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sábado, 17 de dezembro de 2022

Análise do poema "Leito de folhas verdes"


             O título do poema remete, desde logo, para um espaço – o leito –, lugar de regeneração pelo sono e pelo amor, transformado pelo sujeito poético em espaço de espera, de sonho, e de refúgio do ser, com o qual o sujeito poético -feminino – se identifica enquanto local do despertar da vida e da esperança, indiciados pela presença da cor verde. De facto, o leito é feito de folhas verdes, cor que evoca as imagens do novo, da esperança, da natureza e do feminino.

            O tema do poema é a espera, ou melhor o poema é um lamento do que passa durante p período de espera, com todos os sentimentos subjacentes: amor, saudade, fidelidade.

            Por outro lado, o texto denota muitas semelhanças com as cantigas de amigo: o sujeito é feminino (“Eu sou aquela…”); o conteúdo aproxima-o das albas ou alvoradas, pela referência ao amanhecer; o amado / amigo está ausente; a mulher apaixonada exprime o seu lamento.

            Quanto à construção do poema, podemos encontrar dois pólos. Por um lado, somos confrontados com o sentimento da índia e com a construção da sua psicologia. Desde logo, há uma alteração do ambiente que a rodeia: começa-se com a noite, que vai progressivamente dando origem ao dia, o que implica uma descrição diferente da natureza. Por outro lado, com o surgimento da manhã, as flores abrem e a mulher começa a desanimar com a espera. A ligação entre a natureza e a mulher tem um grande efeito lírico e harmonioso.

            A primeira estrofe abre com uma interrogação retórica que mostra a tensão e a ansiedade amorosa do «eu» feminino pela ausência e, sobretudo, pela demora da chegada do amado (Jatir), que ela questiona, sentimentos traduzidos pelas expressões “a tanto custo” e “voz do meu amor”. A viração e o vento simbolizam a mudança, enquanto as folhas representam o movimento de iniciação ou ritual. Além disso, a cena da espera tem lugar à noite: a “viração da noite”, que é doce porque rumoreja (personificação) e indicia a bisca de intimidade, está ligada ao bosque, que se opõe ao espaço elevado (a colina ou a montanha), característico do dia. Nesta perspetiva, dá-se a eufemização da não chegada do objeto amado, através da personificação da voz do amor e do vento, na noite e no bosque. Os elementos da natureza, em suma, corroboram o estado de espírito da mulher, a sua angústia, a sua ansiedade, etc. Essa harmoniosa com a natureza, com aquele cenário harmonioso, parece transformar Jatir, o amado, na figura do homem/ideal que ela ama ou que a desperta para o amor. Deste modo, é possível questionar se ela ama mais o sentimento do amor e a sua sensorialidade ou o homem.

            Na segunda e na terceira estrofes, é descrito o leito de amor, feito sob a copa de uma “mangueira altiva”, árvore que simboliza o elemento fecundador, desde logo porque o sujeito poético se encontra debaixo dela e em contacto com a terra, iluminada pela lua, símbolo da reprodução e da fecundação. E tudo isto sucede à noite, o tempo em que a semente lançada no solo germina, para nascer de dia. O facto de a mulher estar debaixo da mangueira e sobre um leito coberto por um tapete de folhas e iluminada por flores associa-se à ideia da maternidade. Estas imagens remetem para o imaginário do amor e para a fecundação, associadas à expectativa do amor. Nota-se ainda que a mulher está ansiosa e tensa, porém esperançosa, visto que, quando se refere ao leitor, o apelidar de “nosso”, apontando para a ideia de partilha já assegurada.

            Deste modo, o nome «leito», determinado pelo determinante possessivo «nosso», sugere claramente que se trata do leito nupcial, que, ao ser coberto por ela, de forma zelosa, com um “mimoso tapiz de folhas brandas”, no momento em que o “frouxo luar brinca entre flores”, evidencia a comunhão do sujeito poético com a natureza. Tudo isto decorre num cenário harmonioso, mesmo que noturno, como se comprova através do uso dos adjetivos “mimoso” e “brandas”, bem como do verbo “brincar”. Estas imagens, por outro lado, sugerem um ambiente onde reina a paz e o bem-estar. O papel da natureza é o de amiga e bem-feitora, tal como sucede em várias cantigas de amigo.

            A imagem do leito e a sua ligação à terra transformam as folhas (símbolo do progresso e da transformação) em algo também ligado à noite, visto que a sua seiva, potencialmente transformadora, está ao serviço do descanso ou da resignação. Por seu turno, a mangueira, enquanto árvore, é o símbolo da vida em perpétua evolução e em ascensão para o céu, evocando a simbologia da verticalidade. Além disso, está associada à construção de um cenário íntimo, pelo que pode pensar-se também como símbolo fálico. Por último, há que considerar que esse cenário natural traduz toda a doçura resultante do ansiado encontro amoroso: o mimoso tapiz de folhas brandas; o frouxo luar brinca entre as flores; o bogari solta o mais doce aroma (estrofe seguinte).

            Na terceira estrofe, a imagem da flor que se abriu e do doce aroma que se solta do bogari remetem para o desabrochar da mulher, que reconhece estar pronta para o amor, tendo consciência de que deve ficar à espera, no silêncio da noite: a flor abriu-se, o aroma expande-se, o bosque exala. Esse desabrochar e essa consciência são recentes (“há pouco”) e são a consciência do conhecimento do amor.

            Na quarta estrofe, o amor é apresentado como “mágico”, mas natural(“respira-se”), luminoso, mas longínquo (“lua e estrelas no céu”), místico (“preces”), contudo vivido como dom supremo (“melhor que a vida”). O último verso da quadra confirma que se trata de um amor perfeito: “um quebranto de amor, melhor que a vida”.

            Na quinta estrofe, a mulher é associada à flor – símbolo da beleza e do princípio passivo do amor –, que depende do elemento ativo, o sol (o amado), fonte de luz, calor e vida. A figura do sol simboliza a potência masculina, porém ela ainda não é conhecida, apenas vislumbrada, como “doce raio de sol” que dá vida. A figura feminina é uma espécie de mulher virtual, dado que lhe falta o raio de sol – o princípio masculino – para a efetivar como mulher. Assim sendo, o sujeito poético tem consciência de que o ser feminino apenas se revela e se completa com o amor e que este lhe proporciona vida. A imagem dos versos 3 e 4não deixa lugar a dúvidas: a jovem é a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para se realizar e viver: “Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida.”

            As duas estrofes seguintes constroem a ideia do amor único e da dedicação exclusiva ao amado a partir de uma série de contrastes: espacial (vales – feminino vs. montes – masculino, lago – circundado do corpo vs. terra – circundante), pontuando o imaginário do corpo; temporal (dia -masculino vs. noite – feminino), acentuando o género; abstração (pensamento) vs. concretude (posse: “és meu, sou tua”), indicando que a interação entre a figura masculina e a figura feminina é caracterizada pela exclusividade; pragmática (visão / conhecimento – olhos), contacto (lábios), atividade (mãos na cinta). Por outro lado, o amor vence todos os obstáculos (“Sejam vales ou montes, lago ou terra, / Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”); a figura feminina é idealizada – ela dedica total fidelidade ao seu amado: “Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!”, etc.

            O último verso da antepenúltima estrofe (“A arazoia na cinta me apertaram”) configura a materialização de um compromisso, a realização de um voto. Os índios usavam ao redor da cintura uma saia de plumas de ema, em certas cerimónias, e as viúvas, na Idade Média, costumavam depositar um cinto sobre a tumba dos maridos quando renunciavam à sua sucessão, o que aponta para a estreita relação entre cinto, castidade e fecundidade. No mundo greco-romano, quando uma jovem desapertava o seu cinto, entendia-se que setinha entregado a um homem. Assim, a arazoia na cinta associa-se à castidade, passivamente imposta e aceite, neste caso, pela cultura indígena. Nesta estrofe, há a tomada de consciência por parte da mulher de que está pronta para a vida amorosa e para a exclusividade do amor, visto que a arazoia ainda lá está, ou seja, estamos perante a imagem da mulher que ainda é virgem e a espera por que tal aconteça.

            A última estrofe dá conta da desilusão do sujeito poético: com a chegada da manhã (“lá rompe o sol”), a esperança e a expectativa dão lugar à deceção e à tristeza, pois Jatir não responde ao seu chamamento. Deste modo, pede à brisa da manhã que leve consigo as folhas do leito inútil: “nem tardo acordes / À voz do meu amor, que em vão te chama!”; “do leito inútil / A brisa da manhã sacuda as folhas!”. Isto não significa, porém, o fim da esperança, pois Tupã vai sacudir as folhas, desfazer o leito, mas elas continuarão a existir.

            Assim, a mulher amada somente a imagem, a memória, visto que Jatir não acode ao seu chamamento, está longe. A interpelação de Tupã, um deus masculino da mitologia tupi-guarani que representa o trovão, vai no sentido de ele observar o sol que surge no horizonte. O leito de folhas de árvore representa a evolução da condição de menina para a de mulher, condição inútil, mas esperançosa porque o leito é visitado apenas pela brisa, imagem do anseio e da esperança femininas.

            O pedido da jovem a Tupã para que faça com que a brisa (o desejo) sacuda as folhas do leito traduz o seu sonho e desejo de amar. Tupã sabe onde nasce o sol, que este é um elemento masculino e que a sua natureza é procurar a mulher para se completar. Esse desejo de amar e a comunhão com o amado são traduzidos, no poema, através da progressão temática e de contrastes: chamada vs. não resposta; esperança vs. impaciência/ansiedade; espera vs. ausência do esperado; vida vs. não-vida. Estas polaridades revelam o universo de valores do sujeito poético: a mulher e o homem necessitam um do outro para se tornarem seres completos.

            Em suma, este poema configura também uma declaração de amor marcada pela ausência e pela angústia da espera por parte da mulher, cujo estado de espírito vai evoluindo ao longo da composição. Inicialmente, encontramo-la de noite, questionando a ausência e a demora do amado, mas esperançosa no regresso de Jatir, cujos passos são movidos pela voz do puro sentimento da amada que ficou em sua casa (a floresta, debaixo de uma mangueira). O decorrer da noite traz o vento e as folhas fazem barulho nos altos bosques, enquanto a jovem permanece sob a mangueira, local onde foi construído o leito, que ela cobriu com suaves folhas e que brilha através do luar que rompe entre as flores. A noite avança pela floresta e a flora, na sua diversidade, solta os seus aromas, entre as quais estão os das flores do tamarindo e do bogari.

            A lua e as estrelas brilham, os perfumes das flores noturnas espalham-se levados pela brisa, construindo-se, assim, uma imagem romântica, um ambiente mágico em que o sujeito poético é transportado para um mundo onírico, no qual ela pode viver o seu grande amor, pois aí não existe a triste realidade da vida, uma realidade de abandono e de solidão.

            O alvorecer rompe e com o nascimento do sol as flores começam a desabrochar, enquanto a mulher, qual flor vegetando sem o astro-rei, espera que a energia deste lhe dê ânimo para prosseguir a espera. O sujeito poético imagina o seu amado caminhando, de dia ou de noite, atravessando vales, montes, lagos, terras, a quem ela devota todo o seu carinho e desejo, pois ele é o seu único amor: os seus olhos nunca viram outros olhos, nem os seus lábios beijaram outros lábios, nem outras mãos apertaram a sua saia na cintura.

            No verso 29, a narração retoma a terceira estrofe e compara o aroma dessa flor, no momento presente, com o aroma da noite anterior. Aqui começa a mostrar-se desiludida, pois, tal como o perfume das flores, a sua esperança começa a esvair-se com a chegada do dia.

            A nona estrofe retoma a primeira para mostrar a consciencialização do sujeito poético em relação ao não regresso do amado. Assim sendo, o leito, tão bem cuidado e construído com amor, torna-se inútil sem a presença do homem, por isso pede à brisa que o desfaça.

            Formalmente, o poema é constituído por nove quadras, em versos decassilábicos brancos, com ritmo regular, com exceção da quarta estrofe e da rima toante entre “brisa” e “vida”, que remetem para a ideia de mudança, veiculada pela brisa. Estilisticamente, destacam-se as aliterações em torno do som /s/, que sugerem o som da brisa e o balanço das árvores, e em /n/,que sugere lentidão, que se coaduna com a ideia da espera lenta da jovem relativamente ao seu amado, que não chega. Tem igualmente importância a reiteração de determinados vocábulos, como “amor” (cinco vezes), “folha” (três vezes), “flor” (cinco), “leito” (duas), “lua” (duas) e “sol” (três). Estas repetições apontam para a temática que domina o poema (o amor), para o ambiente natural em que se localiza (sol, lua) e para um espaço específico (folhas, flor, árvores), formando a imagem de uma floresta. Temos também a repetição de certas palavras no mesmo verso: “prece” (v. 11), “olhos” (v. 25), “lábios” (v. 26), que reforçam a imagem da pureza (prece) que surge a par da sensualidade (olhos e lábios), uma imagem estereotipada da figura feminina, embora neste caso se refira a um ser feminino indígena, interpretada e idealizada pelo olhar e pela cultura europeus. Além disso, encontramos a repetição parcial do verso 9 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco”), no 29 (“Do tamarindo a flor jaz entreaberta”), a qual marca a progressão do tempo desde o anoitecer até ao amanhecer, tendo em conta que a flor referida abre à noite e fecha com a chegada do sol. Este desabrochar e fechar da flor coaduna-se com os sentimentos e as esperanças do sujeito poético, que está esperançado à noite, mas, com a chegada do astro-rei, no dia seguinte, vê essa esperança apagar-se, ir-se desfazendo lentamente. Por seu turno, o verso 2 (“À voz de meu amor moves teus passos?”) repete-se parcialmente no 34 (“À voz do meu amor, que em vão te chama!”), marcando-se assim dois tempos: no primeiro, correspondente à primeira estrofe, o sujeito poético ainda acredita que a sua voz pode guiar os passos do seu amado durante a caminhada de regresso, atravessando vales e montanhas; no caso do segundo, a presença da locução adverbial “em vão” aponta para a inutilidade da espera e a tomada de consciência de que Jatir poderá não voltar de todo. O verso 10 (“Já solta o bogari mais doce aroma!”) indicia que tanto a flor do bogari como a do tamarindo exalam um melhor aroma durante a noite do que de dia, ao ser repetido no verso 30 (“Lá solta o bogari mais doce aroma”). O sujeito poético compara a vitalidade do seu amor, reforçado pela força abstrata da prece, à intensidade do aroma, que é mais forte à noite. Contudo, ao amanhecer, está sem ânimo, sem vitalidade, com pouca esperança de que o seu amado regresse. Ainda no que diz respeito a recursos estilísticos, o poema contém diversas metáforas. Nos versos 9 e 10 (“Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, / Já solta o bogari mais doce aroma!”), marca-se a passagem da noite para o amanhecer através do desabrochar das flores noturnas que exalam um doce perfume. A metáfora/imagem presente entre os versos 29 a 32 permite associar os sentimentos da mulher à natureza. Assim, se a intensidade do aroma das flores era superior durante a noite, as esperanças da jovem, que durante a noite fortaleciam o seu coração, estão-se desfazendo à medida que o dia se aproxima.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mangueira", de Gonçalves Dias


     Adivinha-se um sujeito de enunciação e alguém que escuta. Isto deduz-se pelo tempo e pessoa dos verbos.
    As duas primeiras estrofes descrevem a natureza, uma natureza alegre, rica e específica do Brasil (ex.: mangueira). A referência ao "passarinho" parece um pouco deslocada, porque geralmente as aves referidas são o sabiá, a arara, a jandaia, etc. Apesar de poder ser um elemento do Brasil, está descrito em moldes europeus.
    Temos depois a descrição das personagens:
        - viandante, símbolo romântico do ser errante;
        - mancebo, símbolo do amor.
    Quanto à estrutura, esta é repetitiva, com ritmo muito marcado.
    Quanto à linguagem, temos poucos adjetivos e um vocabulário muito simples com elementos clássicos: mancebo, mil suspiros, anosa, etc.
    Elementos românticos:
        - natureza no sentido de abrigo e confidente;
        .- imagem do viandante com tudo o que significa de errância, exotismo, viagem;
        - imagem do mancebo como símbolo da saudade e do amor.

Análise do poema "Marabá", de Gonçalves Dias


             Gonçalves Dias (1823-1864) foi um poeta e dramaturgo brasileiro, considerado o grande poeta indianista da geração romântica brasileira. De facto, o Romantismo deu ao tema do índio grande relevância e à literatura uma feição nacional. O autor nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão, no dia 10 de agosto de 1823, sendo filho de um comerciante português e de uma mestiça. Em 1862, deslocou-se à Europa para fazer tratamentos de saúde, porém, não obtendo resultados, regressou ao Brasil em 1864, tendo falecido a 3 de novembro, a bordo do navio francês Ville de Boulogne.

            Este poema, que relata a luta de uma jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas métricas.

            A única palavra que constitui o título – Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas imperfeitas e indignas da sua cultura.

            No que diz respeito à estrutura do poema, temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado. Somos colocados perante quatro situações:

1.ª) Referência aos olhos.

2.ª) Referência ao rosto.

3.ª) Referência ao colo.

4.ª) Referência aos cabelos.

            Em todos os casos, o sistema é o mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por alguém, que acrescenta algo mais.

            Desde os primeiros versos, encontramos um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja, produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.

            Seja como for, fica desde já estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.

            Porém, Marabá não se conforma e prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza, através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar. Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos outros, mesmo que tenha olhos belos.

            De facto, a segunda e a terceira estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro (“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao «céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro mais puro” e com a beleza de um beija-flor.

            Em suma:

1. Os olhos de Marabá são garços (esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.

2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado pela preferência por um rosto moreno.

3. O colo é flexível e elegante, mas também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.

4. Ela tem cabelos louros e anelados, mas o homem prefere-os lisos.

            Por outro lado, o retrato de Marabá pode ser sintetizado da seguinte forma:

• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente brasileira;

• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela sua própria comunidade;

• tem olhos garços (verdes);

• a sua pele é alva (da cor dos lírios);

• os cabelos são louros, longos e anelados;

• vive solitária, desprezada pela sua tribo;

• vive desiludida, por sofrer de discriminação.

            Este quadro permite concluir que temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar, as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido excluída do povo de Tupã.

            O verso seguinte confirma a rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos, compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.

            Mediante isto, podemos concluir, desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos, para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio «jamais» marca bem a sua solidão.

            De facto, depois de todo o poema nos colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia / Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”. Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do interlocutor venceu.

            O poema põe em discussão a importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento, inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor. Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de preservação, a superioridade da sua beleza étnica.

            No que diz respeito a influências, no poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça, com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor, lamentando o desprezo a que é votada.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Análise do poema "Canção do Tamoio", de Gonçalves Dias


             “Canção do Tamoio” é um poema da autoria de Gonçalves Dias, constituído por dez oitavas de versos de redondilha menor. Pertence ao género épico, pois exalta a coragem dos índios. O sujeito da enunciação é o pai que se dirige ao filho que acaba de nascer e chora. Estes conselhos revelam uma mundividência indígena, que tem a ver com o caráter do índio: coragem e força. Há uma tentativa de registar a cultura dos indígenas brasileiros e a relação de poder dirigida aos herdeiros da classe dominante. Por outro lado, o poema enfatiza a posição de guerreiros dos índios, mas acaba por reforçar o seu estatuto de inferioridade e a noção da supressão do mestiço na sociedade do Brasil. A fase indianista da literatura brasileira transmite uma imagem positiva do povo, assente no amor à liberdade, no apego à terra e a valores locais. Esta valorização do índio é um reconhecimento do seu valor e da sua importância na fundação do país, bem como a recriação da história da origem do povo, desassociando-a dos seus traços sociais e históricos, que evidenciavam a condição atrasada e periférica da jovem nação: a colonização (o português) e o trabalho escravo (negros escravos e mestiços), o que possibilitava a construção de uma ascendência heroica que derivava do indígena.
            Na primeira estrofe, o sujeito poético apresenta-se como o pai indígena no momento do nascimento do seu filho, que chora, e que lhe dá as boas-vindas, transmitindo-lhe os valores e a história heroica dos seus antepassados, não os portugueses, mas os tamoios. Assim sendo, mostra-lhe que, na vida, há que seguir com bravura, ser forte e lutar, pois “Viver é lutar. / A vida é combate, / Que os fracos abate”. Além disso, exalta os fortes.
            A exclamação que abre a segunda oitava enfatiza a ideia de que é importante viver na condição de homem forte e dominador. O homem forte não teme a morte, apenas a fuga, pois tal seria sinónimo de cobardia, pelo que é importante ficar e lutar. De seguida, o «eu» pai aconselha o filho recém-nascido a, nas situações de tensão, a agir como um caçador e a acionar os seus instintos de defesa: “No arco que entesa / tem certa uma presa”. Assim, chama a atenção para a contradição e a tensão existente entre as classes sociais que sinaliza o poder de um grupo, havendo evidências da constituição do homem brasileiro mestiço que se formava: “Quer seja tapuia, condor ou tapir”.
            A diferença entre o homem fraco e o forte retorna no início da estrofe seguinte: o primeiro é cobarde (porque foge, desiste, não luta) e invejoso da condição do segundo – lutador, determinado, corajoso, garboso e feroz. O verso 21 introduz a figura dos velhos, destacando-se a sua sabedoria (traduzida pela metáfora “Curvadas as frontes”, isto é, franzindo o rosto, a testa) e o facto de escutar a voz do homem fraco, cobarde e invejoso, aconselhando-o, porém, no sentido de o convencer da importância de ser um homem forte.
            A quarta oitava destaca a força do destino: o que está destinado, destinado está e, por isso, é fundamental ser sempre corajoso, porque a morte virá quando tiver de vir. A vida relaciona-se com a dominação e a morte com o descanso merecido após a jornada de conquistas. O que foi feito ficará na memoria. Os versos 29 e 30 introduzem um tema que atravessa autores e épocas: a passagem do tempo é inexorável e a morte inevitável. Assim sendo, a vida deverá ser vivida de forma digna e honrada, isto é, com bravura e força, devendo constituir uma referência para as gerações futuras. O sujeito poético é o pai que enfatiza a necessidade de construir um presente que molde o futuro, por isso é importante registar a história do país, as suas tradições, a sua cultura e os seus costumes.
            A estrofe seguinte enfatiza a noção da herança da tribo, nomeadamente a sua coragem e valentia: “Tamoio nascestes, / Valente serás.” Esta noção é acentuada pela referência ao brasão. Relembremos que brasão é o conjunto dos emblemas e signos distintivos de uma família nobre ou de uma coletividade. Deste modo, essa referência simboliza o orgulho nas suas qualidades, em tempo de paz ou de guerra.
            Desde o início do poema, o «eu» poético enfatiza a valentia do indígena, construindo uma imagem de luta, de combate, na qual o grito de guerra é a arma mais potente e com ele amedronta o oponente. A assonância em «ao» nos versos 45 e 49 e a comparação (“Pior que…”) com o efeito de susto e barulho como os sons da flecha lançada e o trovão, som da natureza que evidencia força e barulho que se ouve a grandes distâncias, destacam o tom grave do texto e essa noção de força e luta.
            A luta e a guerra tiveram lugar num passado distante e não tiveram como inimigo o colonizador, antes sucederam entre as diferentes tribos indígenas e causaram o horror. A referência à guerra e à grandeza do nome indígena sucede num momento em que esses eventos já não existem mais na objetividade da história brasileira.
            A partir deste ponto, o poema transforma-se num canto fúnebre, num canto de mote, ainda que se trate de uma morte heroica, impávida e audaz. O sujeito poético – o pai – apela ao filho para que, na sua última hora, se cair nos braços dos inimigos, reflita sobre a sua conduta moral diante do legado da sua tradição, com firmeza e astúcia: “Na última hora / Tens feitos memoria, / Tranquilo nos gestos, / Impávido, audaz.”
            A nona oitava explica, de forma metafórica, o heroísmo e a grandiosidade que presidiram à história do povo que ali vivia antes da chegada do homem branco. A conquista possível é a da honra dos tamoios, representada pelo brasão, que os torna os melhores e mais bravos guerreiros. Neste sentido, apesar de toda a idealização, o poema aproxima-se da realidade, visto que para o filho do índio não há possibilidade alguma de outra conquista.
            Este poema eleva o indígena à categoria de herói nacional, idealizando-o, mas, por outro lado, também demonstra o nascimento e a morte da possibilidade de um outro projeto de nação em que, de facto, estivessem incluídos os dominados.
            Há que ter sempre o melhor na vida e na luta, como se só isso fosse o caminho para algo eterno, que fica para lá da morte. Esta superioridade em tudo lembra a ἀρετή (a virtude) dos gregos.
           O ritmo do poema é incisivo e forte, adequado ao tipo de discurso, e a métrica é breve (redondilha menor). Isto está presente também no poema “I – Juca Pirama”. A Linguagem é substantiva, o que marca o equilíbrio da poesia de Gonçalves Dias.

domingo, 11 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto


             O poema é constituído por 29 versos brancos ou soltos, distribuídos por seis estrofes, cujo título sintetiza a ideia da beleza da africanidade, adjetivando as mãos como esculturais, isto é, como mãos que são como obras de arte. Por outro lado, a mão simboliza o trabalho e a manifestação, pelo que o título indicia a força, o valor do trabalho e a força da união dos africanos.
            As três primeiras estrofes compõem a imagem de uma África aparente, a que é retratada pelos estrangeiros, pelo que se trata de uma visão parcial do que é a identidade africana. O poema começa por apresentar o olhar vencido e cansado que carrega a memória dolorosa da época da exploração, bem como a imagem do mar em simbiose com o ser africano: “mares negreiros”. Esta expressão traduz o sentimento de aprisionamento e o medo vivido nos lares e o cansaço dos que foram para outros países africanos e que, porque não sabiam se regressariam, se sentiam como estrangeiros, como estando noutro continente. Pode também entender-se que estes versos sugerem que o homem negro sai do seu continente para trabalhar e prosperar fora, mas, ainda assim, carrega a África consigo. O mar é o elemento responsável pela separação e distanciamento, pelo que guarda vivências dolorosas.
            A segunda estrofe desnuda a miséria de África (“Além desta África / de mosquitos”), os contrastes, quando se refere às “almas negras” enfeitadas de “sorrisos brancos” e a caridades e medicinas que matam, e as práticas de feitiçaria (“e feitiços sentinelas”). O dístico seguinte prossegue a descrição das ideias negativas associadas ao continente africano: “África de atrasos seculares e corações tristes”.
            A quarta e a quinta estrofes retratam a verdadeira África segundo os olhos do sujeito poético: possui beleza, força, amor, trabalho e, portanto, produtividade. O «eu» afirma que vê além, ou seja, vê o futuro e o que há de bom no continente explorado. Além disso, fala do amor que nasce da boca virgem, indicando que vem da fala pura, das lianas, que designam os laços com a natureza, com as origens, os quais podem ser compreendidos como o amor que cresce e se difunde e floresce como uma planta trepadeira.
            De seguida, descrevem-se as mãos esculturais, que estão ligadas contra “as catadupas demolidoras do antigo”. As mãos são a metáfora do trabalho e as catadupas (a saída ou corrente impetuosa) a metáfora da violência do passado. Deste modo, o trabalho coletivo constitui a forma de extirpar o mal do passado e de fazer algo novo.
            Na última estrofe, o sujeito poético conclui a sua visão sobre África: além do cansaço vivido, ela está viva e o sujeito poético sente-a nas mãos dos que resistiram (dos fortes) e fundem-se com amor (rosa) e alimento (pão), sendo, portanto, o futuro.
            Em suma, o poema trata o tema da identidade africana e apresenta-se o passado de sofrimento como forma de estabelecer povos fortalecidos, atribuindo-lhes a responsabilidade de construir um futuro independente.

Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto


            Ao contrário de outros textos de Agostinho Neto, este poema representa não apenas o sofrimento dos negros colonizados, mas também as particularidades da sua cultura.
            O sujeito poético abre o poema com uma imagem da natureza, associa as árvores características de continente africano (os embondeiros e as palmeiras) com seres humanos, humanizando-as, ao referir-se a “braços erguidos” para remeter para os galhos e a “silhuetas escuras”, isto é, a sombra das árvores. O sujeito poético realça nestes versos a relação dos africanos com a natureza, nomeadamente com as árvores, que, como já foi referido, são humanizadas, indiciando o seu valor sentimental. Por outro lado, a sinestesia “cheiro verde” e a alusão ao fogo trazem para o poema os cheiros e as cores africanos com estreita ligação à luta africana pela liberdade.
            A segunda estrofe introduz novos ambientes, como a estrada, um quarto e a cama, trazendo distintas visões do povo: os trabalhadores que sofrem (os carregadores bailundos, isto é, indivíduos que pertencem aos grupos étnicos dos Bailundos, de Angola); a mulata enquanto representante da miscigenação e da vaidade feminina da mulher africana (“a mulatinha de olhos meigos” – atentar na expressividade do diminutivo e do adjetivo «meigos»); o homem africano com ideias e desejos estrangeiros como o de “comprar garfos e facas para comer”. Além disso, é apontado um ambiente não retratado concretamente, que é o vestuário da figura feminina: “A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas”, representando a musicalidade e a alegria do povo que dança, ou até a fertilidade.
            Na terceira estrofe, o sujeito poético promove um encontro entre o humano e a natureza (“No céu o reflexo do fogo”; “No ar a melodia quente das marimbas” – as marimbas são um instrumento musical formado por placas de madeira ou de metal, graduadas em escala sobre cabaças, que percutem com banquetas, ou seja, a música produzida pelos homens em contacto com o ar e o fogo também produzido por eles refletindo no céu. “As silhuetas dos homens negros batucando de braços erguidos” constitui a retoma ou a lembrança / semelhança dos baobás descritos na primeira estrofe, reforçando a ideia do encontro entre a espécie humana e a natureza.
            A quarta estrofe repete excertos da segunda, remetendo de novo para a musicalidade que perpassa todo o poema. Por sua vez, o título da composição indicia que a poesia africana não aborda apenas o sofrimento do africano, mas a cultura dos povos. 

Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto


             Este poema faz parte da obra Sagrada Esperança, publicada em 1953, e apresenta-nos a imagem do africano cheio de esperança e à procura da construção da sua identidade nacional.

            A composição é construída, gráfica e formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.

            Os cinco versos iniciais formam uma espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido. Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois, desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.

            Logo no primeiro verso, a forma verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização, refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema segue em ritmo de caminhada.

            São vários os elementos da natureza evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”; “asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um percurso.

            A segunda estrofe mescla elementos musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor». Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando, antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do ser humano”.

            A terceira estrofe, através da presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das estrelas.

            A quarta estrofe, a última da primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do caminho.

            Separando as duas partes está um verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.

            A segunda parte aponta para a esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado, a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.

            A sexta estrofe alude à “seiva do raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida, enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do riso / sobre os campos de esperança”.

            As duas primeiras estrofes da segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida existente para a luta e para a caminhada.

            A liberdade reside nos olhos, os ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno, Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em rio).

            Ora, a presença do deserto e do rio reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural) ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”, oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.

            A última estrofe do poema, a última, de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do «eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.

Faleceu Angelo Badalamenti

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Análise do poema "O anjo da guarda", de Manuel Bandeira


             Este poema breve, constituído por seis versos, aborda atemática da morte, neste caso ligada à biografia do poeta, pois remete para o passamento da sua irmã, Maria Cândida de Sousa Bandeira, que foi sua enfermeira desde o final de 1904, quando ele ficou doente dos pulmões, e faleceu em 1918. Ela, de acordo com o título e o terceiro verso, foi o seu «anjo da guarda».

            Note-se, porém, que a abordagem do tema da morte é feita de forma comedida. Em versos livres e brancos, o «eu» poético exprime o seu apelo pela irmã, apelidando-a de anjo.

            No primeiro verso (“Quando a minha irmã morreu”), seguido de outro entre parênteses [“(Devia ter sido assim”), o sujeito poético apresenta a sua hipótese sobre a morte da irmã: “Um anjo moreno, violento e bom / brasileiro” veio guardá-lo, veio cuidar dele e, de seguida, “voltou para junto do Senhor”, ou seja, morreu.

            O adjetivo “brasileiro” é destacado no poema, sendo disposto mais à direita e aproveitando criativamente o espaço em branco da folha, possibilitando assim sugerir a descida do anjo, que “veio ficar ao pé de mim”. A imagem da figura angelical é brasileira; o anjo é “moreno, violento e bom”. Estes dois últimos adjetivos constituem um paradoxo, dado que aproximam dois conceitos contrários. No entanto, eles irmanam-se, dado que “violento e bom”, ligados pela conjunção coordenativa copulativa «e», realçam a forma como o «anjo» impõe os seus cuidados. Por outro lado, é possível associar a imagem do anjo à forma dedicada e intensa (violenta) como a irmã se dedicava a cuidar do sujeito poético. De seguida, o sorriso do «anjo» tranquiliza-o, pois anuncia a sua ascensão, isto é, a imagem da irmã funde-se com a do anjo, que sobe em direção a Deus.

Análise do poema "Pneumotórax", de Manuel Bandeira


             Este poema pode dividir-se em três partes. Na primeira, constituída pelos três primeiros versos, descreve-se a agonia de um tuberculoso, que, em face do seu sofrimento, lamenta toda a vida que não pôde viver (“A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”). O terceiro verso, formado pela repetição três vezes da forma verbal «tosse», reitera as dificuldades de respiração e a razão do acesso de tosse.

            Na segunda parte, formada pelos versos 4 a 7, encontramos o exame médico, destacando-se as dificuldades respiratórias do paciente, indiciadas pela aliteração do som /t/ e pela linha pontilhada que sucede ao verso 7.

            Na terceira parte, entre os versos 8 e 10, o médico apresenta o diagnóstico ao doente: “– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo / e o pulmão direito infiltrado”. O paciente deposita toda a sua esperança de cura num tratamento: “– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?” A resposta do médico é irónica de brutal: qualquer tratamento será inútil. E, eufemisticamente, diz-lhe para “… tocar um tanto argentino”. Ou seja, o clínico está a dizer-lhe que não há qualquer esperança de cura para a sua doença. E porquê a alusão a um tango argentino? Este era a música das tragédias. Assim sendo, o diagnóstico sentencioso do médico é, simultaneamente, irónico e eufemístico, visto que anuncia de forma indireta e até sarcástica a iminência da morte do paciente.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Distinção entre oração coordenada explicativa e subordinada adverbial causal


     Distinguir uma oração coordenada explicativa de uma subordinada adverbial causal não é fácil em muitas circunstâncias, o que dá origem a muitas apreciações erradas.

    Com a devida vénia, transcrevemos a explicação da professora Maria Regina Rocha, retirada do Ciberdúvidas:

'Para tentar que fique esclarecida e percecione o melhor critério de distinção entre os dois tipos de orações, vou começar por lhe apresentar exemplos, passando, depois, à explicação.

 
1. Exemplos de orações subordinadas causais:

a) Não almoço, porque não tenho fome. = Como não tenho fome, não almoço.

b) O Vítor domina o vocabulário, porque lê muito. = Como o Vítor lê muito, domina o vocabulário.

c) A Marta não comprou o vestido, porque era muito caro. = Como o vestido era muito caro, a Marta não o comprou.

d) O menino caiu, porque ia distraído. = Como ia distraído, o menino caiu.

e) Aplaudiram o orador, porque o discurso foi brilhante. = Como o discurso foi brilhantes, aplaudiram o orador.

 
2. Exemplos de orações coordenadas explicativas:

a) Sobe, que te quero mostrar uns livros. = Sobe, pois quero mostrar-te uns livros.

b) Come a sopa toda, que está muito boa. = Come a sopa toda, pois está muito boa.

c) Não tenhais medo, que o mundo não acaba agora. = Não tenhais medo, pois o mundo não acaba agora.

d) O Manuel tem dinheiro, pois comprou um carro novo.

e) O pai já está deitado, pois as luzes estão apagadas.

 
1. A oração subordinada causal tem uma relação de dependência em relação à principal, apresenta um motivo, uma causa da ação, do acontecimento, da ocorrência referida nessa oração principal. Nos exemplos que dei com orações subordinadas causais, é visível essa dependência entre a causal e a principal:

 
a) O facto de não ter fome é a causa, o motivo que leva a pessoa a não almoçar.

b) O facto de o Vítor ler muito é a causa, o motivo, que o leva a dominar o vocabulário.

c) O facto de o vestido ser caro foi o motivo, a causa, que levou a Marta a não o comprar.

d) O facto de o menino ir distraído foi a causa da sua queda.

e) O facto de o discurso ser brilhante foi a causa dos aplausos.

 
2. Para se compreender bem a situação das orações coordenadas explicativas, penso que será útil referir cinco dos estratos gramaticais possíveis na análise de uma língua, por ordem ascendente: o monema, a palavra, os grupos de palavras, a oração e o texto. 

 
                No que diz respeito às orações coordenadas explicativas, que em algumas gramáticas são sintomaticamente chamadas de coordenadas «causais-explicativas», elas exprimem dois tipos de relação (a coordenação e a subordinação), mas não ao mesmo nível de estruturação gramatical. Entre si (no estrato oracional), elas são coordenadas, mas existe uma relação de dependência no que diz respeito ao sentido do discurso, ao nível, pois do texto. 

 
                A oração coordenada explicativa também apresenta, pois, um motivo ou uma causa, mas não da ocorrência referida na oração anterior, e, sim, do motivo que leva o emissor a referir aquela ação, a fazer aquele pedido, a dar aquele conselho, etc. Vou considerar, então, cada uma das orações coordenadas explicativas que apresentei acima: 

 
a) A ação de querer mostrar os livros não é a causa da ação de subir; é a causa do pedido de que suba. Quem fala quer mostrar os livros, quer o outro suba, quer não. A oração «que te quero mostrar os livros» justifica o facto de o emissor ter feito o pedido, justifica algo que não está sintaticamente expresso. Assim, estas duas orações são independentes entre si e poderiam formar dois períodos: «Sobe. Quero mostrar-te uns livros.» Se quiséssemos explicitar a dependência da explicativa em relação ao discurso, poderíamos construir um período complexo, aí, sim, pondo no mesmo nível todos os elementos em relação e subordinando-os uns aos outros: «Peço-te que subas, porque te quero mostrar uns livros.» Neste período, a oração «porque te quero mostrar uns livros» é subordinada à oração «peço-te», exprimindo a causa desse pedido.

 
b) O facto de a sopa estar muito boa não é a causa de a pessoa a comer; é o motivo que leva o emissor a aconselhar o recetor a comer a sopa. Como independentes entre si, estas orações poderiam constituir dois períodos: “Come a sopa toda. Ela está muito boa.” Para ver a relação entre o que está explícito e o que não está, poderíamos também construir um período complexo, com orações subordinadas: “Aconselho-te a que comas a sopa toda, porque ela está muito boa.”

 
c) O facto de o mundo não acabar agora não é a causa de as pessoas não terem medo; é o motivo que leva o emissor a tranquilizar as pessoas. Como independentes, estas orações poderiam formar dois períodos, sem prejuízo do sentido: “Não tenhais medo. O mundo não acaba agora.” Poderíamos também pôr os valores semânticos todos no mesmo plano, o das orações, e interligar essas orações por subordinação: “Como o mundo não acaba agora, acho que não deveis ter medo.”

 
d) O facto de o Manuel ter comprado um carro novo não é a causa de ele ter dinheiro; é a causa da dedução que o emissor faz a respeito daquela ocorrência da compra do carro. Se construir um período complexo em que esteja claro o que ficou subentendido com a utilização da explicativa, poder-se-ia, então, explicitar essa subordinação: «Como o Manuel comprou um carro novo, eu penso (eu deduzo) que ele tem dinheiro.» E a oração subordinada causal (o Manuel ter comprado um carro novo) apresenta o motivo, a causa que me leva a pensar que... («eu penso, eu deduzo»).

 
e) O facto de as luzes estarem apagadas não é a causa de o pai estar deitado; é o motivo que o leva a pensar, a deduzir, a supor que o pai já esteja deitado. Se construir um período complexo em que esteja claro o que ficou subentendido com a utilização da explicativa, poder-se-ia, então, explicitar essa subordinação: «Como as luzes estão apagadas, penso que o pai já está deitado.»'

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade


             Este poema, constituído por 17 quadras e 1 dístico, foi publicado originariamente na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978 e republicado em Poesia numa hora dessas? em 2002, e traça um quadro simultaneamente humorístico e sinistro do final da década de setenta do século XX.

            Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o campeão foi o Guarani.

            Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais futebol por lá”.

            Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção, comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de prosseguir em prova.

            Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia, e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –, comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general (Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31 de dezembro de 1978.

            Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois, de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta (mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões. Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no Mundial do presente ano.

            Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção» pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas, que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta. Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”). A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e 1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas: “Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”. De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares, visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.

            As estrofes seguintes focam outras questões: poluição, assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade, não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na urbe se morre.

            A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real, concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.

            Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras», agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia. Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso aglomerado de figueiras.

            Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros «primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos, que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo), tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de Oliveira, Luana Piovani, etc.

            A nona estrofe explicita o quadro económico e político do ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo, o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores, substantivos, “mesmo com todo o problema”.

            As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”. A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que, para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras, empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do século XX, assente no «deboche».

            A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”, palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia» constituem uma rima interna e formam anagramas.

            A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa (“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de 1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”. A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”) reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético «atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o que já se passou há bastante tempo?

            O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte. Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de continuidade.

            As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção “Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.

            A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar para o governo norte-americano.

            Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática, casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a figura do prefeito biónico.

            A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar», conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta (deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média, nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural. De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama, Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos milhões de telespectadores.

            O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.

            Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar (que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre” foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.

            A situação é dramática: as instituições estão contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e reflexão.

 

Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de Luís Fernando Veríssimo”.

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