Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes
brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais
paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o
Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à
seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual
a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato
brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o
Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o
campeão foi o Guarani.
Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre
a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma
atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se
tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na
Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor
elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais
futebol por lá”.
Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge
Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época
em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com
entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de
trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais
e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o
holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que
repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como
sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol
deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o
dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção
chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção
argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais
notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção,
comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de
prosseguir em prova.
Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a
perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da
autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia,
e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –,
comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma
espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para
tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando
que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem
no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em
pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O
sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general
(Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse
contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato
Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31
de dezembro de 1978.
Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois,
de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o
Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela
primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta
(mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece
indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a
coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões.
Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente
conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico
o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os
políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António
Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam
deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no
Mundial do presente ano.
Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste
recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se
alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção»
pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa
proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas,
que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta.
Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no
céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor
conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”).
A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e
1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos
trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o
assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se
relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas:
“Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô
seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”.
De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares,
visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que
têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo
tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere
embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.
As estrofes seguintes focam outras questões: poluição,
assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a
violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo
estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só
entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição
e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio
para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade,
não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na
urbe se morre.
A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia
a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de
porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e
metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de
solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real,
concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer
encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não
dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.
Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras»,
agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de
futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois
escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se
o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao
longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O
arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso
denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que
prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima
pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de
Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em
15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de
março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e
truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia.
Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso
aglomerado de figueiras.
Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros
«primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas
genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos,
que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida
sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna
Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem
lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo),
tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa
humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um
professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da
invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma
espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de
Oliveira, Luana Piovani, etc.
A nona estrofe explicita o quadro económico e político do
ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em
1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o
enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos
pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo,
o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa
vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico
Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o
problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai
levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai
levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores,
substantivos, “mesmo com todo o problema”.
As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da
composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque
ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a
referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode
constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom
Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se
pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar /
Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”.
A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por
questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e
que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que,
para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta
ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras,
empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na
discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora
da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas
asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já
de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao
hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um
grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um
movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do
século XX, assente no «deboche».
A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um
sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete
para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em
festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para
mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma
segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E
inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente
para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de
1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia
entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo
que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a
Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas
da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a
criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece
o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”,
palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu
a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por
crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia»
constituem uma rima interna e formam anagramas.
A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético
é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é
apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa
(“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões
ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos
outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas
abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de
1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para
governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum
tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a
hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”.
A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”)
reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a
informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético
«atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o
que já se passou há bastante tempo?
O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte.
Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe
chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco
característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo
ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como
lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e
Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se
assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de
continuidade.
As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que
agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de
ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a
referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção
“Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim,
onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.
A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso
que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre
o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas
anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência
de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram
indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de
oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six
Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um
acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar
para o governo norte-americano.
Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é
assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o
que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais
espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste
suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval
subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o
enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu
raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática,
casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a
figura do prefeito biónico.
A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar»,
conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma
importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta
(deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da
alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande
questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o
Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já
referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António
Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de
janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média,
nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural.
De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema
demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No
entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na
televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o
palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação
dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama,
Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria
Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os
conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada
vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos
milhões de telespectadores.
O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção
coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito
poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas
de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo
de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.
Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação
do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar
(que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre”
foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado
cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito
crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a
falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna
Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o
entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.
A situação é dramática: as instituições estão
contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas
desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente
suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a
opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar
como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de
reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em
horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a
composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro
dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e
reflexão.
Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na
desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de
Luís Fernando Veríssimo”.