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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Análise do Canto XVIII da Ilíada

             Temporalmente, a ação deste canto decorre durante a noite. A escuridão noturna introduz no poema um ambiente de calma bem-vindo após uma série de confrontos bastante violentos, de um dia sangrento. Ambos os exércitos se reúnem para passar a noite, mas o espírito dos dois lados é bem distinto: entre os Gregos predomina a tristeza, a dor, o choro – o luto – pela morte de Pátroclo; no acampamento troiano, reina um certo otimismo e confiança nos acontecimentos do dia seguinte. Para o leitor, o ambiente entre os Troianos soa a ironia trágica, pois ele já sabe que Troia cairá às mãos dos Gregos e Heitor morrerá sem regressar à cidade. Essa ironia torna-se mais profunda após a proposta sábia de Polidama de o exército se acolher sob a proteção das muralhas, ser rejeitada. É de registar o facto de o poeta usar a sensibilidade e a sabedoria desta personagem para a contrastar com a obstinação de Heitor.

            No que diz respeito à ação e à postura de Aquiles relativamente a ela, a morte de Pátroclo vem alterar tudo. O filho de Tétis consciencializa-se de que, em última análise, a sua raiva contra Agamémnon causou a morte do seu amigo. Mais: ele pediu a Zeus que castigasse fortemente os Gregos, mas jamais lhe ocorreu que alguém próximo de si pagasse esse preço. Subitamente, a sua cólera perde toda a importância, mas apenas relativamente a Agamémnon. De facto, Aquiles continua possuído por esse sentimento, só que agora direcionado para Heitor.

            O escudo que Hefesto, a pedido de Tétis, forja para Aquiles é muito simbólico. Ele é, simultaneamente, um instrumento de guerra e um símbolo de vida, o resumo de uma cultura. Nele estão representadas duas cidades, uma vivendo tempos de paz e a outra de guerra. A primeira não é totalmente pacífica, pois nela existem conflitos também, só que são resolvidos de forma civilizada e não através da violência, enquanto a segunda descreve a desumanidade e o caos da guerra. Não por acaso, é apenas nela que os deuses surgem representados no escudo. As imagens de um campo a ser arado, da colheita do trigo e da colheita de uvas representam o ciclo das estações. Um rebanho de gado é atacado por dois leões, fazendo-nos recordar guerreiros ferozes, estabelecendo-se, assim, uma conexão entre a guerra e a vida quotidiana. O conflito bélico é um tema central da ação e constitui uma realidade da vida humana.

Autárquicas 2021: o caminho pa-tacho


 

Análise de "O Crepúsculo dos Deuses"

 
Assunto: o percurso do Homem, desde o momento em que “o mundo era mais nosso cada dia” até ao momento em que “se apagaram os deuses”, isto é, desde a primitiva cultura grega, considerada perfeita, até à sua destruição, possivelmente pelo império romano na fase mais decadente ou, de uma maneira mais geral, desde a idade de ouro até aos nossos dias.
 
 
Tema: o apelo para a recuperação da cultura grega ou do seu espírito.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-6) – A vitória da luz sobre as trevas.
 
            A conquista da liberdade e o fim da dominação persa deu aos gregos a alegria e o reencontro da luz. A vitória contra o império opressor restituiu a pureza da cidade. Nas ilhas e no mar Egeu reapareceu o sorriso, a claridade e a alegria.
            Homero (símbolo da poesia) fez florir sobre o mar o roxo, cor que simboliza o equilíbrio entre a terra e o céu, os sentidos e o espírito, o amor e a sabedoria, enquanto Kouros avançou um passo, símbolo do avanço da perfeição da humanidade; por seu lado, a palidez de Atena, deusa do pensamento, das artes, das ciências e das indústrias, “cintilou”.
            A isto acresce que os deuses venceram os monstros e os persas foram derrotados. Todos estes dados, nomeadamente este da vitória sobre os monstros, simbolizam o banimento da ignorância, da cegueira e da violência. Alegoricamente, a vitória dos deuses significa que o ser humano encontrou a sua verdadeira dimensão, conquistando o espírito olímpico da harmonia e da estética.
 
 
2.ª parte (vv. 7-15) – O canto da vitória da luz sobre as trevas.
 
            A treva foi sacrificada em grandes pátios brancos. A luz simboliza o fim das trevas, a harmonia e o caos, o encontro do mundo “mais nosso cada dia”. A este domínio da cor branca, símbolo da perfeição divina e da criação, junta-se o coro das vozes da vitória que purificou a cidade e a nudez do corpo, símbolo de uma nova criação, que permite encontrar a “medida exacta”, pois o nu traduz, não só a beleza artística, mas a verdadeira, a autêntica e objectiva dimensão do ser humano e a proporção dos seus membros. Esta estrofe (quarta) mostra como a alegria foi contagiante e como a claridade, o encontro do cosmos, trouxe a “medida exacta” do ser humano.
            Os resultados práticos dessa transformação encontram-se tipificados nas colunas de Sunion e passam pela união dos homens e das coisas. Ora, as colunas de Sunion – templo de Posídon, deus grego do mar – são o primeiro sinal de terra firme quando os nautas se aproximam do continente grego a partir das ilhas do mar Egeu; além disso, como em todos os templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
 
 
3.ª parte (vv. 16-23) – A derrota dos deuses.
 
            Os “antigos deuses sol interior das coisas” apagaram-se e as trevas dominaram novamente. Os deuses abandonaram, de novo, o homem e ele perdeu a sua luz interior. A cultura clássica antiga apagou-se e o vazio instalou-se entre os homens e as coisas e gerou a separação. A Sibila profetizou, então, aos mensageiros de Juliano (Flávio Cláudio Juliano, o Apóstata, imperador romano entre 361 e 363, tentou restaurar o paganismo, mas morreu numa campanha contra os persas, o que foi interpretado como castigo de Deus) que as trevas e a destruição voltariam, pois Febo (Apolo, entre os romanos, deus do sol, da luz, das artes, da música e da poesia) deixaria o templo, desapareceriam as profecias e a melodia das fontes e da água. Ou seja: já não há lugar para Apolo, que é o mesmo que dizer poesia, música, arte... Por outro lado, a água da fonte Hipocrene calou-se, isto é, acabou a vida, o mundo corrompeu-se. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente, a água acompanha as atividades do ser humano e surge como alfa e omega, ou seja, princípio e fim da existência; é símbolo de Deus; a sua essência recusa a divisão. Ao dizer que a água se “calou”, Sophia pode querer simbolizar o fim de uma realidade vivida. Tudo vem da água e tudo a ela regressa. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo.
 
            Esta narração da conquista da luz e da sua perda constitui, numa segunda reflexão, a alegoria da conduta do homem em geral e a denúncia, pela ironia, do obscurantismo que afligia o País na época em que o poema foi escrito. Sophia, dentro da dialética caos-cosmos, procura, de certa forma, mostrar que a passagem das trevas para a luz não é mais do que o encontro do equilíbrio e da ordem, pois isso é que constitui a verdadeira claridade. A imagem da Grécia antiga a que recorre, na luta contra o império persa, remete para a ideia de unidade alcançada no cosmos. Mas Febo, deus da claridade e da música, deixa a sua cabana, como se de novo regressasse a confusão, o conflito, a violência que marcam o caos. A profecia da Sibila a Juliano remete para a possibilidade da repentina destruição da obra harmoniosa e geométrica que é o cosmos.
            Nestas duas estrofes finais, iniciadas pela adversativa mas, verifica-se que de novo as trevas surgem como ameaça, pois o homem caminha para a perdição. A alegoria do caos, da ruína, para caracterizar o tempo de ameaça onde falta a liberdade é, frequentemente, utilizado por Sophia. As duas faces – caos e cosmos – só permitem a beleza quando se verifica a união entre o limitado e os ilimitados, entre a treva e a claridade, entre a confusão e a ordem. A dialética caos-cosmos é a alegoria da própria criação da vida e da morte, da transformação da matéria confusa, violenta e em conflito do caos na organização e harmonia do cosmos.
            Há neste diálogo com o mundo antigo uma aproximação à filosofia de Nietzsche e de Heidegger. Como este último pensador humanista, Sophia compreende, muitas vezes, que a realidade pode levar o ser humano à angústia como “sentimento da situação”, pois “o ser-no-mundo é sempre já decaído”. E na esteira niilista de Nietzsche, percebe que depois do clarão de alegria onde a esperança ganha alento, se exprime “o mundo dilacerado, destroçado em indivíduos”, como em Dionísio, a figura trágica do palco helénico. Ao falar do mito apolíneo e dionisíaco, o filósofo afirma que “do sorriso de Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens”. Em Sophia, o apolíneo brota “de um fundo dionisíaco”. A beleza e harmonia não foi dada ao homem, mas conquistada. Por isso, no fim, através da ironia, acomoda as ruínas do palácio, de Febo, da fonte e da água para melhor lutar pela pureza e pela liberdade, antes representada na alegoria do corpo nu, privilegiado mundo da beleza, criador e inventor do mundo mais exato e perfeito.
            “O nosso corpo estava nu porque encontrara / Sua medida exata”. A nudez do corpo sugere, por alegoria, que um certo sabor do encantamento provocado por Eros se misture com a sublimidade da verdadeira Beleza. A nudez do corpo, que surge em muitos outros poemas da autora, concilia uma certa euforia sensorial com a perseguição com a perseguição do sagrado, que constitui a arte como lugar de união entre o limitado e o infinito, ou a arte “que lhe descobre o santuário onde arde numa única chama, numa união eterna e original, o que está na vida e na ação, logo no pensamento também”. O corpo desnudo permite mais facilmente ler em cada parte as expressões mais específicas do sentir e até do pensar.
 
            A aliança do homem com o mundo natural, o encontro da harmonia, do equilíbrio, da justa medida, para Sophia, tem como paradigma a arte grega e a verdade dos seus deuses. A atração pela arte e a nostalgia dessa civilização levam-na a recriar as imagens do mundo grego, sem, no entanto, deixar de se afirmar uma humanista cristã. Na lição da Grécia antiga procurou a consciência da justiça e do humanismo. “Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas” (Arte Poética – III). A Poetisa afirma que a “Grécia é um ponto de partida a que justamente é preciso regressar porque então o homem tentou partir da imanência, partir do seu estar na terra...”.
            Sophia busca a perfeição e a harmonia de um ser humano que saiba erguer-se a partir das suas limitações e imperfeições. Não celebra os deuses para que os homens sejam como eles, mas celebra os deuses para tornar os homens mais divinos, mais capazes de avançar para a margem do Bem e da Verdade. O mundo antigo, a que recorre a Poetisa, simboliza não só as origens, mas também a perfeição e a unidade ou o tempo absoluto que procura. Os gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o espírito olímpico. Sophia, fascinada pelos valores e cultura clássicos, falam-nos da arte grega, dos deuses mitológicos e da harmonia e equilíbrio alcançados. Os antigos deuses surgem a traduzir as forças interiores de cada ser humano que, embora muitas vezes inexplicáveis, lhes dão a força para vencer e encontrar o cosmos. Mas apesar dos vários símbolos da perfeição que recorda do mundo antigo e que pretende alcançar, observa que o homem continua a caminhar para o caos.
            As imagens da Grécia antiga trazem a Sophia a alegre esperança da renovação do homem, que, de repente, dá lugar à visão do mundo perfeitamente perturbado e pessimista. É isso que encontramos neste poema: depois de encontrar a pureza, a liberdade, a beleza, o mundo mais exato e perfeito, o homem permite o triunfo das forças das trevas sobre a claridade.
            Com “Crepúsculo dos Deuses”, Sophia mostra-nos o percurso do ser humano ao longo da sua caminhada pelo mundo e põe em destaque a perda com o momento em que “se apagaram os antigos deuses”, que constituíram o “sol interior das coisas”. O corpo que “estava nu porque encontrara / Sua medida exata” distancia-se desse mundo que “era mais nosso cada dia”. Há aqui uma alegoria a tentar recuperar os signos da ruína, conseguindo assim que o símbolo se temporalize no presente. Este poema, como em geral toda a poética de Sophia, mostra-nos um compromisso com a realidade, quer através destas alegorias que convocam a perda, o “vazio” e a “ausência”, quer pela grande ironia que percorre toda a composição. “Crepúsculo dos Deuses” começa por nos mostrar a conquista do Homem que celebra a vitória; mas quando este encontra a “sua medida exacta” percebe “que se abriu o vazio que nos separa das coisas”. Recordando o pensamento socrático, Sophia vê, ironicamente, que o mistério permanece, mesmo na perda. Por isso, não dá a resposta, antes destrói a certeza com a resposta enigmática da Sibila. Comprometida com a realidade, confronta a beleza e esplendor da claridade e da alegria com a privação da luz, a ruína e a ausência. É a alegoria do tempo dividido, associado ao comportamento humano, por oposição ao tempo absoluto, transcendente, da unidade da vida, mas que, por ironia, os deuses dominam com a claridade que vence “os monstros nos frontões de todos os templos” ou com a “ausência” e com a nudez da “água que fala”.
 
 
A mitologia
 
            Dada a proximidade de Sophia à cultura grega e os seus constantes apelos para a recuperação dessa mesma cultura e do seu espírito, não é de estranhar que a mitologia esteja presente nos seus poemas, sobretudo a que se liga à cultura.
 
Kouros é um servidor de um deus, figura escultórica que representa um jovem nu (VII a. C.), símbolo da força e da perfeição.
 
Atena é a deusa grega do pensamento, das artes, das ciências e das indústrias, filha de Zeus, divindade epónima de Atenas, assimilada a Minerva pelos Romanos.
 
Sunion é o templo de Posídon, deus grego do mar, equivalente ao deus Neptuno dos Romanos, templo situado no promontório da Grécia antiga, que forma a extremidade sudeste de África.
 
Sibila ou Sibilas eram sacerdotisas lendárias de Apolo, às quais atribuíam o dom de profecia e diversos oráculos. A mais célebre é a de Cumas.
 
Febo = Apolo, filho de Zeus e irmão gémeo de Diana, Estabeleceu-se em Delfos, centro do mundo, na encosta do Parnaso depois de matar a serpente Píton. Aí dava os seus oráculos, por intermédio da Pitonisa. Era o músico do Olimpo, o deus da verdade e da luz, curava as doenças e ensinou aos homens a arte da Medicina. Morava com as Musas. De uma delas, Calíope, teve Orfeu. Várias pessoas que amou ou que o amaram transformaram-se em árvores ou flores. Dafne, para lhe escapar, transformou-se em loureiro; Apolo, inconsolável, fez para si, com um ramo deste arbusto, uma coroa que se tornou a coroa dos poetas.
 
Hipocrene era uma fonte favorita dos poetas, no monte Hélicon, onde habitavam as Musas, que eram filhas de Júpiter e da Memória. Esta fonte terá brotado duma patada dada pelo cavalo alado Pégaso: as águas teriam a virtude de dar inspiração poética a quem dela bebesse.
 
▪ Embora não pertença à mitologia, convém, no entanto, destacar a figura de Juliano, imperador romano, sobrinho de Constantino, que reinou de 361 a 363. Tendo abandonado o Cristianismo, tentou restaurar o paganismo.
 
 
Símbolos
 
. O mundo antigo a que recorre Sophia simboliza a perfeição e a unidade ou tempo absoluto que procura. Os Gregos deixaram ao mundo ocidental o ideal estético, o espírito olímpico.
 
. A nudez do corpo permite encontrar a “medida exata”, pois o nu traduz não só a beleza artística, mas a verdadeira, autêntica e objetiva dimensão do ser humano e a proporção dos seus membros.
 
. As colunas de Sunion são o primeiro sinal de terra firma quando os marinheiros se aproximam do continente grego a partir das ilhas do Egeu; além disso, como em todos os templos da Grécia clássica, exprimem o equilíbrio e a perfeição.
 
. A luz simboliza o fim das trevas, a harmonia e o caos, o encontro do mundo “mais nosso cada dia”.
 
. Os antigos deuses traduzem as forças interiores de cada ser humano, sendo embora muitas vezes inexplicáveis, dando-lhe a força para vencer e encontrar o cosmos.
 
. O silêncio da água prenuncia o silêncio do mundo. Alegoricamente, a água acompanha as atividades do ser humano e surge como alfa e ómega, ou seja, princípio e fim da existência; é símbolo de Deus, a sua essência recusa a divisão.
 
 
Intertextualidade
 
▪ Sophia faz uma leitura do mito das três idades, da idade de ouro, do relato bíblico cosmogónico e aponta o nosso tempo como distante da perfeição grega; lança um apelo a uma renovação pagã no sentido da valorização do ser humano, na sua total dimensão.
 
▪ Sophia e Alberto Caeiro:
– o amor à Natureza e o desnudamento da sua beleza;
– a visão simples das coisas;
– a presença do real.
 
▪ Sophia e Ricardo Reis:
– o amor à cultura clássica;
– a medida e o rigor da construção dos versos;
– as referências à cultura clássica;
– reconhece a beleza do efémero, mas, diferentemente de Reis, não renuncia às paixões, antes as quer mesmo que a oprimam;
– revela-se pagão (recorre com frequência à mitologia), sem deixar de ser católica.
            O seu paganismo assume-se positivo, encontrando no retrato dos deuses uma ética e uma estética. O que pretende é uma relação justa com o real e uma relação justa com o homem. O mundo dos deuses do paganismo serve-lhe de modelo axiológico da inteireza, da verdade e da justiça. Procurando essa relação justa com as coisas, com a Natureza, com os homens e com o divino, a sua poesia reflete um grande humanismo.
 
▪ Sophia e Álvaro de Campos: o canto livre e aberto, expansivo e algo sensacionista.
 
▪ Sophia e F. Pessoa: a exatidão, o brilho e música do discurso, acreditando como ele que a arte deve criar um todo parecido com os todos que há na Natureza – isto é, um todo em que haja a precisa harmonia entre o todo e as partes componentes, não harmonia feita e exterior, mas harmonia interna e orgânica.
 
▪ Sophia aceita o princípio de Aristóteles de que um poema é um “animal”.
 

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Capítulo XIX de A Sibila

 1. Germa, herdeira universal da Vessada
 
            O testamento de Quina (um testamento é um desejo / uma forma de domínio para além da morte) é feito em favor de Germa: “O testamento indicou Germa como herdeira absoluta, com exceção do usufruto de duas propriedades adquiridas depois da morte de Maria, e que se destinava a Custódio.” (pág. 238). É, pois, um ser feminino que assume “um nome”, “uma raça”, “um empréstimo”. Recorde-se que Germa é filha de Abel, o filho de F. Teixeira e Maria da Encarnação que foi registado com o sobrenome materno, facto que reforça a continuidade pelo feminino.
            Germa não é só a dona do domínio físico da propriedade, mas herdeira de um discurso de impulso, curiosidade, alegria, impressão.
 
 
2. A morte de Estina e o casamento de Inácio Lucas com “uma velha parenta sua” (p. 241).
 
 
3. Desenlace trágico de Custódio, vítima da sua demência (pp. 244-245).
 
 
4. Fim da analepse: a evocação de Quina.
 
 
5. Quina, paradigma do ser humano: “Ela era, de resto, a mais profunda e inegável expressão do humano. A vocação para ultrapassar o humano está em todos nós, assim como a tentação para o medíocre.” (p. 246).
 
 
6. Quina e Germa apresentadas em paralelismo (antepenúltimo e penúltimo parágrafos). De Quina, que viveu “equilibrando-se” a Germa, que tem “o génio do equilíbrio”, transmite-se a “vez” e o “tempo” de “traduzir a voz da sua sibila”, mas pressente-se aqui a dívida sobre a capacidade dessa tradução por causa da “degenerescência dos tempos” ou por outras razões informuladas e infinitas: o modo finalizante, “porque… porque…”, deixa o romance aberto.
 

Capítulo XVIII de A Sibila

             Tema: a morte de Quina.
 
1. A mudança operada em Custódio: comparação organizada em função da relação entre dois eixos temporais:

 

ANTES

 

DEPOIS
 
. Ausências de casa.

. Membro de bandos.

. Noitadas.

. Relação crispada com Libória.

 

. Indiferença pelo trabalho.

. Inoperante.

. Inconsciência pelos valores materiais.

quadro de anormalidade

 

 
. Discurso de reiterada presença no quarto de Quina ou noutro lugar da casa.

. Permissibilidade manhosa.

. Cúmplices jogos de cartas.

. Zeloso administrador.

. Multiplicação do pequeno trabalho.

. Consciência da propriedade.

 

quadro de repentina lucidez
 
 
2. Pressão de Custódio sobre Quina, condicionado pela noção de perda:
. sucessão de elocuções:
- “Gosta de mim?”;
- “Ajude-me”;
- “Esta casa, esta casa”;
- “Vossemecê não me deixa tudo?”;
- “Deixe-me tudo”;
- “É a minha mãezinha, a minha pomba branca, e vai-me vender ao mundo. Tenha dó de mim.”
 
            As falas de Custódio em discurso direto exteriorizam uma linha de patético que o desregrado dos gestos ilustra e sublinha.
 
 
3. Noção de propriedade (pág. 220) – ver definição de outros capítulos: “… aquela casa não era sequer a ela, Quina, que pertencia. Era a um nome, a uma raça…” (pág. 230).
 
 
4. Morte de Quina ao amanhecer.
 

Capítulo XVII de A Sibila

 1. O tempo cronológico inscrito no corpo de Quina: "Ainda todo o mês ela andou a pé" "recolheu ao leito" "sentiu-se repentinamente mal" "começou a agonia".
 
 
2. A recordação do passado – o tempo, uma medida inversa
 
            A memória percorre as partes vividas, confluentes numa espécie de cristalização das pequenas coisas do afeto integrador de retratos, locuções, pequenos gestos, peças de vestuário, objetos, passos, sons, atmosferas – recordar coincidente da memória de Quina e da memória do texto.
            O processo de recordação é uma espécie de alucinação sensual que a linguagem modalizante, dada através da expressão como se e do imperfeito do conjuntivo, estrutura.
 
            2.1. A mãe:
- irónica;
- narrando as proezas do seu Chico e desculpabilizando-o: "não tivera culpa de ser bonito".
 
            2.2. Abílio: era como se fosse repetida a morte de Abílio (cap. III).
 
            2.3. Estina (cap. III, no depois do adeus de Luís Romão):
- rosto impenetrável;
- intratável;
- dura.
 
            2.4. Narcisa Soqueira (cap. II):
- imunda;
- a sua pitoresca viagem (cap. III);
- a bronquice da filha (cap. IV).
 
            2.5. João (cap. IV):
- adolescente;
- os perdigueiros mosqueados.
 
            2.6. O retrato de Abílio parecido com o pai:
- orelhas acabanadas;
- pescoço alto;
- pomo de Adão saliente;
- olhos vítreos;
- mãos ossudas e longas.
 
            2.7. Pai: "Toda a casa, para Quina, era a doce evocação do pai":
- a voz quente e paciente, "um tanto trocista";
- pequeno, seco e ágil;
- felino;
- astuto;
- ternurento e generoso;
- presença calma e indolente;
- inconstante, pródigo, vulnerável aos vícios;
- causador da ruína da casa;
- terno e terrível, prudente e astuto, sarcástico.
 
                        2.7.1. A influência do pai:
- na mãe:
- "O génio justiceiro e prudente de Maria obscurecia-se";
- "os seus ralhos perdiam a autoridade";
- a relação com Quina:
. "não o encarava nunca";
. "O seu amor por ele era feito de temor e duma ousadia infinita e secreta...";
- a compreensão do pai;
- "o galanteio, o consolo, a exortação e a incomensurável ternura". (Note-se a erótica cumplicidade.)
 
 
3. Novo retrato de Custódio
. depravado;
. marcado por taras;
. brutal;
. criminoso;
. melindroso: "Gostava de petiscos, que exigia a diário, e sem os quais se enfurecia e chegava a chorar de despeito";
. 24 anos;
. alto;
. vigoroso;
. cuidava-se como uma mulher;
. a beleza estava em declínio;
. desdenhava os amores;
. vida pimpona, vadia e melancólica;
. não se divertia;
. era cruel – o episódio das rãs;
. não tinha amigos, depois do Morte;
. perturbado, face ao tipo de relação mantida com Libória, que lhe explora a avidez e lhe descreve uma galeria de tipos aldeãos e anormais que usa como expressão de superioridade à situação em que ficará depois da morte de Quina.
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