursos expressivos
 
Interjeição + exclamação “Oh!” (v. 13): enfatiza o tom emotivo com que o sujeito poético manifesta o seu desespero.

Personificações:
. vv. 1-2: identifica as causas da perdição do sujeito poético (os erros próprios, a “má fortuna” e o amor ardente, que se conjuraram para o perder).
 
• Predomínio da 1.ª pessoa: uso das formas verbais (“passei”), dos pronomes pessoais (“mim”), dos determinantes possessivos (“meus”) de 1.ª pessoa determinam o caráter autobiográfico do soneto, que consiste numa reflexão do sujeito poético sobre o seu percurso de vida.
 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Análise do poema "O dia em que eu nasci, moura e pereça"


 Assunto: o sujeito amaldiçoa o dia em que nasceu e manifesta o desejo de que não volte a repetir-se.
 
 
Temas:

- a ligação do nascimento e da morte (verso 1);

- as relações ambíguas com a mãe (verso 8);

- a visão de si próprio com um ser desmesurado, mesmo monstruoso (versos 6 e 7);

- a sensação de desgraça maior (versos 13 e 14).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (2 quadras e 1.º terceto): o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu, desejando que ele nunca mais volte, e recria um ambiente monstruoso, apocalíptico, que deseja que se materialize, caso o dia do seu nascimento se repita.
 
2.ª parte (2.º terceto): justificação do desejo – o «eu» considera-se vítima do destino, que começou logo no dia em que nasceu: “[…] este dia deitou ao mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
• No verso 1, o sujeito poético manifesta um desejo: que o dia em que nasceu desapareça e que não se repita.
 
• Caso esse desejo não se cumpra e ele se repita, deseja que seja um dia horrível, monstruoso.
 
• Assim, enumera uma série de maldições que deverão ocorrer caso [o dia em que nasceu] se repita:

1.ª) Deseja que haja um eclipse, que o sol desapareça e seja um dia de escuridão total.

2.ª) Deseja que o mundo mostre sinais de que vai acabar.

3.ª) Deseja que nasçam monstros.

4.ª) Deseja que chova sangue.

5.ª) Deseja que a mãe não conheça o próprio filho.

Em suma, o «eu» lírico espera que esse dia seja de escuridão total («A luz lhe falte»), tenebroso e monstruoso («nasçam-lhe monstros») e de alienação («a mãe ao próprio filho não conheça»). O cenário que constrói é de violência, sofrimento, morte e terror geral.
 
Estado de espírito do sujeito poético: ao manifestar o desejo de que o dia do seu nascimento não se volte a repetir, o «eu» expressa fúria e revolta, bem como desilusão, caso tal não suceda. O seu tom é exaltado e de fúria, em consonância com o seu estado de revolta e desespero. O «eu» é um ser magoado, mas sem medo. Apresenta-se como um ser de exceção, uma vez que a desgraça o acompanha desde que nasceu. A sua excecionalidade culmina com a hipérbole presente nos dois versos finais do soneto: ele é o ser mais desgraçado que o mundo já viu, o que o deixa irado e revoltado.
 
• O primeiro terceto reflete e a reação das pessoas ao ambiente tenebroso desejado pelo sujeito poético: espanto (por desconhecerem a causa de tal ambiente catastrófico), angústia, medo, pavor, desespero, perante a destruição desejada pelo «eu». A enumeração desta terceira estrofe realça a antevisão que o sujeito lírico tem do ambiente de horror que marcará o dia do seu nascimento, caso ele volte a repetir-se.
 
• No segundo terceto, o «eu» lírico justifica o amaldiçoamento do dia do seu nascimento: dirige-se à «gente temerosa», incentivando-o a não estranhar («não te espantes» - v. 12) o desejo, visto que esse dia trouxe ao mundo o mais desgraçado e infeliz dos seres humanos.
 
Perceção do destino: no último terceto, o sujeito poético conclui que, desde o dia em que nasceu, nunca foi feliz. Assim, refletindo sobre a sua vida, considera-se uma vítima do poder destruidor do destino, que o persegue desde o seu nascimento, sendo, por isso, considerado o causador do seu infortúnio. Em suma, o destino, para o sujeito lírico, o destino constitui:
▪ a causa do seu infortúnio, da sua vida desgraçada;
▪ o elemento com poder destruidor que o persegue;
▪ o obstáculo à sua felicidade.
 
• Representação e autoimagem do «eu»: no poema, o «eu» apresenta-se como um ser «especial», infeliz e egocêntrico. O seu egocentrismo reside no facto de ele considerar que pode impor aos outros a sua tragédia pessoal, arrastando-os para um cenário imaginário de terror e cataclismo.
 
 
Recursos expressivos
 
▪ Ao nível fónico, estamos na presença de um soneto, constituído por duas quadras e dois tercetos, em versos decassilábicos, com rima interpolada e emparelhada nas quadras (abba) e interpolada nos tercetos (cde/cde), consoante (“pereça”/”padeça”), grave (“pereça”/”padeça”) e aguda (“dar”/”tornar”), pobre (“dar”/”tornar”) e rica (“acabar”/”ar”). A métrica, como atrás foi referido, oscila entre o decassílabo heroico e sáfico, o último.
 
▪ Ao nível morfossintático e ao nível semântico, os recursos utilizados estão ao serviço da expressão do desespero do sujeito poético, amaldiçoando-o o dia em que nasceu, pedindo o seu desaparecimento e, caso o seu desejo não seja correspondido, traçando um quadro apocalíptico que gostaria de ver materializar-se nessa data.
Há, em suma, um tom de exagero da desgraça do sujeito, uma «hipertrofia do eu», que pretende impor à própria natureza e à «gente temerosa» a enormidade da sua tragédia, de uma forma violenta: eclipse, monstros, chuva de sangue, lágrimas, o medo, a destruição do mundo.
Esta hipertrofia do «eu», conjugada com uma grande dimensão hiperbólica da afirmação da excecionalidade individual na desgraça, exprime-se através dos seguintes recursos:

. Pleonasmo: «moura e pereça» – exprime o desejo do desaparecimento do dia em que nasceu.

. Inversão: «Eclipse nesse passo o Sol padeça»; «A mãe ao próprio filho não conheça»; «Sangue chova o ar».

. Apóstrofe: «Ó gente temerosa…» – evidencia a distância entre o «eu» e os outros, pois, enquanto estes se mostram temerosos e ignorantes, o sujeito não receia e conhece a causa para o caos.

. Modo conjuntivo para traduzir o desejo de amaldiçoar tudo e o conselho dirigido à «gente temerosa» para que não se espante com o cenário apoclítico.

. Discurso valorativo: «As pessoas pasmadas»; «gente temerosa», «a vida mais desgraçada que jamais se viu».

. Alternância das rimas em a aberto e e fechado nas quadras, sugerindo espanto e dor, e em i nos tercetos como um grito de desespero.

. Anáfora: «não», «não» – intensifica o desejo do sujeito poético.

 
Hipérboles – são a expressão do desejo de maldição, de um ambiente de terror:

. “não o queira jamais o tempo dar”;

. “cuidem que o mundo já se destruiu”;

. “a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”: o sujeito poético teve e tem uma vida infeliz e desgraçada, cujo causador é o destino.
 
Adjetivação: «pasmadas», «perdida» – os adjetivos traduzem a reação das pessoas ao ambiente de terror, o seu assombro e medo ao serem confrontadas com ele, sem terem explicações para esse ambiente. Por outro lado, a adjetivação acentua a violência dos acontecimentos e marca a impotência humana face às forças que regem o mundo.
 
Metáfora: «nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar» – traduz o delírio emocional do «eu», apontando algumas das maldições por si imaginadas / desejadas.
 
Determinante demonstrativo «este» (v. 13): traduz a proximidade afetiva entre o sujeito poético e o dia do seu nascimento.
 
Verbo «chover»: este verbo pressupõe um sujeito nulo expletivo. O facto de, no poema, ocorrer com um sujeito simples, aliado ao hipérbato, acentua o caos verificado na natureza, que também se manifesta ao nível da frase que o representa.
 
Conjunção subordinativa causal «que» (v. 13): introduz a causa do desejo expresso no verso 1 – no dia do seu nascimento foi dada à luz a pessoa mais infeliz e desgraçada que o mundo alguma vez viu.
 
 
Conclusões
 
• Esta luta com o destino, a ira, as imprecações, constituem uma revolta falsa e não uma real tentativa de libertação. A violência das maldições, os gritos de desespero, o desejo de morte representam uma espécie de desculpa para a vida, um desejo de encontrar um culpado e a absolvição para a própria derrota.
 
• Camões apresenta, neste soneto, uma imagem engrandecida de si mesmo com que vai compensando a humilhação da derrota: também aqui a poesia é contraditória, oscilando entre a autodepreciação e o narcisismo: vai crescendo em si a consciência de ser diferente; a perseguição do destino, na singular crueldade e estranheza que a caracterizam, acaba por o tornar singular; o afastamento e o desprezo do vulgo exprime-se na epopeia e na lírica. Reconhece-se um ser eleito, grandioso, heroico, genial.
 
 
Intertextualidade com o Livro de Job
 
            Este soneto pode relacionar-se com o capítulo III do Livro de Job, intitulado “As lamentações de Job”, dado que ambos os textos revelam o sofrimento de ambos os «eus». A infelicidade sentida leva-os a amaldiçoarem o dia em que nasceram, recorrendo a imagens e situações sobre a ausência da luz solar e da alegria, embora no texto bíblico não estejam presentes as imagens de terror que é visível na segunda quadra do poema de Camões.
 

domingo, 11 de abril de 2021

Caracterização dos Vendedores de telefonias

 
▪ Os vendedores de telefonias são jovens, ativos, diligentes e sagazes. A sua paragem na aldeia fica a dever-se a supostos problemas mecânicos no seu carro: este está a precisar de água.

▪ Um deles apresenta-se “bem vestido”, é elegante, de modos agradáveis, sorridente e afável no trato. Ao reparar que a casa do Batola tem energia elétrica (é a única na aldeia), vê, de imediato, uma possibilidade de fazer negócio.

▪ Mostra também ser observador e atento, seguro de si, convincente, hábil e calculista, características que se adequam a um bom negociante, como o mostram as estratégias que usa para vender a telefonia ao Batola: apresenta o aparelho, experimenta-o na presença do potencial cliente e enumera as suas qualidades.

▪ Por isso, convence facilmente o Batola a adquirir o objeto, usando diversas estratégias de persuasão, como as seguintes expressões permitem deduzir: “poisa a mão sobre o ombro de Batola”, “Sem dar qualquer tempo de resposta, ordena…”, “Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre”. Perante a reação negativa da mulher do vendeiro, adota habilmente uma atitude conciliatória, dirigindo-se-lhe de modo mais formal, até porque percebe que é ela quem decide, propondo que a telefonia fique à experiência durante um mês. Se depois não o quisessem, poderiam devolvê-lo e ele restituiria as letras que o Batola havia assinado como forma de pagamento. Além disso, durante esse mês iriam usufruir do aparelho sem pagar nada.

▪ Note-se que toda a atividade de vendedor por parte do sujeito «bem vestido» assenta no engano. De facto, por um lado, alude a um pretenso problema mecânico para justificar a paragem na aldeia e, por outro, aceita deixar o aparelho à experiência durante um mês (ao constatar a oposição férrea da mulher do Batola), mas leva consigo as letras assinadas pelo vendeiro.

 

O mito de Ícaro e Dédalo — Amy Adkins

Caracterização do Rata

 
▪ Uma das personagens que se destaca do coletivo é o Rata (que é evocado, saudosamente, por Batola), uma figura que vivia na miséria.

▪ Era amigo de Batola, mas contrastava com ele: aquele vive conformado e apático; este saía frequentemente da aldeia e percorria o Alentejo, embora o máximo onde tenha chegado tenha sido Beja. De facto, a personagem vivia de esmolas que ia recebendo em várias terras.

▪ Rata é um mendigo e viajante, uma espécie de mensageiro que traz novidades do que se passa para além dos limites da aldeia. “Ao escutá-la durante «tardes inteiras» de forma entusiasmada, também Batola parecia viajar por «todo aquele mundo». Esta hipérbole (o mais longe que Rata viajara fora até Beja) elucida o impressionante isolamento dos habitantes de Alcaria. Quando ficou impossibilitado de viajar «pelos longes», Rata suicidou-se.” (Violante Magalhães, in Conto Português [séculos XIX-XX]: Antologia Crítica). Este suicídio agudiza a solidão do Batola.

▪ Constituía um agente de mudança, pois trazia o mundo exterior até à aldeia, graças às suas saídas, combatendo o isolamento de Alcaria e dos seus habitantes.

▪ Quando a miséria e a doença o forçam a uma existência estagnada e repleta de privações, suicida-se. De facto, o reumatismo tinha-o tornado incapaz de sair da aldeia. Quando se viu preso e impedido de viajar, o Rata mata-se por não se conformar com o isolamento e a solidão a que se viu remetido pela doença incapacitante.

 

Caracterização dos habitantes de Alcaria

 
▪ Esta personagem – coletiva – é constituída pelos habitantes da aldeia, que trabalham na ceifa de manhã à noite e, quando regressam da faina, exaustos, não vão “à venda palestrar um bocado”. As suas vidas são, de facto, marcadas pelo trabalho árduo e extenuante e pela miséria, que não conseguem superar: são pobres, tal como o local onde habitam, e vivem isolados do resto do país e do mundo.

▪ Os homens de Alcaria são apresentados como «figurinhas» (de presépio?) que vivem em casas «tresmalhadas». Atendendo a esta caracterização das casas (continente), os homens que as habitantes (conteúdo) são aparentados com gado. […] eles são «o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão». A tudo isto acresce a falta de esperança numa vida melhor. Batola não enfrenta aquele tipo de problemas. Pelo contrário, ele dá-se ao luxo de preguiçar, bebe «o melhor vinho que há na venda», carrega um fio de ouro no colete. Todavia, consciente da vida difícil dos demais aldeãos, ele é solidário. E partilha a condição animalesca dos conterrâneos: […] «rumina» a revolta; os suspiros saem-lhe «como um uivo de animal solitário».” (Violante Magalhães, in Conto Português…].

 

Relação entre Batola e a mulher

 
▪ A relação entre o casal é conflituosa, desde logo porque Batola se sente inferiorizado em relação à esposa. Assim, aquela é marcada pela ausência de sentimentos, pela frieza, pelo silêncio e pelo ressentimento, ocasionalmente pela violência física, dado que ele a agride fisicamente.

▪ A relação que mantêm gera raiva e revolta nas duas personagens. Vivem juntos, mas mal se falam, e o silêncio domina a sua convivência diária, o que gera um estado permanente de tensão, raiva e revolta, o que desemboca na violência ocasional.

▪ A mulher é dominadora, enérgica, autoritária quando tem de tomar decisões; ele é passivo, indolente e torna-se violento quando alcoolizado.

▪ Após a compra da telefonia, a situação muda: o Batola corda cedo e assume a gestão da venda, que antes cabia à mulher, que fica em casa e raramente marca presença no espaço comercial. A própria atitude da esposa relativamente ao marido é bastante diferente: o seu autoritarismo desaparece e, agora, surge «com um ar submisso» e humilde, como o evidencia o modo como lhe pede, humilde, quase sob a forma de murmúrio, que conservem o aparelho radiofónico.

 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...