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sábado, 29 de outubro de 2022

Resumo do capítulo III da Parte II de Madame Bovary


             Leon pensa em Emma constantemente. A prática médica de Charles na nova área de residência começa devagar, mas ele está animado com a chegada do filho. Finalmente, o bebé nasce. É uma menina, contrariando os desejos de Emma. Põem-lhe o nome de Berthe, e os pais de Charles ficam com eles durante um mês após a festa de batizado. Um dia, Emma decide visitar o bebé na casa da ama de leite, que lhe pede algumas comodidades extra. No caminho de regresso, Emma sente-se fraca e pede a Leon para a acompanhar. Entretanto começam a espalhar-se rumores pela vila de que os dois estão a ter um caso amoroso. Após a visita a casa da enfermeira, os dois dão um passeio junto ao rio, durante o qual se descobrem apaixonados um pelo outro.

Resumo do capítulo II da Parte II de Madame Bovary


            O correspondente de Charles em Yonville, um boticário pomposo e detestável chamado Homais, janta na pousada com os Bovary recém-chegados. O dono da pensão, um jovem advogado chamado Leon, é convidado a juntar-se-lhes. Enquanto Charles e Homais discutem medicina, Emma e Leon passam boa parte da refeição descobrindo as suas afinidades. Ela descobre que o interlocutor também adora romances e ideais elevados. Compartilhando essas inclinações, os dois sentem uma proximidade imediata e acreditam que a sua conversa é bastante profunda. Quando os Bovary chegam à sua nova casa, Emma espera que a sua vida mude para melhor e que a infelicidade finalmente diminua.

Resumo do capítulo I da Parte II de Madame Bovary


             A segunda parte da obre inicia-se com uma descrição de Yonville-l'Abbaye, a cidade para a qual os Bovary se estão a mudar. Os espaços mais importantes da cidade são a pousada Lion d'Or, a farmácia de Monsieur Homais e o cemitério, onde o coveiro, Lestiboudois, também cultiva batatas. O povo da aldeia aguarda a chegada da carruagem da noite, que de se dá já tarde, transportando Charles e Emma, dado que foi vítima de um atraso motivado pelo facto de o pequeno cão de Emma ter fugido durante a viagem.

Análise dos capítulos VII a IX de Madame Bovary


             A narrativa é contada totalmente pela perspetiva de Emma, o que permite ao narrador começar a desenvolver o conflito básico inerente à sua situação: ela é incapaz de aceitar o mundo como ele é, mas não pode mudá-lo para ser como deseja que seja. Agora que está casada com um idiota da classe média, não aceita o seu destino, por isso mergulha na fantasia, enquanto a pressão da sua constante revolta contra a realidade a deixa inquieta, mal-humorada e, eventualmente, fisicamente doente.
            A representação do baile por parte de Flaubert e os eventos que se seguem mostram o contraste irónico entre a experiência de Emma e a realidade. Flaubert apresenta, em simultâneo, a realidade externa de como Emma olha para o baile e a realidade psicológica de como o evento lhe parece. Ela está tão feliz que não percebe que ninguém no baile lhe presta atenção, e a sua dança insignificante com o visconde torna-se, na sua imaginação, um tremendo momento romântico. Na verdade, esta personagem continua a ignorar o amor bem-intencionado do seu marido bem-humorado, mas insípido, em favor das suas lembranças do baile passadas várias semanas depois de todos já o terem esquecido. Quando Charles decide mudar-se para Yonville na tentativa de salvar a saúde de Emma, esta, enquanto faz as malas, atira a sua coroa de noite para o lume. Este gesto simboliza a sua rejeição ao casamento e ao mundo complacente da classe média que, na opinião dela, a aprisionou.
Os olhos preconceituosos da personagem intensificam a atenção realista de Flaubert aos detalhes, nomeadamente os detalhes da estupidez de Charles são muito ampliados. Por exemplo, o narrador descreve cada barulho que faz quando come. Flaubert também dedica vários parágrafos a uma descrição da rotina diária extremamente aborrecida de Emma. O seu tédio torna-se um dos temas do romance e um meio de desenvolver a personagem. O foco do autor no tédio marca outro dos momentos em que o romance evolui do Romantismo.
A relação de Emma com as suas raízes agrícolas também é explorada nesta seção. Flaubert coloca uma lembrança do passado no meio da fantasia noturna de Emma, para mostrar que ela nunca poderá, realmente, fugir às suas origens. No baile, permite-se esquecer que não é um membro privilegiado do mundo da classe alta que está a «visitar», mas, quando um criado parte o vidro de uma janela, ela vê os camponeses do lado de forma, o que lhe traz à memória a vida simples no campo da sua juventude.

Resumo do capítulo IX de Madame Bovary


             Fixada na sua caixa de charutos e nas revistas femininas da moda, Emma fantasia com a vida da alta sociedade em Paris, enquanto cresce o seu desânimo e frustração e se mostra mal-humorada e caprichosa com o marido. Embora os negócios de Charles prosperem, a esposa fica cada vez mais irritada com a sua falta de modos e estupidez. À medida que a sua inquietação, o tédio e a depressão se intensificam, ela fica fisicamente doente. Esforçando-se para a curar, Charles decide que se devem mudar para Yonville, uma cidade que precisa de um médico. Antes da mudança, porém, Emma descobre que está grávida. Enquanto faz as malas, ela deita o seu buquê de noiva seco no fogo e vê-o arder.

Resumo do capítulo VIII de Madame Bovary


             Embora encantada com a atmosfera de riqueza e luxo do baile, Emma fica constrangida com o marido, que perspetiva como um idiota desajeitado e sem sofisticação. Ela está rodeada por nobres e mulheres ricos e elegantes, entre eles um velho que foi um dos amantes de Maria Antonieta. Quando o salão de baile fica muito quente, um criado parte as janelas para deixar entrar o ar. Emma olha para fora e vê camponeses olhando boquiabertos; lembra-se da sua vida na quinta, que agora parece um mundo distante. Um visconde dança com ela, que se sente como se tivesse sido enganada da vida para a qual nasceu. A caminho de casa, o mesmo visconde passa por eles na estrada e deixa cair uma caixa de charutos, que Emma guarda. De volta a Tostes, mostra-se zangada com todos ao seu redor.

Resumo do capítulo VII de Madame Bovary


            Durante a lua de mel em Tostes, Emma sente-se dececionada por não estar num chalé romântico na Suíça. Ela considera que o marido é aborrecido e pouco inspirador e começa a ressentir-se da falta de interesse dele numa vida mais apaixonada. Por seu lado, Charles continua a amá-la. A sua mãe visita-os e odeia Emma por ter conquistado o seu amor. Depois de ela se ir embora, Emma tenta amar Charles, mas a deceção permanece, pelo que se questiona acerca do motivo por que se casou. Então, um dos pacientes do marido, o Marquês d'Andervilliers, convida o casal para um baile na sua mansão. 

Análise dos capítulos IV a VI de Madame Bovary


             A mudança do ponto de vista de Flaubert de personagem para personagem segue o padrão do enredo do romance. Após o casamento de Charles e Emma, o ponto de vista dela conta da narrativa. Esta mudança de perspetiva tem início no capítulo V e é coincidente com o contraste que se começa a notar entre o amor cego do esposo por ela e a desilusão desta, que esperava que o matrimónio fosse outra coisa diferente e lhe trouxesse o romantismo que lera nos romances. Na reflexão de Emma sobre a sua insatisfação conjugal, temos uma primeira visão real dos seus pensamentos, sendo fácil concluir que tudo está pronto para espoletar da crescente crise de personalidade que acabará por caracterizar a sua vida.
            A maior parte da ação de Madame Bovary é narrada por um narrador na terceira pessoa, centrado principalmente nos pensamentos e nas ações de Emma. No entanto, o ponto de vista do narrador flutua, adotando este vários tons. De facto, o narrador fala frequentemente como um outsider, comentando objetivamente os acontecimentos, mas também nos mostras as coisas de forma subjetiva através do olhar das personagens, informando-nos do que sentem e pensam. Por outro lado, Flaubert usa com alguma frequência o discurso indireto livre, uma técnica narrativa que permite que as palavras do narrador soem muito como os pensamentos e os padrões de fala de uma das personagens, mesmo quando ele não a cita diretamente. Por exemplo, quando Rouault se lembra do seu casamento no capítulo IV, Flaubert escreve: “Há quanto tempo tudo isso aconteceu! O filho deles já teria trinta anos. Então ele olhou para trás e não viu nada na estrada.” A narração passa diretamente da transcrição do pensamento de Rouault para a descrição de sua ação, sem separar o pensamento por aspas. Como resultado disso, muitas vezes temos de parar para considerar se estamos a ouvir a voz do narrador ou a de uma das personagens.
            Uma das características mais importantes de Emma é o conflito entre a sua natureza romântica e a tendência para o descontentamento. O seu flashback mostra até onde o gosto pelo romance se estende. Ainda com treze anos, ela foi incapaz de resistir à atmosfera melancólica e romântica do convento e mergulhou em romances e canções românticas, cujas histórias desejava desesperadamente que se realizassem na sua própria vida. Emma, no entanto, fica facilmente descontente. Coisas que ela acredita que a vão salvar, como o convento, a quinta do pai ou a vida de casada acabam por não estar à altura dos seus desejos. A sua euforia após o casamento, por exemplo, cai no momento em que encontra o buquê de noiva de Heloise na casa de Charles, e imediatamente começa a interrogar-se por que a sua vida não corresponde às ficções sentimentais que lera e esperava que se tornassem realidade.
            Flaubert é frequentemente considerado um escritor realista. Os realistas desafiaram os seus antecessores românticos escrevendo livros que se concentravam nos detalhes da vida quotidiana sem fechar os olhos para os seus aspetos sombrios. Ora, oescritor participa nesse movimento descrevendo as emoções, as ações e os cenários onde se movimentam as suas personagens de forma vívida e sem embelezamento romântico ou fantástico. A cena do casamento, que ocupa quase todo o capítulo IV, é um exemplo clássico do que torna Flaubert um realista. É o que sucede, por exemplo, quando desce ao pormenor: o enlace é descrito minuciosamente. O autor escreve sobre cada parte da celebração, por vezes listando apenas item atrás de item. Mais: narra o tipo de veículo que transporta os convidados, como usam o cabelo, de que tecidos são feitas as roupas e a sua aparência física. A descrição do banquete é tão elaborada que parece que há comida demais para apenas quarenta e três convidados degustarem. No entanto, Flaubert não nos dá conta apenas dos detalhes, dado que também tece comentários implicitamente sobre o seu valor social. Quando nos fala sobre as jovens raparigas presentes, sobre “os cabelos gordurosos com pomada de rosas e com muito medo de sujar as luvas”, podemos ver como elas são desajeitadas e pouco refinadas. Ao descrever as tentativas do povo do campo de se vestir, zomba dos seus esforços.
Tais comentários sutis sobre os traços das personagens menores constitui apenas uma das maneiras através das quais Flaubert pinta Madame Bovary como um retrato crítico da vida burguesa. No capítulo VI, afirma que Emma ama as flores e os ícones da sua religião, mas que a verdadeira fé espiritual é “estranha à sua constituição”. Esta nota mostra que a personagem, apesar de todas as suas pretensões de grandes sentimentos, é realmente incapaz de sentimentos profundos. A observação do narrador também satiriza os fiéis burgueses que se mostram profundamente religiosos, mas, na realidade, possuem pouca piedade genuína.

Resumo do capítulo VI de Madame Bovary


    Emma recorda a vida no convento onde foi educada. No início, entregou-se à vida religiosa, tratando a religião com a mesma paixão que dedicava à leitura de romances e a ouvir baladas de amor. Quando a mãe morreu, porém, mergulhou num estado de profunda dor. Agradava-lhe pensar em si mesma como um exemplo de pura melancolia. Todavia, logo se cansou do luto e abandonou o convento. Durante algum tempo, apreciou a vida na quinta do pai, mas logo se viu entediada e desgostosa com essa existência. É nesse estado de desilusão que se dá o encontro com Charles, contudo, ao contrário do que previra, ele não lhe proporciona a escapatória a esse sentir que ela esperava.

Resumo do capítulo V de Madame Bovary


             De volta a Tostes, Emma inspeciona a nova casa e obriga Charles a remover o buquê de noiva seco da sua ex-esposa morta do quarto. Enquanto planeia pequenas melhorias na casa, Charles mostra toda a sua adoração por ela num torpor de amor e felicidade. Emma, por seu turno, sente-se estranhamente insatisfeita com a nova vida. De facto, sempre esperou que o matrimónio fosse sinónimo de romantismo e felicidade, porém sente que a sua nova existência fica aquém das altas expectativas que bebeu nos romances românticos que leu: “Antes do casamento, ela imaginou-se apaixonada; mas como a felicidade subsequente não veio, ela deve, pensou, estar enganada. E Emma tentou descobrir o que significavam exatamente na vida as palavras felicidade, paixão, êxtase, que lhe pareciam tão bonitas nos livros.”

Resumo do capítulo IV de Madame Bovary


             Na primavera, quando o período de luto de Charles pela sua primeira esposa termina, casa-se com Emma. O casamento é um grande evento em toda a quinta de Rouault, e os convidados vêm vestidos com roupas extravagantes a que não estão habituados. Após o casamento, todos regressam à quinta numa longa e festiva procissão que se estende “como um longo lenço colorido que ondulava pelos campos”. O banquete prolonga-se pela noite e inclui um bolo de casamento de três camadas incrivelmente elaborado. No dia seguinte, depois da noite de núpcias, Charles está obviamente muito feliz. Emma encara a perda da sua virgindade de forma calma e fria. Enquanto o casal parte para a sua casa em Tostes, Rouault relembra a felicidade que sentiu no dia do seu próprio casamento.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Terra do Pecado, de José Saramago

     Terra do Pecado foi a primeira obra de José Saramago, publicada em 1947. Não era suposto o livro ter este título, mas sim A Viúva, o qual foi rejeitado pelo editor, algo que desagradou ao escritor.
    A narrativa tem como protagonista Maria Leonor, uma mulher viúva, mãe de duas crianças, que se vê a braços, subitamente, com o processo de luto pela morte do marido, com as dificuldades de gerir a sua casa, administrar a propriedade, a vida e a educação dos filhos e as suas relações sociais, além de ter de lidar com as saudades do marido e com as expectativas da sociedade relativamente ao seu novo estado civil (de viuvez).
    Maria Leonor é uma mulher frágil, que apenas desempenhou os papéis que lhe cabiam socialmente: filha, esposa e mãe. Assim sendo, o seu universo limitava-se à casa da propriedade rural em que vivia, cuidando dos filhos e do marido, supervisionando os empregados e dedicando-se aos seus bordados e à leitura. Quando o esposo morre, ela não suporta a perda e adoece, sobretudo por causa dos seus nervos frágeis e abalados pelos acontecimentos. O tempo passa e a atividade da quinta fica em suspenso, até que questões urgentes de caráter prático a forçam a sair da cama e a assumir as suas responsabilidades de proprietário rural.
    Apesar das várias recaídas que vai sofrendo, consegue restabelecer a ordem na casa e evolui como administradora da propriedade, no entanto interiormente continua a ser afetado pela falta do marido e por se aperceber de algo que era considerado socialmente um pecado muito grande: ela continuava viva. De facto, de acordo com os costumes da sociedade em que existia, a viúva deveria morrer com o marido, mesmo que continuasse a existir fisicamente, ou seja, não poderia voltar a sorrir ou seguir com a sua vida, muito menos considerar a hipótese de se envolver romanticamente com outro homem. Mas é isso exatamente que Maria Leonor vai fazer. Observe-se que ainda hoje se encontram mulheres que viuvavam há anos ou décadas, se vestiam de preto e assim viveram para sempre. Voltando à protagonista, de facto, estabelece uma relação com dois homens: o cunhado e um médico próximo da família: o doutor Viegas.
    Daqui decorre uma estranha e complicada relação com Benedita, a sua empregada de confiança, que a condena pelo que acredita ser a fraqueza e o desrespeito de Maria Leonor para com a memória do marido. Com efeito, Benedita tem um sentimento quase de posse em relação à patroa, intrometendo-se por vezes de forma quase ofensiva e denegridora da protagonista.
    Contudo, a obra gira, sobretudo, em torno do sentimento de culpa da própria Maria Leonor, em relação às suas ações e comportamentos, bem como aos desejos e pensamentos. É também por isso, além da pressão social, que a vemos esgueirar-se pelas sombras da própria casa, receando os olhares e o julgamento dos empregados, inventando as mentiras mais escabrosas que acabam por destruir a vida de pessoas inocentes só para manter a sua reputação e não ser alvo de comentários e coscuvilhice, que inevitavelmente a atingiriam, bem como aos filhos e aos negócios. Valha a verdade, porém, que nem toda a sociedade a julga e exige dela que seja uma morta em vida. De facto, se Benedita condena as suas ações e a desrespeita, há outras personagens que procuram compreender e defender as atitudes de Maria Leonor, apesar de as considerarem perniciosas.
    No fundo, a obra procura retratar um Portugal da época, centrando a ação numa pequena localidade do país, habitada por uma população profundamente católica e conservadora que oprime os outros com as regras sociais que vigoram.
    Esta primeira obra de Saramago difere das que o consagraram por causa das questões formais, nomeadamente a ausência de pontuação e de digressões, todavia são já visíveis alguns dos temas que caracterizarão os seus textos, como, por exemplo, a crítica religiosa, a partir do confronto entre o caráter beato de Benedita e a presença constante o padre local e os comentários céticos e algo sarcásticos do doutor Viegas.
    

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Análise do poema "Massacre de São Tomé", de Agostinho Neto


           Este poema, constituído por trinta e um versos brancos, distribuídos por cinco estrofes, alude a um massacre ocorrido em 1953 na ilha de São Tomé e Príncipe, mais conhecido por massacre de Batepá, e que consistiu na chacina de centenas de são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros. O massacre ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). Estes acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema colonial, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com o seu estatuto.

            Esta tensão acumulada entre os vários segmentos da população do arquipélago e o facto de, nos anos 50, a mão de obra ter diminuído – dado que tinha sido proibida a sua importação de Angola, que necessitava dessa força de trabalho – levou ao extremar dessas tensões entre a administração colonial e as populações de S. Tomé. O massacre constitui, assim, o culminar desse processo que envolveu vários micro processos de repressão e de violência nos meses imediatamente anteriores a 3 de fevereiro de 1953.

            Na noite de 1 para 2 de fevereiro desse ano, um soldado do Corpo de Polícia Indígena, de apelido Amaral, foi morto durante uma rusga noturna na localidade de Caixão Grande. No dia seguinte – 2 –, Zé Mulato, alcunha do enfermeiro José Joaquim, que também desempenhava as funções de verdugo às ordens do governador da ilha, Carlos Gorgulho, chegou a Trindade na companhia de um grupo de homens. Como retaliação pela morte do soldado Amaral, assassinaram um nativo, na rua, o que fez com que a população da localidade se refugiasse no mato. Todos aqueles que não conseguiram fugir foram presos. Enquanto isso, os homens às ordens de Zé Mulato, armados com espingardas e pistolas, disparavam indiscriminadamente sobre as pessoas e incendiavam casas e lojas. Pouco depois, juntaram-se-lhes os colonos brancos, armadas, fazendo-se transportar em jipes, sempre em grupo. As perseguições e as prisões aumentaram consideravelmente e a violência propagou-se às povoações de Batepá, Madalena, Santo Amaro e Uba Flor. A partir de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila de Trindade foram quase totalmente destruídos.

            Em suma, o massacre consistiu em vários atos de violência – assassinatos, violações, casa incendiadas –, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho forçado em Fernão Dias, onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas em cadeira elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns dos mais destacados membros da elite são-tomense e roubos de terrenos que pertenciam aos fôrros. O massacre foi mais intenso entre os dias 3 e 7 de fevereiro de 1953, mas prolongou-se durante vários meses.

            Pra, é a isto que se refere o título do poema. A dedicatória à poetisa e amiga Alda Graça refere-se a Alda Espírito Santo, uma são-tomense, uma jovem à altura dos acontecimentos, mais tarde escritora e ativista política, que, em fevereiro de 1953, escreveu uma carta a alguns amigos, na qual descreveu os acontecimentos como uma “matança em série, uma loucura coletiva da parte da quase totalidade da população branca, que cumpriu ordens do governador e seus acólitos”. Nessa longa carta, Alda Espírito Santo contou também que o povo são-tomense era explorado e oprimido pelo governador Gorgulho, nomeadamente através de rusgas noturnas e sequestros para trabalhar nas obras públicas sem ou com escassa remuneração, submetidos a castigos corporais.

            Todo o poema está revestido de palavras que refletem dor, violência e morte, mas também, em simultâneo, por palavras de esperança. Logo nos primeiros versos, encontramos um quadro trágico e sepulcral, quando o sujeito poético afirma que o mar devolveu os cadáveres “envolvidos em flores brancas de espumas”. As flores brancas são, frequentemente, usadas em velórios, só que, neste caso, não houve nenhum funeral, pois os mortos devolvidos pelo mar não receberam uma celebração formal e com dignidade, por isso as flores são feitas das espumas das águas do mar, podendo ser um reflexo da resposta da Natureza aos assassinatos dos africanos. Além das “flores brancas de espumas”, os corpos estavam envolvidos pelo “ódio incontido das feras sobre sangues coagulados de morte”, o que evidencia a violência com que foram mortos. O sal das águas do oceano e os possíveis espancamentos deram origem à coagulação do sangue e as “feras” simbolizariam os assassinos que causaram as fraturas e levaram à morte das pessoas.

            Na segunda estrofe, o sujeito poético apresenta símbolos de devastação, como, por exemplo, o corvo e o chacal, ambos animais que surgem em cena após uma grande matança, como sucedeu neste massacre. As praias estão cheias de corvos e chacais com fome e sede dos cadáveres que jazem na areia. É possível associar o corvo e o chacal aos portugueses, ou aos próprios assassinos, tendo em conta que o corvo é uma ave carnívora que é considerada benfazeja pelos portugueses, enquanto o chacal, também ele um mamífero carnívoro, mas que em sentido figurado significa uma pessoa que explora os mais desfavorecidos, é apresentado como um animal, que mais do que estar à espera de alimento, representará os próprios exploradores ou assassinos. O pleonasmo “fomes animalescas de carnes esmagadas na areia” pode ter uma dupla interpretação. Por um lado, enfatiza a fome dos corvos e dos chacais e a grande devastação que é visível na praia. Por outro lado, o adjetivo “animalesco” é usado para designar um comportamento animal por parte de um ser humano, neste caso, a fome pela ruína, pelo sangue e pela carne que foi esmagado, isto é, pelo corpo violentado.

            Ainda na segunda estrofe, refere-se que os corpos estão na areia “[…] da terra queimada pelo terror das idades / escravizadas em cadeias”, o que permite deduzir que o sujeito poético se refere aos períodos de escravidão vividos pelo continente africano. A terra designada “queimada pelo terror das idades”, é apelidada posteriormente “terra verde”. O verde é o símbolo da esperança, neste caso da esperança ligada às crianças, que assim a designam: “as crianças ainda chamam verde de esperança”. Deste modo, as crianças constituem o símbolo da pureza, mas, sobretudo, do futuro, por isso nomeiam a terra queimada através de uma expressão que remete para algo positivo: a esperança, o alimento essencial para alimentar a luta pela independência e pelo consequente fim da exploração pelos europeus.

            De seguida, o sujeito poético afirma que os corpos “se embeberam de vergonha e sal”, recuperando a ideia do sangue coagulado, dado que a coagulação do sangue ocorre em contacto com o sal. No caso do poema, ela foi espoletada pelo sal das águas do mar. A vergonha será proveniente da humilhação que sofreram. Por outro lado, as águas ensanguentadas de desejos e fraquezas refletem o paradoxo entre o forte e o fraco: o desejo é o combustível da luta e a fraqueza decorre da tortura física e da humilhação a que foram sujeitos.

            Na quarta estrofe, o sujeito lírico afirma que “nos olhos em fogo / ora sangue ora vida ora morte / enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, associando os olhos à memória, visto que os mortos foram enterrados nos olhos, isto é, na visão, como se fossem guardados num arquivo. Se tivermos em conta que o fogo é um elemento simbólico que pode representar a ideia de purificação e o entusiasmo, os olhos em fogo podem aludir a olhos que purificam e a olhos entusiasmados, interpretação confirmada pelo verso “enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, visto que, apesar de terem sido humilhados e torturados até à morte, não podem ser considerados derrotados: “reconhecemos a razão do sacrifício dos homens / pelo amor / e pela harmonia / e pela nossa liberdade / mesmo ante a morte pela força das horas / nas águas ensanguentadas / derrotas acumuladas para a vitória”. Assim sendo, a morte não equivale à derrota, antes pelo contrário: pode apontar para a vitória. A ausência de pontuação no verso “ora sangue ora vida ora morte”, da penúltima estrofe, sugere a ideia de um tempo que não cessa, que é cíclico. Por outro lado, a expressão “ora sangue” remete para o nascimento e para a morte; “ora vida”, para o ciclo da existência; “ora morte”, para a luta e o fim dessa existência.

            Na última estrofe, o sujeito poético afirma que, para o povo são-tomense, aquela terra verde “será também a ilha do amor”, remetendo novamente para a ideia da esperança e da vida, apesar de todas as tragédias que lá sucederam.

            Em suma, este poema põe em confronto colonizado e colonizador, enfatizando o esmagamento e a opressão de que o primeiro é vítima e apontando para a tentativa permanente de se reerguer, não obstante a violência que sofre por causa da fusão de culturas.

            Olhando para si mesmo como sujeito, o homem africano busca uma identidade e passa a refletir e a agir como uma figura atuante no que diz respeito à sua cultura: o poeta é visto como alguém que tem a missão de criar a consciência da sua raça. Neste poema, a função do mar enquanto elemento que devolve ou expele para a terra africana a violência indicia, em simultâneo, o desvelar da violência que ele engoliu (ou seja, expõe-na) e a tentativa de analisar os traumas causados pela redescoberta da sua identidade, que primeiro nega o mar e, gradualmente, reconhece o seu papel fundamental no ocultar e resgatar de memórias.

 
Fonte:
- SILVA, Lediane Moreira, O Mar de Memórias na Poesia de Agostinho Neto.
- Jornal Observador.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fernão Lopes, o pai da História Portuguesa e a Crónica de D. João I


Análise do poema "Confiança", de Agostinho Neto


             Este poema é caracterizado pela irregularidade formal: vinte versos brancos e de métrica irregular, distribuídos por uma quintilha, um dístico, três tercetos e uma quadra. Há autores que sugerem que a forma livre da composição poética simboliza a constituição da identidade do angolano, que não segue um padrão, mas que está a ser construída e questionada.

            O poema está escrito na primeira pessoa do singular (“fui”, “me”, “mim”, etc.), o que nos permite entender que o «eu» poético representa a voz do povo angolano.

            A quintilha inicial introduz o sentimento de não-pertencimento e apresenta o oceano como o responsável pela separação de si: “O oceano separou-me de mim / enquanto me fui esquecendo nos séculos”. Estes versos sugerem, desde logo, a ideia de cisão do sujeito lírico com a identidade, comum ao povo africano, visto que, a partir do contacto com a cultura europeia, as suas tradições são reprimidas, passando a um não-pertencimento, a um entre-lugar, a um não pertencer a isto nem àquilo. De facto, o negro não faz parte da primeira cultura (a de origem) nem da segunda (a estrangeira, a europeia). Isto é fomentado pelo mar / oceano, o agente da transição de culturas e da transformação do negro colonizado num ser híbrido, dado que o coloca em contacto com a cultura do colonizador. Para o angolano, o mar é um elemento negativo, causador de dor e sofrimento, pois foi através dele que veio o colonizador e que, posteriormente à chegada deste, partiram muitos africanos rumo à escravatura e ao trabalho de contrato (sem haver a previsão e a certeza do retorno). Além disso, foi no mar que ocorreram muitas mortes durante estas viagens. Assim sendo, o oceano é apresentado como aquilo que rompe com o conhecido e como a divisória entre o velho e o novo.

            A noção de passado e presente, de passagem do tempo é visível no uso de termos como “século” (v. 2), “presente” (v. 3), “tempo” (v. 5) e “história” (v. 6). Neste contexto, é importante observar a ideia de que o «eu» poético se foi esquecendo de si mesmo nos séculos, ou seja, foi perdendo a sua identidade ao longo do tempo, por causa do contacto com o europeu e, sobretudo, ao facto de ter sido explorado pelo colonizador. Por outro lado, afirma que, no presente, está a reunir em si o espaço e a condensar o tempo, remetendo para esse terceiro ser que resultou da fusão entre a cultura africana e a cultura europeia. Essa ideia de união é traduzida pelo verbo «reunir», que significa “unir de novo”, ou seja, o que existe no presente é a reunião de tempos distintos, isto é, a junção do que havia em África e do novo trazido pelo europeu.

            A ambiguidade em torno da identidade do «eu» é reforçada na segunda estrofe: “Na minha história / existe o paradoxo do homem disperso”. Estes dois versos reforçam e reafirmam a necessidade presente de reunir o que há em si.

            O terceto seguinte é dominado pela figura do paradoxo, nomeadamente entre «sorrisos» e «dor», representando a situação do negro que é explorado e trabalha para a construção da riqueza europeia: “Enquanto o sorriso brilhava / no canto de dor / e as mãos construíam mundos maravilhosos”. O negro sofre (“dor”) enquanto é explorado e trabalha para a alegria (“o sorriso”) e a riqueza do europeu (“as mãos construíam mundos maravilhosos”).

            A quarta estrofe introduz um exemplo concreto dos sofrimentos a que o africano estava sujeito, nomeadamente através da descrição de atos de violência física (“John foi linchado”, “o irmão chicoteado”) e social (“a mulher amordaçada”, “o filho continuou ignorante”). Atente-se no nome escolhido para uma das figuras do exemplo: “John”, um vocábulo de origem inglesa, atribuído a um homem africano de um país colonizado por Portugal. Isto representa a noção de transposição cultural, reforçando-se, assim, a ideia de repressão e de afastamento da cultura nativa, original. Por outro lado, a figura do chicote (“o irmão chicoteado nas costas nuas”) simboliza o sistema colonial, que dele se socorria para castigar violentamente o negro e o tornar obediente, submisso e servil. A “mulher amordaçada” representa a ausência de liberdade, a ausência de voz na sociedade por parte da mulher, bem como a forma como era privada de participar nas atividades culturais de raiz do colonizado. Quanto ao filho, simboliza a perpetuação da situação no futuro: a ausência de conhecimento da sua origem, de quem é no presente e a educação para o trabalho braçal, perpetuando o que é o presente e a vida dos pais e avós.

            Os dois tercetos finais afirmam que, a partir do drama (“E do drama intenso”) e da vida intensa de trabalho (“vida imensa e útil”), ressalta a importância do negro para constituição da sociedade como um todo (“As minhas mãos colocaram pedras / nos alicerces do mundo”), principalmente das suas riquezas, pelo que ele também tem direito ao alimento: “mereço meu pedaço de pão”, pão esse que simboliza o sustento, a riqueza, a vida. É neste âmbito que poderemos refletir sobre o título do poema (“Confiança”), que remete exatamente para essa ideia de ter direito ao sustento e à vida, para crença do «eu» segundo a qual tem os seus direitos, tem esperança firme no futuro, que decorre da convicção do valor que tem enquanto pessoa.

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