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domingo, 11 de julho de 2021

Análise do filme «O Rei Leão»

I. Introdução

 
            “O rei leão” é um filme de animação, lançado pela Walt Disney em 1994, com a duração de 1 hora e 29 minutos e sob a direção de Roger Allers e Rob Minkoff.
 
 
 II. Sinopse
 
            Mufasa, o leão que governa Pedra do Rei, tem um filho, Simba, e apresenta-o ao povo. Na cerimónia não está presente Scar, tio do recém-nascido príncipe, tornando clara a sua sede poder.

            A educação do jovem príncipe baseia-se em valores que o preparam para um dia vir a ser rei, sucedendo no trono ao seu pai. Porém, o leãozinho, como criança que é, só pensa em se divertir e procurar aventuras.

            Sabendo que um grupo de hienas acabou de chegar à região, Scar vai em busca do sobrinho e aconselha-o a visitar um lugar proibido, para provar a sua coragem. Inocentemente, Simba segue o desafio do tio e, na companhia de nala, sua amiga, dirige-se para o local. Aí, ambos são atacados pelas hienas e só não são mortos porque no Mufasa surge em cena e os salva.

            Gorada esta armadilha, Scar não desiste e prepara uma nova cilada: deixa o leãozinho num caminho por onde passa uma manada de búfalos e faz com que o irmão saiba do perigo que Simba corre e o vá salvar de novo. Quando Mufasa fica suspenso numa ribanceira, pede ajuda a Scar, mas este limita-se a empurrá-lo. Simba assiste a cena e depara com um pai morto.

            Seguidamente, Scar convence o sobrinho de que a culpa foi sua, por isso deve abandonar o reino para sempre. Simba parte e é encontrado por Timon e Pumba no deserto, desmaiado. O suricate e o javali decidem adotá-lo e ajudá-lo a sobreviver. Assim, o leão cresce com os dois novos amigos, sem preocupações, até que um dia reencontra Nala e fica a saber por ela que o reino está em perigo por causa do tio Scar. Inspirado pelas palavras do pai, que lhe aparece nas estrelas, resolve regressar.

            Regressado ao Reino, Simba reencontra a mãe, que estava convencida de que o filho tinha morrido. O jovem leão luta com o tio, que confessa a morte de Mufasa e acaba por ser morto pelas hienas, quando as tenta culpabilizar pelo passamento do irmão.

            Simba e nala casam e, no final do filme, regressamos a uma cena análoga da primeira: os dois apresentam a sua filha ao povo. Este celebra, novamente unido, em paz e em harmonia.

 
 
III. Personagens
 

3.1. Mufasa

 
            Mufasa é um rei consciente e dedicado e um pai afetuoso e carinhoso. A sua atenção e preocupação estáo absolutamente focadas em Simba e na sua educação para um dia lhe suceder no trono. A sua morte dá-se quando tenta salvar o filho de ser esmagado por uma manada de búfalos, episódio que configura mais uma armadilha de Scar. Apesar de perder o pai, Simba segue os seus ensinamentos e regressa ao reino depois de o progenitor lhe surgir nas estrelas para o aconselhar.
 
 
3.2. Simba
 
            Simba é o protagonista do filme, cujo crescimento acompanhamos até derrotar o tio e se tornar rei. O seu nome, em suaíli, significa “leão”. Na infância, as suas brincadeiras e a busca aventuras acabam por o enredar em problemas e confusões. Inocente, deixa-se enganar pelo tio e cair em armadilhas paradas por ele, uma das quais conduz à morte do pai. Enquanto adulto, mostra-se um líder nato e é o seu Coração forte e generoso e a sua coragem que resgatam o reino das mãos de Scar e salvam o povo da ruína.
 
 
3.3. Scar
 
            Scar é o irmão de Mufasa e tio do Simba. Ele sente inveja do irmão e ambiciona derrubá-lo e ser rei. Com a ajuda das hienas, consegue matar Mufasa e afastar Simba do reino durante vários anos.

            Trata-se de uma personagem traidora, cruel, ardilosa e maléfica, que não hesita em assassinar o irmão. Além disso, revela se um péssimo rei que conduz o povo à miséria e o reino ao caos.

 
 
3.4. Timon e Pumba
 
            Timon e Pumba são, respetivamente, um suricate e um javali, dois amigos que vivem a vida de forma descontraída e solta: “sem problemas”.

            Timon é um nome grego histórico que significa “aquele que respeita”. Podemos também encontrá-lo numa peça de Shakespeare (Timão de Atenas). Uma outra explicação possível para a sua atribuição à personagem de “O Rei Leão” terá a ver com o filósofo grego Tímon, um discípulo de Pirro, o fundador da escola cética.

            Timon é um suricate perspicaz e egocêntrico que reivindica as ideias de Pumba como suas. Ao contrário do animal real, Timon anda sobre as patas traseiras, enquanto que o verdadeiro se desloca sobre as quatro patas e apenas consegue ficar de pé nas traseiras.

Timon Sofre de flatulência; é um guerreiro feroz e destemido que avança para a batalha de peito aberto. Quando o chamam “porco”, sente-se ofendido. O seu nome deriva do idioma suaíli da África Oriental e significa “tolo, fraco, descuidado, negligente”.

            Quando os dois amigos encontram o jovem Simba quase morto no deserto, resolvem adotá-lo e cuidar dele. O leão cresce feliz com ambos, sendo influenciado pela forma otimista como encaram a vida. Quando Simba regressa ao reino, os dois animais acompanham-no.

 
 
3.5. Nala
 
            Nala é a amiga de infância de Simba e também a sua companheira de brincadeiras e aventuras. Ela é uma personagem inteligente e forte, sempre encorajadora e gentil com Simba, mesmo quando este comete erros, alimentando a amizade que surgiu entre ambos e sofrendo imenso com seu desaparecimento.

            Ambos voltam a reencontrar-se, já adultos, quando Nala tenta caçar Pumba e Simba surge em defesa dele. Os dois reconhecem-se e é a leoa que chama o protagonista à razão, convencendo-o a regressar, pois o reino necessita dele. Após o regresso, Nala acompanha-o e luta ao seu lado. Derrotado o tio e recuperado o reino, Nala passa a ser sua esposa e mãe da sua filha.

 
 
3.6. Rafiki
 
            Rafiki é um babuíno xamã batiza Simba e, anos mais tarde, a sua filha, e que é responsável pela proteção das gerações futuras. O seu nome, derivado do suaíli, significa “amigo”, que se adequa à sua ação no filme, pois é ele quem ajuda Simba a ver o pai nas estrelas e a trilhar o caminho que o conduzirá à vitória.
 
 
IV. Ação
 
4.1. O reino de Mufasa e a infância de Simba
 
            Temporalmente, o filme tem início num dia ao nascer do sol, quando os animais da selva acordam, se juntam e cantam em conjunto. Num local alto, encontram-se Mufasa, o rei, Sarabi, a sua esposa, e Simba, o filho bebé de ambos. Rafiki, o babuíno xamã, apresenta o jovem leão ao seu povo, que comemora efusivamente.

            As cenas iniciais da película descrevem-nos a infância e a educação de Simba, a cargo do seu pai, que o procura preparar para um dia ser rei. Numa das várias cenas monumentais do filme, do alto do topo de uma colina, Mufasa mostra ao filho a extensão do reino (“tudo o que o Sol toca”), mas alerta-o para o facto de existir um lugar perigoso onde ele jamais deverá ir. Porém, o leãozinho é curioso e destemido, por isso, quando o tio o desafia a visitar o cemitério dos elefantes, dizendo-lhe que só os leões mais corajosos aí vão, Simba desobedece ao pai e dirige-se para lá, desconhecendo que se tratava de uma armadilha preparada por Scar para que seja morto pelas hienas. Acompanhado pela amiga Nala e por Zazu, a ave que é mordomo de Mufasa, que o avisa de que estão a arriscar a vida, mas é ignorado: «Perigo? Eu rio na cara do perigo.» (responde Simba). A aventura termina de forma positiva, quando o rei surge e os salva das hienas, aproveitando para dar uma lição ao filho, explicando-lhe que ser valente não é sinónimo de procurar problemas. Para o convencer, afirma mesmo que até os reis têm medo. Antecipando uma cena posterior, Mufasa diz-lhe que os reis que morrem ficam nas estrelas e que um dia também ele estará no céu.

            São estes valores que o pai lhe transmite que nortearão a vida de Simba, apesar de o ter perdido muito cedo.

 

4.2. A traição de Scar
 
            São evidentes as semelhanças entre O Rei Leão e Hamlet, a famosa peça de Shakespeare.

            A obra do dramaturgo inglês retrata o percurso de um príncipe, Hamlet, que se tenta vingar do tio, Cláudio, visto que este envenenou o rei para ocupar o trono. Após a sua morte, este surge ao filho como fantasma para o guiar, tal como Mufasa faz com Simba, surgindo nas estrelas e dirigindo-lhe a palavra.

            Na peça, o protagonista é dado como louco e é exilado, mas no final não vence a contenda, ao contrário do que sucede com Simba, que triunfa sobre o tio e ocupa o trono. A cena mais célebre da peça consiste no monólogo de Hamlet, durante o qual este segura um crânio e profere a famosa frase: «Ser ou não ser, eis a questão». No filme da Disney, encontramos uma cena na qual Scar fala, sozinho, segurando um crânio de um animal na pata.

            Scar, cicatriz em português, é um leão que inveja o poder do irmão e o deseja substituir no trono, por isso odeia-o e a Simba e decide ataca-los com armadilhas preparadas com a ajuda das hienas. O seu caráter negro fica bem evidenciado quando avisa os outros de que é melhor não lhe voltarem as costas. O auge da sua crueldade é, provavelmente, atingido na cena em que Mufasa está pendurado de um penhasco e estende a pata, pedindo ajuda ao irmão. Scar não hesita e empurra-o para a morte. De seguida, convence Simba de que este é o culpado da morte do pai, forçando-o a abandonar o reino.

 

4.3. O valor da amizade
 
            Devastado pela morte do pai, Simba abandona o reino e é encontrado em muito mau estado (inconsciente, rodeado de urubus) por Timon e Pumba. O suricate e o javali hesitam por momentos sobre o que fazer por estarem na presença de um leão, um seu predador, mas decidem ajudá-lo.

            Timon e Pumba andam sozinhos, guiados pela sorte, vivendo a forma de forma descontraída, como uma grande aventura. Quando se apercebem de que Simba foi abandonado, tornam-se seus amigos, criam-no e transmitem-lhe a sua filosofia de vida: «Hakuna Matata». E acrescentam que, quando o mundo nos vira as costas, nós devemos virar as costas ao mundo. É uma forma descontraída e sem regras de viver, tendente a esquecer o passado e deixar de sofrer, que, no entanto, pode ser encarada como um meio de fugir aos problemas, em vez de os enfrentar. Trata-se de uma questão abordada noutras obras, como, por exemplo, n’Os Maias, com a personagem de Pedro da Maia, com as consequências trágicas que se conhecem.

            Seja como for, a verdade é que um Simba traumatizado e sentindo-se responsável pela morte do pai acaba por recuperar a alegria de viver e acaba por ter uma infância feliz.

 

4.4. O poder e a responsabilidade
 
            Já adulto, Simba contempla as estrelas na companhia de Timon e Pumba, pensa no pai e fica triste, o que significa que, embora seguindo a filosofia dos amigos e evitando as memórias do passado, acaba por não o conseguir totalmente.

            Esse passado acaba mesmo por o apanhar quando reencontra Nala, a amiga de infância, que tenta caçar Pumba. O reencontro proporciona o surgimento do amor entre os dois leões: «Domado está o leão».

            Na qualidade de leoa, Nala é uma das felinas que caça para o grupo, tendo de dividir a comida com Scar e as hienas. Ela explica, então, a Simba que o seu povo vive miseravelmente por causa da má gestão do tio.

            Por outro lado, o reencontro desperta nele o sentido do dever, do qual está afastado há muito tempo. Quando era criança, o que mais desejava era ser rei, porém, no presente, não se sente preparado para assumir o trono. Recorda, então, as lições do pai, segundo as quais um rei deve ir além da sua vontade. Mufasa era um bom monarca e respeitado, pois respeitava todos os animais do reino, que viviam num equilíbrio delicado.

            Scar é o oposto do irmão: preguiçoso, mau, cruel e autoritário. Para alcançar e, posteriormente, manter o poder, associa-se às hienas, um grupo oportunista e extremamente perigoso.

 

4.5. O valor da família, a memória e a eternidade
 
            Rafiki, o xamã, graças aos seus poderes misteriosos, toma consciência de que Simba está vivo e vai à sua procura. Quando o encontra, repete-lhe insistentemente uma pergunta: «Quem és tu?». Ele próprio responde à questão: «O filho de Mufasa». O jovem leão fica confuso, mas segue o babuíno, que promete levá-lo até ao pai.

            O xamã mostra-lhe o seu próprio reflexo num lago e afirma: «Ele vive em ti». Isto significa que o que Simba aprendeu com o pai e essa aprendizagem servir-lhe-á de bússola na sua ação. Por outro lado, a mensagem é clara: os ensinamentos e a memória dos que amamos acompanha-nos ao longo da vida, serve-nos de guia, de orientação.

            Quando Mufasa aparece ao filho no céu, entre as estrelas, diz-lhe que Simba se esqueceu do pai e de quem é, querendo dizer, no fundo, que deve seguir as lições do passado, em vez de continuar a fugir. Após essas aparições, o jovem leão enche-se de coragem e determinação e regressa ao reino, motivado pelo exemplo do pai.

 
 
5. Mensagem do filme
 
            Uma das questões que o filme aborda é a importância dos amigos e da família. Simba não vence sozinho; pelo contrário, necessita do apoio dos amigos – Nala, Timon e Pumba.

            Outra relaciona-se com a aprendizagem e o crescimento interior. Ao longo da película, assistimos à evolução de Simba, desde o momento em que surge nos braços de Rafiki até ao triunfo sobre Scar. Durante o tempo que medeia entre os dois marcos, o leão enfrenta vários obstáculos, sofre revezes, perdas e é assaltado por dúvidas existenciais. Mas é tudo isso que o faz crescer e tornar-se adulto. Neste sentido, podemos ver aqui os dilemas e as dificuldades da juventude.

            Tal como Mufasa diz ao filho, todos temos de ocupar o nosso lugar no ciclo da vida. Além disso, temos de ter orgulho de quem somos e não podemos fugir de nós mesmos. Mesmo assaltados pelo medo e por dúvidas, receando fracassos ou refeições, temos de lutar e encontrar o nosso lugar no mundo.

 

Biografia de Homero

             Quase nada se sabe sobre a figura de Homero, exceto o facto de ele ser o poeta a quem os gregos antigos atribuíam a autoria dos poemas homéricos Ilíada e a sua sequência, a Odisseia. Muito do que se conhece sobre ele provém dos próprios textos.

            Trata-se, muito provavelmente, de um bardo grego que viveu cerca do final do século VIII e início do VII a.C. Há outros autores que apontam para os princípios do século IX ou finais do VIII, na Jónia, uma região da atual Turquia. A partir da descrição de um poeta/canto da Odisseia, que muitos estudiosos consideram um autorretrato, Homero é frequentemente descrito como cego. Note-se, porém, que os gregos dos séculos III e II a.C. começaram a questionar se o poeta teria mesmo existido e se as duas epopeias teriam sido escritas por uma só pessoa.

            Os dois poemas pertencem a uma antiquíssima tradição oral. Histórias sobre uma expedição grega ao Oriente e sobre viagens dos seus líderes de regresso a casa circulavam na Grécia há centenas de anos, antes da Ilíada e da Odisseia terem sido compostas. Contadores de histórias ocasionais e menestréis semiprofissionais foram os responsáveis pela transmissão desses relatos de geração em geração por via oral, através da memorização, sendo que cada «contador» os desenvolvia e afirmava à medida que os contava, normalmente para uma audiência. Assim sendo, é possível um só poeta ou vários poetas trabalhando de forma cooperativa terão finalmente passado essas narrativas à escrita, com cada um fazendo os seus próprios acrescentos e expandindo ou contraindo certos episódios para se adequar ao seu gosto. A inovação de Homero, caso tenha sido mesmo ele a compor as obras, parece ter sido costurar essas histórias, transformando-as num todo complexo e coeso.

            Embora as evidências históricas, arqueológicas e linguísticas sugiram que os dois poemas épicos foram compostos por volta do século VIII a.C., algures entre 750 e 650, a sua ação localiza-se na Grécia micénica do século XII a.C., em plena Idade do Bronze. Segundo as crenças dos gregos, esta era antiga foi uma época de grande glória, quando os deuses ainda pisavam a Terra e os seres humanos com atributos sobre-humanos povoavam a Grécia. As duas obras evocam esse período, num estilo elevado, retratando a vida característica dos grandes reinos da Idade do Bronze. Nesse tempo, os gregos eram chamados de «aqueus», palavra que designava uma grande tribo que viveu na Grécia durante o período do Bronze.

            Por outro lado, na época em que os dois poemas épicos foram redigidos, o alfabeto grego estava em expansão em termos de uso. A versão escrita mais antiga da Ilíada socorre-se precisamente desse alfabeto e contém traços característicos da forma mais antiga de escrita helénica. Continua em aberto a discussão em torno da dúvida se Homero foi somente um poeta oral que ditou a Ilíada a um assistente literário (convém relembrar a possibilidade de o autor ser cego ou ter cegado em determinada fase da sua vida) ou alguém com experiência na tradição oral, mas passado a escrito. Seja como for, os dois poemas foram compostos no dialeto jónico do grego antigo, que era falado nas ilhas do mar Egeu e nas zonas costeiras da Ásia Menor, a atual Turquia. Assim sendo, é possível concluir que Homero será natural de algum lugar da Jónia, mas também existe a hipótese de tenha escolhido o dialeto jónico porque o considerou mais apropriado ao estilo elevado que caracterizava uma epopeia. A análise da literatura grega posterior sugere que os poetas faziam uso de diferentes dialetos nos seus textos, de acordo com os temas abordados, e que podiam escrever até em dialetos que não falavam. Além disso, os textos de Homero são pan-helénicos, isto é, abrangem toda a Grécia, em espírito, e, de facto, usam formas de vários dialetos.

            Por outro lado, apesar de a ação se desenrolar na Idade do Bronze, as duas obras fazem referência a realidades gregas dos séculos VIII e VII a.C., portanto contemporâneas da sua redação. A estrutura social feudal presente na Odisseia assemelha-se mais à da Grécia de Homero do que à de Ulisses. Além disso, o poeta substitui o panteão de divindades da sua própria época por deuses adorados pelos gregos micénicos. Outros anacronismos, como, por exemplo, certas referências a ferramentas de ferro e a tribos que ainda não haviam migrado para a Grécia na Idade do Bronze, sugerem as origens posteriores a essa era do poema.

            Deste modo, pode concluir-se que Homero viveu, provavelmente, no século IX a.C., pelo que não foi testemunha dos factos ocorridos na guerra de Troia, que terá tido lugar entre os séculos XIII e XII a.C. Aproveitando a tradição oral, que nunca esqueceu essa guerra, sem se preocupar com a verdade histórica, Homero transformou a história em poemas épicos. Por outro lado, grande parte dos estudiosos concorda que a Ilíada foi uma obra de juventude do poeta e precedeu a Odisseia, que terá sido redigida na velhice, como complemento da primeira e ampliação da sua perspetiva.

            De acordo com a tradição, Homero, já cego, teria vivido os últimos anos da sua vida errando e cantando os seus versos pelas ruas de Ios, onde faleceu.


segunda-feira, 7 de junho de 2021

Análise de "Todas as cartas de amor são ridículas"

            O poema é constituído por sete estrofes, num total de 28 versos, brancos ou soltos, de métrica irregular. Esta irregularidade formal é um traço modernistas e parece acompanhar o estado emotivo do sujeito poético.

            Ao longo da composição, o «eu» repete uma ideia, como se quisesse provar uma tese: as cartas de amor são ridículas. De facto, de acordo com a estrofe inicial, as cartas de amor são, por natureza, ridículas. Trata-se de um facto, um dado adquirido, algo que é do conhecimento geral.

             Na segunda estrofe, o sujeito poético inclui-se no rol e confessa que, no passado, também escreveu cartas de amor, também elas ridículas, tão ridículas como todas as outras.

            Na terceira, clarifica que, quando há amor verdadeiro e autêntico, as cartas de amor «têm de ser» ridículas, isto é, caracterizadas por um tom exageradamente sentimental. É típico das missivas amorosas repetir clichés e transbordar emoções.

            A quarta estrofe clarifica o sentido do poema. Se, nas anteriores, ressaltava a ideia de que estávamos na presença de uma crítica ao sentimentalismo romântico, nesta o «eu» explica que, na verdade, ridículas são as pessoas que nunca escreveram cartas de amor, isto é, que nunca expressaram os seus sentimentos de forma tão simples, sincera e sem barreiras. Deste modo, a crítica será dirigida àqueles que julgam os outros porque nunca se apaixonaram, pelo menos daquela forma.

            Na quinta, o «eu» assume que sente saudades do passado inocente e esperançoso em que escrevia cartas de amor. Nesse tempo, o sujeito lírico não teria pudor ou consciência de que escrever cartas de amor seria algo ridículo aos olhos de outras pessoas.

            Na penúltima estrofe, encontramos um «eu» maduro e mais cínico que parece sentir vergonha das cartas de amor que escreveu no passado, na sua juventude. Reconhece que aquilo que é realmente ridículo é o modo como recorda esse momento e esse facto. Com o tempo, a forma como encara e vive o sentimento amoroso mudou e ele mesmo foi-se tornando mais fechado e incapaz de se expressar de um mondo tão intenso e genuíno.

            A última estrofe está toda entre parênteses, um sinal de pontuação que exprime, por vezes, uma explicação, o que nos faz considerar que esta parte do texto constitui, de facto, uma explicação da estrofe anterior ou até de todo o poema. Ela sugere que todas as palavras e os sentimentos presentes numa carta de amor são ridículos, o que pode significar que não é a pessoa que está apaixonada que é ridícula, ou as cartas, mas sim as palavras e os sentimentos em si.

            Relativamente à sua estrutura interna, podemos dividir o poema da seguinte forma: o sujeito lírico começa por apresentar uma espécie de tese geral (todas as cartas de amor são ridículas), para, de seguida, particularizar o tema a partir do seu próprio caso; posteriormente, a antítese, iniciada pela conjunção coordenativa adversativa «mas», expõe a amargura do «eu» por causa do seu passado (perdido); por último, na estrofe parentética, encontramos a síntese, uma estrofe de conclusão sobre a vida vivida e sentida pelo sujeito poético.

 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Episódio de Leonardo

. Paráfrase

Leonardo, soldado bem-disposto, manhoso (= com qualidades), cavaleiro e dado a amores, a quem Amor não dera apenas um desgosto, mas sempre o tratara mal, e que já sabia que não era feliz em amores, porém ainda não perdera a esperança de mudar a sua sorte.
Quis o Destino que Leonardo corresse atrás de Efire, exemplo de beleza, que se mostrava mais esquiva que qualquer uma das outras ninfas. Já cansado, enquanto corria, dizia-lhe: “Ó formosura em quem não fica bem a crueldade, já és dona da minha vida e alma, espera também pelo meu corpo.
Todas se cansam de correr, Ninfa pura, rendendo-se à vontade do inimigo, e só tu foges de mim? Quem te disse que era eu? Se to disse a má sorte que sempre me acompanha, não acredites nela, porque eu fui enganado sempre que nela acreditei.
Não canses, que me cansas! Se foges de mim para que eu te não possa tocar, espera por mim, e verás que, mesmo que esperes, eu nunca te alcançarei. Espera, e vamos ver que subtil forma encontra agora a minha pouca sorte para me escapar. E no fim verás “tra la spica e la man qual muro he messo” (entre a espiga e a mão levanta-se sempre um muro, ou seja, quando parece que está +restes a alcançar-se o que se deseja, surge um obstáculo intransponível).
Não fujas! E também não fuja o breve tempo da tua formosura. Só com abrandar o passo, tu poderás conseguir o que nunca conseguiram imperadores e exércitos: vencer a força dura do Destino, que sempre me perseguiu em tudo o que desejei.
Tomas o partido da minha desgraça? É fraqueza dar ajuda ao mais forte contra o mais fraco. Levas contigo o meu coração? Larga-o e correrás mais depressa. Não te sentes carregado pelo peso desta alma que levas enredada nos teus cabelos de ouro? OU, depois de a prenderes, mudaste-lhe o Destino, que passou a pesar menos?
Nesta única esperança de vou seguindo: ou tu não aguentas o peso da minha alma, ou a força da tua beleza lhe mudará a triste e dura estrela. Se mudar, não fujas mais, porque Amor te ferirá, e então serás tu a esperar-me. E, se me esperas, nada mais espero.”
A linda ninfa fugia, já não tanto para se fazer difícil, como a princípio, mas para ir ouvindo o doce canto e os queixumes apaixonados de Leonardo. E, já toda banhada de riso e de alegria, deixa-se cair aos pés do vencedor, que se desfaz em puro amor.
Toda a floresta ressoa de beijos famintos, de mimoso choro, de zangas depressa convertidas e risinhos. O que mais aconteceu naquela manhã e na sesta, é melhor experimentá-lo do que imaginá-lo, mas imagine-o quem o não pode experimentar.
Desta forma, já juntas as ninfas com os navegantes, enfeitam-nos com coroas de flores, louro e de ouro. Dão-se as mãos como esposas, e com palavras formais e estipulantes, prometeram-se eterna companhia na vida e na morte.

. Localização: canto IX.

. Plano narrativo: plano da viagem e da mitologia..

. Narrador: o Poeta – narrador heterodiegético.

. Contextualização do episódio: após o desembarque dos Portugueses na Ilha dos Amores, um dos marinheiros, Leonardo, persegue uma ninfa, que parece ser mais difícil de apanhar do que as restantes.

. Estrutura interna

. 1.ª parte (IX, est. 75-76, vv. 1-5) – Retrato de Leonardo e Efire:
- soldado destemido, alegre e bem disposto (“soldado bem disposto, / Manhoso, cavaleiro e namorado);
- manhoso, “espertalhão”;
- cavaleiro;
- namorado apaixonado, galante, sempre disponível para o amor apesar de nunca ter tido sorte no mesmo / mas com pouca sorte ao amor (por isso habituado a sofrer, mas com esperança de ver mudada a sua má sorte amorosa) (“com amores mal afortunado”);
- namoradeiro, pois procura insistentemente conquistar a ninfa Efire, que simula furtar-se à sua sedução;
- audacioso, valente e corajoso;
- muito persistente e persuasivo.

Note-se como Leonardo reflete o perfil que Camões apresenta de si mesmo na sua lírica: a disponibilidade para o Amor, a má sorte amorosa, a impossibilidade de ser feliz e a capacidade de manuseamento das palavras.
De facto, Leonardo já contara com várias desilusões amorosas ao longo da sua vida, sendo que cada vez que se apaixonava era abandonado pela sua amada, no entanto jamais perde a esperança de um dia ser correspondido. E, de facto, quando a ninfa se lhe rende, Leonardo vê o seu fado de ser infeliz no amor mudar.

         Efire é uma ninfa muito bela e sedutora que capta a atenção de Leonardo, que a persegue, tal como todos os seus companheiros perseguiam as suas enamoradas.

. 2.ª parte (IX, v. 6 est. 76-81) – Discurso de Leonardo.
         Enquanto persegue a ninfa Efire, Leonardo procura argumentos que a convençam a parar a sua fuga:
(1) Todas as outras ninfas se cansam de correr, só ela resiste.
(2) A ninfa foge porque já deve conhecer a sua fama de infeliz no amor.
(3) A má sorte é tanta que, mesmo que a alcance, alguma coisa o impedirá de a tocar.
(4) A ninfa é a única que poderá mudar a sua má sorte no amor.
(5) É fraqueza colocar-se ao lado da sua infelicidade, já que ela lhe roubou o coração; se quiser fugir, deve devolver-lho, pois ele só pode pesar-lhe.
(6) É a esperança de ela mudar a sua má sorte, amando-o também, que o faz correr.

. 3.ª parte (IX, est. 82) – Retrato de Efire:
                Efire é uma das mais belas ninfas (“exemplo de beleza” – est. 76, v. 2; “bela Ninfa” – est. 82, v. 1), de cabelo louro (“fios de oiro reluzente” – metáfora), formosa (“Ó formosura”) e pura (“Ninfa pura” – apóstrofe – est. 77, v. 1).
                A ninfa finge fugir a Leonardo, mas, após longa perseguição, deixa-se cair “aos pés do vencedor / Que todo se desfaz em puro amor”, conseguindo, assim, mudar o “seu fado” de ser infeliz no amor.

. 4.ª parte (IX, est. 83) – Descrição do enlace amoroso.
                Entre as ninfas e os marinheiros portugueses desenrolam-se jogos amorosos: “famintos beijos na floresta”, “mimoso choro que soava”, “afagos tão suaves”, “risinhos alegres”, “Vénus com prazeres inflamava”.
                Por outro lado, a ligação amorosa entre as ninfas e os portugueses apresenta semelhanças com a união conjugal, o casamento. De facto, entre ambos

. 5.ª parte (IX, est. 84):
. Coroação dos marinheiros como heróis, recebendo ouro e louro;
. Celebração da cerimónia de casamento dos marinheiros com as ninfas, representado pelas coroas de flores, louro e ouro, pelas mãos dadas e pelas juras de amor eterno.



Análise de "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil

             O poema que serviu de base ao tema musical foi composto em 1973 pelos compositores e intérpretes brasileiros Chico Buarque e Gilberto Gil, para ser apresentado no programa “Phono 73”, que divulgava os trabalhos, em duplas, dos maiores artistas agregados à editora Phonogram.
 
            A canção, graças ao seu conteúdo profundamente crítico da situação política brasileira da época, acabou por ser lançada apenas em 1978, tornando-se um dos maiores hinos anti-ditadura, inscrevendo-se, portanto, no campo da música de protesto.
 
            O tema do poema é a denúncia da repressão, do autoritarismo e da violência que caracterizaram a ditadura no Brasil.

            A composição abre com uma referência bíblica a São Marcos: “Pai, se queres, afasta de ruim este cálice”. Esta citação bíblica remete-nos para o calvário de Jesus Cristo, marcado pela perseguição, pelo sofrimento e pela traição de que foi vítima. Por outro lado, ela contém um pedido de um filho dirigido ao seu pai: o afastamento de si de um cálice. No entanto, tendo em conta o contexto político brasileiro de então e a semelhança de pronúncia entre o nome «cálice» e a forma verbal «cale-se» (semelhança essa acentuada pela fonética do português do Brasil), é possível fazer outra leitura desta passagem. Assim, o sujeito poético pede ao pai que afaste de si esse «cale-se», isto é, implora-lhe que afaste a censura e a violência, dado que o cálice contém «vinho tinto de sangue». Deste modo, o sujeito lírico estabelece uma analogia entre a paixão (o sofrimento) de Cristo e o do povo brasileiro, sujeito a um regime violento: na Bíblia, o cálice continha o sangue de Jesus; no poema, o sangue é o das vítimas do regime.
            Na primeira estrofe, o «eu» interroga-se como será possível beber essa «bebida amarga», ou seja, como será possível aceitar a amargura, a dor, o trabalho árduo e mal remunerado, como se fossem coisas normais. Além disso, tudo isto é obrigado a aceitar calado, em silêncio, uma referência clara à opressão e à ausência de liberdade de expressão. De acordo com o próprio Chico Buarque, a «bebida amarga» é Fernet, uma bebida alcoólica italiana que o cantor e compositor costumava beber. Resta-lhe o peito, isto é, o que ele sente relativamente à situação e, quiçá, a coragem e determinação para resistir.
            O sujeito poético continua a socorrer-se da linguagem metafórica de cariz religioso, afirmando-se «filho da santa», subentendendo-se que se refere à pátria, entendida pelo regime político como inquestionável, à semelhança de um dogma bíblico. Porém, preferiria ser «filho da outra». Tendo em conta a sequência rimática, pode deduzir-se que o termo a usar seria provavelmente «puta», contudo, por causa da censura, os autores terão optado por uma linguagem mais «suave». O «eu» deseja outra realidade, caracterizada pela inexistência da mentira, de autoritarismo e de violência.
            O início da segunda estrofe alude a um método usado pela polícia militar: invadir, durante a noite, as casas das pessoas, arranca-las das suas camas, prender umas e fazer desaparecer outras. A consciência deste facto dilacera o sujeito poético, por acordar em silêncio tendo consciência da violência que ocorria durante a noite e que, eventualmente, também o atingiria («Se na calada da noite eu me dano»).
            O sujeito lírico deseja soltar um «grito desumano» contra a situação, procurando, assim, ser ouvido e combate-la. O silêncio deixa-o atordoado, impotente, mas, apesar disso, conserva-se atento, pronto para agir se surgir uma oportunidade. Entretanto, mantém-se passivo na arquibancada, esperando que o «monstro da lagoa» surja. A expressão «monstro da lagoa» remete-nos para o imaginário dos contos infantis, simbolizando o mal que nos vem aterrorizar e que devemos temer. Neste sentido, a expressão poderá ser entendida como uma metáfora da ditadura, do poder repressivo que estava escondido, mas pronto para atacar a qualquer momento. Por outro lado, ela designava também os corpos de pessoas desaparecidas que apareciam, ocasionalmente, a boiar nas águas de um rio ou do mar, vítimas do regime ditatorial.
            A terceira estrofe abre com nova metáfora – a da «porca gorda» –, que representa o governo ditatorial e corrupto, que «já não anda», isto é, não funciona mais. A gordura remete para o pecado da gula, ou seja, para a ganância que dominava a «porca», o governo, que, de tão gorda(o), já não se consegue mexer. A «faca», nova metáfora, que simboliza a violência e a brutalidade, já não «corta» por ter sido tão usada, ou seja, está a perder força, eficácia. A alusão ao facto de ter sido muito usada sugere o grau de violência que tem sido praticada sobre as vítimas pelas entidades governamentais e policiais.
            A referência à dificuldade de abrir a porta representa o desejo de liberdade do «eu», que permanece silenciado, com «essa palavra presa na garganta». De seguida, questiona-se de que adianta «ter boa vontade», numa referência à passagem bíblica «Paz na terra aos homens de boa vontade», sugerindo que não tem paz. De que adianta ter boa vontade para com o governo se a paz não vem? Daí vem o «pileque homérico»: tudo estava tão fora do lugar que é como se o mundo estivesse todo bêbedo.
            Perante a impotência e a repressão, mantém-se, no entanto, o pensamento crítico, mesmo que calado, representado pela «cuca / Dos bêbedos do centro da cidade», isto é, as pessoas rebeldes e desajustadas que procuram sobreviver e continuam a desejar e a lutar por uma vida melhor.
            A estrofe seguinte contrasta com as anteriores, porque introduz a ideia da esperança, através da possibilidade de o mundo não ser pequeno, ou seja, de o mundo não se limitar àquilo que o sujeito poético conhece. Além disso, talvez a vida não seja um facto consumado, isto é, talvez não tenha de ser tão dolorosa e a ditadura não seja uma circunstância irremediável, eterna.
            Numa atitude de rebeldia, o «eu» reclama o direito a ser dono da sua vida e a escolher o que fazer com ela, de acordo com os seus desejos e regras, sem ter de obedecer a ordens e regras de outrem. É isso que significam os versos «Quero inventar o meu próprio pecado / Quero morrer do meu próprio veneno». Para que tal se concretize, é necessário «perder de vez tua cabeça», ou seja, é necessário derrubar o poder opressivo e ditatorial. O sujeito poético deseja ser livre e reprogramar-se de tudo aquilo que a sociedade conservadora lhe inculcou e deixar de estar subjugado a ela. «perder teu juízo».
            Os dois versos finais fazem referência a métodos de tortura comuns na época: a inalação de óleo diesel por parte das pessoas que eram presas. Além disso, apontam para uma tática de resistência: fingir perder os sentidos, para que a tortura fosse interrompida.
 

Análise de "Eu cantei já, e agora vou chorando"

 
Introdução:
                O soneto é da autoria de Luís de Camões, poeta renascentista português que viveu, provavelmente, entre 1524 ou 1525 e 1580, sendo um dos cânones da literatura portuguesa e insigne na cultura universal. Este poema insere-se na chamada corrente renascentista, visto assumir a forma de um soneto, composição poética importada de Itália por Sá de Miranda, após a sua passagem pelo país. É, portanto, um exemplo da chamada medida nova.
 
Desenvolvimento:
. Tema
 
. Assunto
 
 
 
. Estrutura externa
 
 
 
 
 
 

 

 

. Estrutura interna

– 1.ª parte

 
– 2.ª parte
 
 
 
. Contraste passado / presente
 
 
. Estado de espírito do sujeito e suas causas
 
. Recursos expressivos
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 














 
Conclusão

 

                Neste texto, é abordado o tema do infortúnio e o assunto compreende a saudade por um tempo passado que, comparativamente ao presente, embora enganador, era preferível à desolação que o rodeia e à implacabilidade e inexorabilidade do destino.

                O poema é constituído por duas quadras e dois tercetos (um soneto), num total de catorze versos decassilábicos heroicos, visto que são acentuados na sexta e décima sílabas (Eu/can/tei/já/e a/go/ra/vou/cho/ran), com rima interpolada e emparelhada, de acordo com o seguinte esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE. Em todos os versos encontra-se rima grave ou feminina (“chorando”/”confiando”), consoante e incompleta (“confiado”/”passado”), à exceção dos versos 9 e 12, que possuem rima completa. Nos grupos de versos 1 e 4, 2 e 3, 10 e 13, 11 e 14, a rima é pobre, dado que as palavras rimantes pertencem à mesma classe gramatical (“chorando”/”criando”), enquanto que nos restantes é rica, pois rimam palavras de classes diferentes (“quando”/”julgando”). Por outro lado, nos versos 11 e 14 existe rima imperfeita.

                O soneto pode dividir-se em duas partes. Na primeira, correspondente às duas quadras e ao primeiro terceto, o sujeito lírico lamenta o passado ilusório e enganador que o destino o obrigou a viver, o que acentua a precariedade do momento presente. No último terceto, a segunda parte, o sujeito poético, através do recurso a duas interrogações retóricas nos versos 12 e 14, responsabiliza o destino que, sendo inimigo e implacável, se sobrepõe aos erros de uns e/ou à falsidade de outros, tornando inútil qualquer esperança.

                O sujeito poético começa por estabelecer uma relação antitética entre o passado e o presente, salientando a alegria experimentada em contraste com a tristeza do presente (“Eu cantei já e agora vou chorando” – v. 1). Note-se a abundância de vocábulos de cariz negativo, tais como “chorando” (v. 1), “lágrimas” (v. 4), “fui enganado” (v. 6), “triste” (v. 7), “som de ferros” (v. 11), “mente” (v. 12, “culpa” (v. 13), “injusta”, “erros” (v. 14), que exprimem a sua dor e desalento presentes. Por outro lado, as diversas antíteses (“cantei”/”vou chorando” – v. 1; “canto”/”lágrimas” – vv. 3 e 4; “triste (…) presente” – v. 7 / “passado (…) ledo” – v. 8) confirmam o contraste existente entre a felicidade passada e a tristeza presente vivido pelo sujeito lírico. Este chega mesmo a revelar a consciencialização do fator que contribuiu para o seu desencanto e a sua desilusão: a traição de que foi vítima por parte de alguém, como se pode comprovar pelas expressões seguintes: “(…) fui nisso enganado” – v. 6; “Fizeram-me cantar, manhosamente” – v. 9; “(…) tudo mente” – v. 12. Ao tomar consciência disto, o sujeito põe em causa a aparente felicidade anterior, considerando-a um prenúncio da desgraça que está a viver (“Parecer que no canto já passado / Se estavam minhas lágrimas criando” – vv. 3-4), acentuando, deste modo, o momento presente como muito negativo e infeliz (“É tão triste este meu presente estado” – v. 7). O eu diz-se vítima da alegria tranquila e ilusória que conheceu [“(…) cantei tão confiado” – v. 2; “Fizeram-me cantar (…) / confianças” – vv. 9-10] de ter , a qual não era senão um esboço, um indício do seu destino de desventura, que metaforicamente identifica com prisão, com sofrimento, já que foi esse o resultado que obteve: “Cantava, mas já era ao som dos ferros” – v. 11.

                O sujeito, tal como foi anteriormente referido, realça o tempo passado, predominando as formas verbais no pretérito perfeito (vv. 1, 2, 5, 6, 9) e imperfeito (vv. 4 e 11), o advérbio de tempo “já” (vv. 1, 3, 11), a forma verbal repetida “cantei” (vv. 1, 2, 5), bem como outras formas do mesmo verbo (vv. 9, 11) e outros vocábulos pertencentes ao mesmo campo semântico (“canto” – v. 3), de modo a salientar a existência de uma situação calma e tranquila que foi alterada contra a sua vontade. Deste modo, o sujeito sente-se objeto de manipulação de uma entidade superior [“(…) a Fortuna injusta (…)” – v. 14], que, para além de ter modificado a sua vida e o seu estado de espírito, atuou de forma camuflada, deixando-o viver na ilusão, até que fez desmoronar a encenação e contribuiu para o estado presente do eu. Note-se a importância da conjunção coordenativa adversativa “mas” (vv. 5, 10, 11), com o intuito de reforçar o contraste entre o comportamento que o eu assumia e as suas causas reais: não sabe concretizar a real época da sua felicidade, desconhecia a presença nefasta do destino nos seus atos. É de salientar igualmente que o tempo passado, a felicidade, ocorreu num momento pontual, concreto, definido, para o que contribui o pretérito perfeito, reforçando o seu caráter efémero, enquanto que o presente, marcado pelo sofrimento e pela dor, se reveste de um cariz durativo, que é conseguido através da conjugação perifrástica, fazendo pressupor que a infelicidade, a tristeza são sentidas com maior intensidade: “vou chorando” (v. 1); “estavam (…) criando” (v. 4); “estou julgando” (v. 8). O pessimismo e o dramatismo do momento presente vivido pelo sujeito, resultado de um passado fictício, encontram-se sintetizados no verso 12 quando o eu afirma ”(…) tudo mente”, o que vem corroborara existência de uma ilusão, de um engano vividos, fruto da atuação de uma força superior, manipuladora.

                Temas como este, onde sobressaem a fatalidade, a desgraça, a infelicidade, a desilusão, são frequentes na lírica camoniana, quer se refiram à força do Destino sobre o próprio sujeito poético, quer à influência exercida pela mulher amada.

 

 

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