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quarta-feira, 19 de julho de 2023

O narrador de Memórias de um Sargento de Milícias


    A obra é narrada na terceira pessoa por um narrador observador, não obstante o vocábulo «memórias» figurar no título, o qual poderia pressupor que o relato fosse feito na primeira pessoa, contudo a sua presença justifica-se pelo facto de o romance possuir traços históricos, visto que retrata cenas e costumes de uma época passada, e conta acontecimentos passados.

    Relativamente à focalização, estamos na presença de um narrador omnisciente, isto é, que sabe tudo, incluindo os pensamentos das personagens.

    A narrativa caracteriza-se pelo humor e pelo cinismo do narrador, que intervém nas situações que conta com ironia, enquanto descreve as personagens e os costumes da época. Deste modo, rompe com a postura idealizadora do narrador caracteristicamente romântico relativamente às personagens.

O tempo de Memórias de um Sargento de Milícias


    A narrativa é feita de acordo com a cronologia, embora seja entrecortada por vezes para o narrador produzir os seus comentários, introduzir uma ou outra analepse ou explicar algo.
    A ação decorre no início do século XIX, no período em que a família real portuguesa vivida no Brasil, depois de ter fugido às Invasões Francesas. Essa instalação da corte no Rio trouxe mudanças à cidade. Uma delas foi a criação de novas instituições, como a Real Junta do Comércio, a Mesa do Desembargo do Paço e a Intendência-Geral da Polícia, que está presente ao longo da obra através da figura do Major Vidigal. A ação da polícia estendia-se por um campo amplo, desde a segurança pública até às questões de saúde, passando pelos conflitos familiares e pelo recrutamento, exemplificado pelo de Leonardo filho. O Intendente da Polícia da Corte e do Estado do Brasil atuava, na prática, como uma polícia política, dado que mantinha a estabilidade das instituições políticas da nova corte; garantia a segurança pública (através da criação de quartéis para a Guarda Real da Polícia, em articulação com os juízes do crime dos bairros da cidade); controlava os espetáculos e os festejos populares (como as súcias do grupo de amigos de Leonardo e do antigo sacristão da Sé); fichava os moradores da cidade; coletava informações sobre a conduta de pessoas suspeitas de algo; arbitrava conflitos conjugais e familiares; era o depósito de mulheres desprotegidas, nomeadamente por motivos de divórcio; elaborava devassas e sumários da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro; perseguia os marinheiros desertores, etc. Um dos traços e temas que caracterizam a obra é a repressão policial do período joanino, personificada na figura autoritária e omnipresente do Major Vidigal.
    Outros aspetos características da época são as modinhas populares difundidas pelo gosto popular na nova corte; as festas, patuscadas, comemorações; a burocracia transmigrada para o Rio, coincidente com a mudança da corte, exemplificada pelos oficiais superiores do Pátio dos Bichos, figuras meramente decorativas do Palácio Real; a presença e a ação de imigrantes portugueses no Brasil; a Justiça e as transformações ocorridas com a vinda da corte, exemplificadas pela figura de D. Maria, alucinada por demandas judiciais e a descrição dos meirinhos e da sua importância naquele tempo; a corrupção, bem visível no capítulo sobre os meirinhos; a maledicência; as festas e tradições populares, nomeadamente as religiosas; a capoeira, representada por Chico-Juca; os costumes dos ciganos, retratados como pessoas ociosas e festivas entregues a expedientes proibidos; as práticas educativas da época, simbolizadas pela figura do mestre-de-rezas, sempre com a palmatória à mão); as profissões de homens livres e pobres, etc., etc., etc.

Caracterização de Maria Regalada

    Maria Regalada é a amante de Vidigal. Intervém algumas vezes, a pedido de D. Maria e da comadre, em benefício de Leonardo. Numa dessas ocasiões, promete ao Vidigal, segredando-lhe ao ouvido, ir viver com ele se libertar o jovem.

Caracterização de Chiquinha

    Chiquinha é filha da comadre. Casa com Leonardo Pataca depois de Maria da Hortaliça o ter traído e abandonado.

Caracterização de Maria da Hortaliça

    Maria da Hortaliça é uma vendedora dos mercados de Lisboa que emigra para o Rio de Janeiro. A bordo do navio que a transporta, conhece Leonardo Pataca e envolve-se amorosamente com ele, acabando por engravidar. No Rio, moram juntos, embora não sejam casados, porém, passado algum tempo, ela começa a traí-lo com diferentes homens. Quando Pataca confirma as suas suspeitas de traição, agride-a, o que a leva a abandoná-lo e ao filho de ambos, fugindo na companhia do capitão de um navio.

Caracterização de Leonardo Pataca


    Leonardo Pataca é oficial de justiça e pai de Leonardo. Durante a viagem de barco rumo ao Rio de Janeiro, conhece a bordo Maria da Hortaliça, com quem se envolve sexualmente, engravidando-a. Já no Brasil, desconfia da fidelidade da companheira e, quando confirma a sua traição, agride-a fisicamente. Na sequência, ela foge com o capitão de uma embarcação e Leonardo entrega o filho ao barbeiro e acaba por casar com Chiquinha.
    Trata-se de um homem sentimental que tem um fraquinho por mulheres. Uma das com quem se envolve depois de Maria da Hortaliça é uma cigana, que, porém, o abandona, pelo que ele recorre a algo proibido na época – a feitiçaria –, para a conseguir de volta e que lhe traz problemas com Vidigal.
    Apesar de ser oficial de justiça, envolve-se em atividades suspeitas. O seu apelido – Pataca – deriva do facto de possuir dinheiro. Recorde-se que o termo «pataca» designava uma moeda de prata com o valor de 320 réis, que foi emitida por Portugal até ao século XIX.

Caracterização do Major Vidigal


    O Major Vidigal é um militar que persegue Leonardo e o prende algumas vezes, mas acaba por o integrar nas suas forças milicianas, primeiro como granadeiro, depois como sargento de milícias, para permitir que se casasse. É uma figura temida e respeitada por todos, severa e punidora, desempenhando ao mesmo tempo os papéis de polícia e juiz.
    Major Vidigal é uma personagem construída com base numa pessoa que existiu e viveu na época chamada Miguel Nunes Vidigal, que era chefe da Guarda Real, uma posição criada por D. João VI em 1809, para policiar o Rio de Janeiro.
    No que diz respeito à sua representatividade, o Vidigal configura o símbolo da repressão arbitrária e socialmente injusta, temida por todos aqueles que – tenham ou não problemas com a lei – são pobres e não dispõem de recursos nem beneficiam da proteção trazida pela amizade com alguém poderoso. Representa, de facto, a ordem do Rio de Janeiro, combatendo a malandragem e a vagabundagem da época. No entanto, apesar de ser o símbolo da Lei e da Justiça, acaba por as quebrar ocasionalmente, cedendo, nomeadamente, aos desejos da amante, com quem vai viver num relacionamento não oficial.

Caracterização de José Manuel

    José Manuel é um homem ambicioso, materialista e calculista que se casa por dinheiro para ter acesso à riqueza dele. No fundo, não passa de um caça fortunas. Após o enlace, trata muito mal a esposa, prendendo-a em casa. Acaba por falecer de apoplexia em decorrência de uma demanda que lhe é colocada por D. Maria. No fundo, não passa de um caça-dotes, representando de uma figura uma crítica à burguesia.

Caracterização de D. Maria

    D. Maria é uma velha senhora que adora demandas judiciais e que obtém a guarda de Luisinha quando os seus pais falecem. Trata-se de uma viúva rica e bondosa, tia e tutora de Luisinha, amiga da comadre e do compadre. Além disso, é uma das figuras da obra que sempre procura proteger e agir em defesa de Leonardo.

Caracterização do compadre barbeiro


    O compadre é barbeiro de profissão. Acolhe Leonardo quando os pais se separam, cria-o como seu filho, educa-o, protege-o e deixa-lhe uma herança que obteve de forma ilícita do comandante de um navio. Sonha um futuro próspero para ele – ser padre –, mas tal não se concretiza. Apesar da referida herança, vive humildemente.

    Em determinada fase da sua vida, foi para África como médico num navio negreiro. Na viagem de regresso, fica, de forma ilícita, com um baú de dinheiro do capitão que, moribundo, lho confiou para entrega à sua filha, porém ficou com ele para si. Tendo-se tornado homem de bem, cria Leonardo como seu filho.

Caracterização de comadre

    A comadre defende e acompanha Leonardo em todos os momentos importantes da sua vida, indo em seu socorro diversas vezes, porque o adora. É uma parteira e madrinha do protagonista. Apesar de ser muito religiosa e frequentar assiduamente a igreja, gosta de intrigas e é a responsável por espalhar uma mentira sobre José Manuel, o pretendente de Luisinha e rival de Leonardo.

Caracterização de Vidinha

    Vidinha é uma jovem mulata, bonita e extrovertida, que toca viola e canta modinhas. Em determinado momento, seduz Leonardo, que vive com ela durante um determinado período de tempo, constituindo a sua segunda paixão.

Caracterização de Luisinha

    Luisinha é a jovem órfã com quem Leonardo casa e que foi o seu primeiro amor. Inicialmente, é apresentada como uma rapariga desengonçada e estranha, mas vai-se transformando com o tempo. De facto, as suas características fogem ao modelo idealizado da mulher romântica: era feia, pálida e desajeitada.

    Por influência da tia, casa com José Manuel, um marido que a trata mal e a prende em casa e só casa por interesse nos seus bens. Algum tempo depois, fica viúva, o que possibilita a sua reaproximação a Leonardo, com quem casa.

Caracterização de Leonardo


    Leonardo é o herói ou protagonista da obra. Em rigor, estamos na presença do chamado anti-herói ou herói pícaro, dado ser alguém que é malandro, matreiro, vadio, que se envolve em problemas e adora fazer estripulias.
    Desde criança, Leonardo é instável e rebelde. Foi abandonado pelos pais: primeiro pela mãe, que fugiu para Portugal com um capitão de navio; depois, pelo pai, que o entregou ao cuidado do padrinho, que o criou, e foi viver a sua vida.
    A única tentativa de frequentar a escola redundou em fracasso: começou a frequentar as aulas de manhã e, à tarde, já estava a receber palmatoadas do professor por mau comportamento. Mais tarde, tornou-se amigo do sacristão da igreja, igualmente um malandro, e acabou por exercer essa função, mas entrou em conflito com um padre e foi expulso.
    Com o tempo foi-se acalmando, até que chegou à idade dos amores Se desde criança foi descrito como uma figura esperta e vagabunda, mais tarde é apresentado como um mulherengo, assemelhando-se neste caso ao protagonista de Macunaíma. O seu percurso a partir daqui pode resumir-se da seguinte forma: mulherengo, como o pai, quase perdeu o seu amor – Luisinha – por ser inconsciente. Foi preso algumas vezes, tornou-se granadeiro, depois sargento de milícias, casou-se com a sua amada e assentou na vida confortavelmente, graças a heranças. A sua primeira paixão foi Luisinha, sobrinha de D. Maria, mas o namoro acabou por não vingar por falta de jeito dele, apesar de a jovem gostar do filho de Pataca.
    Entretanto, Leonardo voltou a viver com o pau, porém os desentendimentos com a madrasta – Chiquinha – eram frequentes e acabou por ser expulso da casa paterna, tendo-se depois afastado e isolado de todos, até reencontrar o antigo amigo sacristão, com quem foi viver, na Rua da Vala, onde habitavam duas mulheres quarentonas, cada uma com três filhos – uma tinha três rapazes e outra três raparigas. Leonardo apaixonou-se pela mais bonita – Vidinha. Estes amores despertaram o ciúme de dois primos, que a disputavam também e que o foram intrigar junto de Vidigal, que o tentou prender, mas sem sucesso.
    A madrinha conseguiu-lhe um emprego na ucharia real, contudo também não parou aí muito tempo, dado que se envolveu amorosamente com a esposa do patrão, o toma-largura. Na sequência, acabou por ser preso pelo Vidigal. Na sua ausência, Vidinha cedeu aos avanços do toma-largura, que se tinha encantado por ela.
    Após a sua prisão, foi obrigado a servir o exército, tendo entrado para o batalhão dos granadeiros, para combater a malandragem do Rio de Janeiro, porém a sua índole não tinha mudado e ele continuou a fazer diabruras. A última que aprontou foi quando avisou um indivíduo que imitava o Vidigal que iria ser preso, permitindo-lhe, assim, escapar à lei. No entanto, o major descobriu a artimanha e prendeu de novo Leonardo. Mais uma vez, foi salvo pela madrinha, por D. Maria e por Maria Regalada: não só foi libertado como foi promovido a sargento de milícias. No final da obra, casou-se com Luisinha, que entretanto ficara viúva de José Manuel.
    Relativamente à sua representatividade, Leonardo simboliza o malandro e o seu esforço no sentido de conseguir sobreviver à margem das instituições sociais. Por outro lado, é uma versão carnavalizada do herói romântico: a sua origem foi cómica e tornou-se um malandro, tentando sobreviver de esquemas e à margem da família, da igreja, da sociedade, em suma.

As personagens de Memórias de um Sargento de Milícias

    As personagens de Memórias de um Sargento de Milícias são tipos sociais, visto que a maioria não possui profundidade psicológica (são planas) e representam um grupo ou uma classe social: o povo, a classe média, etc. Note-se que várias personagens não têm nome próprio, sendo designadas pela sua profissão ou condição social.
    Por outro lado, a ação da obra centra-se num grupo de homens livres pobres. Fora dessa classe, encontramos uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia, um oficial superior e um fidalgo, que servem de ponte a uma breve descrição do Paço. Ausentes estão os membros da corte, bem como os escravos, que constituiriam provavelmente a maior parte da população do Rio de Janeiro na época, e os negros, representados por figuras meramente decorativas como as baianas da procissão dos Ourives e as criadas de D. Maria.
    Ou seja, estamos na presença de uma obra restrita socialmente, pois não aborda as camadas altas da sociedade e praticamente omite a população cativa. Os grupos sociais representados corresponderão àquilo que hoje chamaríamos classe média baixa.

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