A questão homérica designa o
problema da autoria dos Poemas Homéricos.
Se os gregos antigos acreditavam
piamente na existência de Homero (a mais antiga referência ao poeta foi
encontrada num fragmento de Calino, do século VII a.C., que o dá como autor de
uma Tebaida), no entanto, já na época alexandrina houve quem afirmasse
que a Ilíada tinha um autor e a Odisseia outro.
As dificuldades de estabelecimento
da autoria das obras são muitas. A primeira tem a ver com a linguagem, onde há
formas de diversas épocas e elementos de quatro dialetos diferentes (iónico,
eólico, arcado-cipriota e ático). Outra questão prende-se com a arqueologia,
não havendo concordância entre estratos linguísticos e estratos arqueológicos.
Um exemplo disto tema ver com o elmo de presas de javali, ornamento dos
guerreiros micénicos, que aparece no Canto X da Ilíada, mais conhecido
como Doloneia, que linguisticamente é dos mais recentes.
A data da composição dos textos
oferece igualmente grandes dificuldades, visto que os poemas decorrem na época
micénica, com heróis micénicos e ignoram a invasão dórica (a única referência
aos Dórios é a da Odisseia, num passo bastante suspeito; em relação aos
heróis, nomes como Aias, Akhilleus, Glaukos, Hektor, eram frequentes entre os
Micénicos). Daqui o ter-se-lhes atribuído, inicialmente, uma data muito
recuada, ideia que tem vindo a ser modificada graças a investigações recentes.
Relativamente à questão literária, o
estudioso norte-americano Milman Parry, partindo da observação direta dos processos
de composição de bardos da antiga Jugoslávia, concluiu que os Poemas Homéricos
assentavam numa técnica de improvisação oral, que explicaria as repetições e
pequenas incongruências da narrativa: as obras repetem frequentemente epítetos
e até versos inteiros, porque eram obra de improvisação oral, que necessitam de
ter pontos de apoio, frases armazenadas, que deem tempo de pensar no verso
seguinte, enquanto se vai cantando o anterior. Assim, por exemplo, quando o
poeta quer dizer que o dia nasceu, tem já preparado um verso como este: [p. 52]
[«Quando surgiu a Aurora de dedos róseos, filha da manhã»]. Se quiser
introduzir em discurso direto a resposta de um herói, pode dizer o seguinte:
[p. 52 – 2.ª] [«Em resposta disse-lhe o poderoso Agamémnon»]. Se o interlocutor
for Aquiles, basta substituir o segundo hemistíquio: [p. 53] [«Em resposta
disse-lhe Aquiles de pés velozes»]. Ou pode conservar este segundo hemistíquio
e variar o primeiro: [p. 53 – 2.ª] [«Franzindo o sobrolho, disse-lhe Aquiles de
pés velozes»].
Por outro lado, os nomes dos heróis
com os seus atributos ocupam metade do verso (do começo até à cesura, ou desta
até ao fim) ou mesmo um inteiro, como é o caso deste: [p. 53 – 3.ª] [«o herói
Atrida, Agamémnon de vasto poder»]. Estes epítetos ajudam a caracterizar o
herói e a destacar uma qualidade sua, que naquele momento tem relevância
especial. Por exemplo, o verso 12 do Canto I da Ilíada acabado de
transcrever, evoca o poder do Rei de Micenas, na ocasião em que vai deixar
explodir a sua cólera sobre a assembleia. Os epítetos de Aquiles acentuam a sua
superioridade física. E assim sucessivamente.
Outro aspeto prende-se com a
historicidade da Ilíada. O estudioso alemão Schliemann fez uma série de
escavações na colina de Hissarlik (na atual Turquia) e encontrou sete cidades
sobrepostas, a que Dörpfeld, seu adjunto, acrescentou duas. Inicialmente, supôs
que a mais antiga seria a homérica, mas acabaram por se inclinar mais para a
Troia VI, onde encontraram restos de cerâmica idênticos aos de Micenas e
Tirinto.
O investigador Blegen demonstrou que
Troia VI era uma cidade rica, que sucumbiu após um terramoto, seguindo-se-lhe,
sem solução de continuidade nem de cultura, Troia VIIa, que termina num
violento incêndio. A Troia VIII apresenta solução de cultura, enquanto a IX é
muito tardia. A queda de Troia VIIa teria ocorrido depois dos meados do século
XIII, talvez cerca de 1230 a.C., o que distaria poucos decénios da data
tradicional da guerra de Troia (1184, segundo Eratóstenes).
Deste modo, é lícito concluir que a Ilíada
funde a opulência da Troia VI com a destruição da Troia VIIa. Com aquela
tinha-se iniciado uma civilização diferente da anterior, introduzindo o cavalo
(note-se que os troianos constituem o único povo que Homero caracteriza como
«domadores de cavalos»), por exemplo, civilização essa que seria continuada
pela VIIa.
A decifração de textos hititas e
dados arqueológicos vieram comprovar estas hipóteses. Por exemplo, os textos
hititas contêm referências ao ataque dos Ahhiyawa, posteriormente identificados
com os Aqueus, a Millawanda, provavelmente Mileto, a Wilusa e Tarwisa, que
seriam, respetivamente, Ílion e Troia (note-se que a Ilíada não
apresenta uma distinção entre Troia e Ílion, supondo o estudioso alemão Bergen
que a primeira designaria primitivamente a região e a segunda a cidade). Este
acontecimento teria tido lugar no século XIII a.C., coincidindo com a época do
grande poderio de Micenas e anterior à queda de Pilos.
Estas teses não são, todavia,
unânimes. Assim, há estudiosos que destacam a reconstituição diferente que se
fez nos últimos tempos da geografia política do império hitita e a sua
cronologia. Outros contrariam a identificação dos Ahhiyawa com os Aqueus,
afirmando inclusive que nem sequer pertenceriam à zona micénica, mas antes à
Trácia; além disso, o seu tempo não seria o século XIII a.C., mas os começos do
império hitita. Por outro lado, a vinda dos Povos do Mar, mencionada em textos
egípcios, não teria constituído um movimento simultâneo, no qual se inscreveria
a guerra de Troia, mas uma sucessão de destruições que teriam ocorrido ao longo
de vários anos. O próprio fundamento de alguns epítetos de Troia e dos troianos
é igualmente negado, em detrimento da tese que os considera como simples
remodelação tardia, à semelhança do que sucedeu com os epítetos dos Aqueus.
A presença de elementos micénicos
nos Poemas Homéricos não é igualmente consensual. Assim, durante muito tempo
considerou-se serem micénicos as personagens e os seus epítetos, a riqueza de
Micenas, a escassez do ferro, a noção de que ´'αναξ (soberano) é mais do que Βασιλεúς
(rei), o fausto dos funerais de Pátroclo
(embora ele seja cremado, e não inumado, como era tradição micénica), a
arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron e objetos como o
elmo de presas de javali, a taça de Nestor, a espada cravejada de prata de
Heitor, a técnica de incrustações e o escudo de Ájax. Todavia, alguns achados
arqueológicos dos finais do século XX põem em dúvida esta noção. Por exemplo,
foi encontrado na Heron de Lefkandi, situado na costa ocidental da Eubeia,
um túmulo que continha as cinzas de um guerreiro, envoltas num manto, e, perto
delas, o esqueleto da sua consorte, adornada com joias de ouro, e os cavalos –
o que evidencia a coexistência do ritual da inumação com o da cremação e a
riqueza do possuidor. Relativamente à arquitetura, as escavações de Zagora, há
autores que defendem que os traços gerais dos palácios da Odisseia são,
ao contrário do esperado, da Idade do Ferro, embora certos pormenores, como a
existência de corredores e de canalizações, sejam micénicas.
Nenhuma destas interpretações,
porém, é decisiva ou inquestionável. O aparecimento lado a lado de práticas e
objetos que se supunham pertencer a períodos distintos, como testemunham os
achados de Lefkandi; a presença de escudos em 8 a par com os redondos, em
pinturas de vasos; o modo como Hefestos trabalhou o escudo de Aquiles,
forjando-o como se fosse de ferro, numa época do proto-geométrico ou
geométrico, mas fazendo-lhe incrustações de ouro, prata e bronze, à maneira
micénica, devem pôr-nos de sobreaviso sobre a interpretação histórica de uma
obra que é essencialmente literária. No entanto, as teses que procuram explicar
a presença de figuras ou objetos que são muitos séculos anteriores aos Poemas
Homéricos não são muito convincentes. Micenas deixou de ser muito rica, e só a
tradição oral contínua podia preservar essa memória, bem como os nomes de
muitas cidades menores incluídas no Catálogo das Naus do Canto II da Ilíada.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos da História
da Cultura Clássica, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.