A arte, dando voz a Campos, é “a
expressão de um pensamento através de uma emoção ou, em outras palavras, de uma
verdade geral através de uma mentira particular.” (cit. por Coelho, 1949: 162).
Sob esta forma de arte dramatúrgica representada em gente, o traço de Almada
percorre os corpos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos na sua
própria linguagem, integrando-os numa estética que se classifica de intemporal.
Num estilo único, Almada, não mais dramaturgo do que Pessoa ele mesmo,
teatraliza o drama em gente e, na reprodução pictórica em causa, não se limita
a apresentar o que este triângulo de poetas foi ou poderia ter sido. Almada
vestiu as almas reais ao corporizar a totalidade da mentira dos corpos. Almada,
pintor, dramaturgo despersonalizado, criou imagens como extensões das almas: da
deles, de Pessoa, da sua. E o drama em gente foi interpretado, decifrado,
transfigurado, metamorfoseado, representado, dramatizado, permanecendo, no
final, os fragmentos daquilo que cada um deles foi: “Voo outro – eis tudo.”
(Pessoa, 1950: 17).
Os
“eus” que revelam a multilateralidade pessoana dificultam ao pintor a tarefa da
sua representação na obra e, consequentemente, a de quem tenta descortinar o
seu impossível retrato. O negro absoluto em que, pelas suas próprias mãos,
envolveu as máscaras involuntárias (?) do seu fingimento, torna-as
incoloríveis, se assim as podemos dizer, incompatíveis com qualquer
representação pictórica, em suma, invisíveis de tão divisíveis que são.
Contudo, os pintores continuarão pintando, perdendo-se, tentando encontrar os
possíveis corpos, ajustando cores, moldando rostos a máscaras.
Almada
Negreiros, que parece situar os heterónimos pessoanos em três planos distintos
nesta representação, serve-se de uma linha quase contínua, que se move,
simultaneamente, no sentido de uma abstração, de uma simplificação e de uma (ou
várias) incerteza premente. Sabemos tratar-se de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos, mas teremos iguais convicções que nos permitam identificá-los,
à primeira vista, como sendo de facto quem aparentam ser?
A
primeira figura da esquerda da representação, facilmente identificável com
Alberto Caeiro, aparece-nos delineada melancolicamente por um tom azul
dramático, quase trágico. Ligeiramente inclinado para trás, Caeiro é, das três
personagens, a mais transparente. As linhas arredondadas que traçam o seu ténue
volume demarcam, curiosamente, a sensação ambígua de quem já não está, daquele
cuja vida “não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas
são o que houve nele de vida” (idem, 1999: 329). E assim parece ser.
O poeta
bucólico “era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu
tuberculoso), não parecia tão frágil como era.” (idem, 1950: 26). É
realmente frágil que Almada o pinta. Deste modo, “O facto curioso em Alberto
Caeiro é que ele surge, aparentemente do nada e mais completamente do nada do
que qualquer outro poeta.” (idem, 1999: 378). Surge do nada e, na voz do
próprio, não passa de “um andaime” (ibidem: 378). Assim sendo, Caeiro é
como um andaime vindo do nada feito para chegar a um outro local que não
sabemos qual é. Um nada que leva a lado nenhum, ao desconhecido. Um nada que
leva ao nada. E é deste modo que Caeiro irrompe da pintura como quem não suporta
a ideia da própria existência. Caracterizado numa pose distorcida, articula-se
com os vários sentidos que as linhas nos abrem, criando, dentro de um corpo, os
rostos possíveis. O seu olhar, poderoso veículo de comunicação, é de um vazio
profundamente assustador, tal como a expressão do seu rosto, mas,
simultaneamente, os seus olhos são “azuis de criança que não têm medo” (idem,
1950: 27), como Álvaro de Campos de outro modo não os poderia revelar. O
cabelo, de “um louro sem cor” (ibidem: 26) aparece-nos totalmente
apartado para trás. As próprias linhas paralelas e secas que desenham o cabelo
nada mais fazem senão corroborar esta duplicidade, ou multiplicidade, que acaba
por caracterizá-lo: a criança que não teme e o adulto que não faz senão temer.
O braço
esquerdo, posicionado ao longo do corpo, tal como o direito, termina numa mão
ligeiramente inclinada, na posição normal de passo. Como as viu Campos, “as
mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga.” (ibidem:
27). Assim as pinta Almada. Ambas as suas mãos são perfeitamente visíveis, ao
contrário do que acontece com as outras duas personagens, e na mão direita
segura o que aparenta ser duas folhas, transparentes, tal como ele. Talvez
Almada quisesse sugerir que, tal como Caeiro não era corpo, também as páginas
não o eram. Páginas vazias de cor, de linhas, de letras, de pensamentos
passíveis de serem guardados, num corpo inteiramente translúcido, pronto a ser
ocupado, dito, escrito, vivido, existido.
A sua
silhueta encontra-se inclinada para a direita, como quem caminha em frente, já
que a perna esquerda está na posição de passo. No entanto, apesar de tudo nele
indicar movimento (o que é coincidente nos três), Caeiro parece estático... Ou
será que se encontra realmente imóvel? E, se assim é, o que espera Caeiro? Ou
quem espera Caeiro na sua inércia?
Dou a
palavra a Álvaro de Campos: “A expressão da boca, a última coisa em que se
reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, – era a de
um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque
nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e
não de nos falar.” (ibidem: 27). A expressão da boca é de uma complexa
interpretação. Aparentemente, não se mostra, como na anterior descrição, com um
sorriso, mas, pelo contrário, é vagamente triste, emotivamente penosa, como
quem busca as suas feições e não as encontra. Em Caeiro, Pessoa pôs todo o seu
poder de despersonalização dramática. Talvez seja isso que Caeiro procura, ou o
que espera. A sua (des)personalização, a sua pessoa, ou, tão simplesmente, a
ausência de sentimento que sempre buscou.
“Ricardo
Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de
Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um
pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos.” (ibidem: 26).
Segundo
a descrição que o próprio Pessoa faz dos heterónimos Reis e Campos, numa
primeira impressão, a figura que se segue à de Alberto Caeiro corresponderia a
Ricardo Reis. Afirmo-o até pelo simples facto de, no bolso esquerdo do seu
casaco, Almada ter colocado uma folha enrolada em si própria e nela ter escrito
o nome REIS com letras quase impercetíveis, mas que estão lá e que o confirmam.
Logo, porquê a hesitação em atribuir o corpo ao nome que supostamente lhe
corresponde?
Na voz
de Pessoa, Ricardo Reis é um pouco mais baixo e mais forte do que Alberto
Caeiro. Na representação pictórica em causa, aquele a quem chamaríamos Reis,
pelo nome que tem na folha do bolso esquerdo do seu casaco, aparece-nos
retratado como sendo um pouco mais alto do que Caeiro e em nada mais forte do
que este, o que poderia ser facilmente refutado pelo facto de Almada parecer
situá-lo numa perspetiva ligeiramente dianteira. Todavia, como justificar a sua
tentativa de sorriso, a gola da camisa desmazelada, o último botão do casaco
aberto, o bolso direito desleixadamente cheio do “pagão por carácter em quem
Pessoa colocou toda a sua disciplina mental” (ibidem: 28)? Onde se
encontra Ricardo Reis para quem “quanto mais fria a poesia, mais verdadeira” (idem,
1999: 392), que procura a perfeição de uma existência que sente imperfeita?
Onde se encontra Ricardo Reis neste fingimento? Em quem reconhecer Ricardo Reis
neste drama em gente? Como decifrar o seu jeito nada comedido quando comparado
com o da figura de um objetivismo natural e próprio cuja mala na austera mão
esquerda o identifica, supostamente, como Campos? E, sobretudo, a sua postura
desalinhada, descuidada até? Será que podemos, sem a ínfima dúvida, atribuir
esta representação à de alguém que “sintetiza toda a sabedoria do passado, todo
o património moral da tradição humanística” (idem, 1978: 14)?
De Reis
diz Álvaro de Campos ter uma inspiração “estreita e densa, o seu pensamento
compactamente sóbrio, a sua emoção real, se bem que demasiadamente virada para
o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.” (cit. por Coelho, 1949: 164).
Pertencerá, deste modo, este corpo ao Reis egocêntrico que Campos descreve? Ao
Reis que escreve com um purismo que o próprio Fernando Pessoa considera
exagerado? A um Reis de um triste epicurismo que não procura os prazeres
violentos e que, do mesmo modo, não foge às sensações dolorosas, aparentando a
calma, a serenidade, a placidez, a sobriedade individualista? Poder-se-ia, numa
perspetiva de traço caricatural, adequar a descrição de um homem absolutamente
disciplinado, cuja obra é profundamente triste, à personagem que, rigidamente,
segura na sua mão esquerda a mala de Campos? Nesta ótica, é lícito considerar
que Campos albergar uma página no seu bolso esquerdo pertencente a Ricardo Reis
(coincidentemente, ou não, o mesmo lado onde a mala de Campos se encontra nas
mãos de um possível Reis, mascarado de monóculo e de chapéu) e Reis teria uma
mala de Campos. Qual o valor de um nome numa mala, numa folha? Por que motivo
Almada não vestiria Campos de Reis e Reis de Campos? Por que razão se negaria
ele o prazer de ser agora o dramaturgo deste drama em gente, destas personae
que figuravam, mais do que em Pessoa, ao seu lado? Não estará a solução do
enigma no breve sorriso do pretenso Reis? Ou, quem sabe, confidencialmente
oculto na folha que acolhe o seu nome...
Permanecem
as hipóteses, as incertezas demoram-se e as personagens vão teatralizando pelas
mãos do dramaturgo que as encena...
Abro um
parêntesis para lembrar que, segundo Álvaro de Campos, Ricardo Reis foi aquele
que se lhe definiu como abominando a mentira, porque a mentira nada mais é do
que inexatidão. Dando voz ao primeiro, “Todo o Ricardo Reis – passado, presente
e futuro – está nisto.” (Pessoa, 1980: 268). Inexatidão, mentira, drama,
teatro, ficção, engano, falácia de movimentos, de falas em atos onde as
personagens, caricaturas, marionetas nas mãos do dramaturgo, agem em embuste.
Ora, se assim é, como avaliaria Ricardo Reis o drama que o próprio Pessoa lhe
preparou e que Almada tratou de teatralizar?
Todavia,
se considerarmos que é Reis de facto a figura que se segue a Caeiro, vemos objetivamente
que este se posiciona de frente na representação. É a figura central do
triângulo que, contudo, se inclina para o seu mestre. De rosto voltado para a
direita, num movimento rotativo para onde se encontra Caeiro, Reis parece
buscar nele o equilíbrio que Campos procurava, a mais pura realidade, a
intuição sobre-humana que lhe era natural. Nas palavras do próprio, “Eu era
como o cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu
conhecimento com “O Guardador de Rebanhos” foi a mão do cirurgião que me abriu,
com os olhos, a vista.” (idem, 1999: 366), assim os seus olhos parecem,
numa demanda incessante, procurar em Caeiro a verdadeira sapiência que o
liberte da cegueira em que se encontrava mergulhado.
Os três
bolsos do casaco de Reis encontram-se repletos, talvez de corpos que, ocultos,
se tornam indefiníveis. Objetos ocultos, outros visíveis que possivelmente
contêm ocultos em si. A folha que Almada colocou no seu bolso esquerdo é, no
mínimo, enigmática. A obscuridade que transmite o envolvimento em si própria
faz-nos, se não mais, imaginar o que esconderá o lado encoberto da folha. Uma
folha de Reis que partilha a similaridade com a da mão direita de Caeiro, mas
que se apresenta como tudo menos transparente. A linha do bolso esquerdo de
Reis fá-lo absolutamente redondo, descuidadamente cheio. O que ocultará? Quanto
ao bolso superior, nele encontramos claramente uma caneta (possivelmente a do
ortónimo) e aquilo que aparenta ser um lenço desalinhado, em harmonia com o
bolso do casaco de quem o recolheu.
De
perna direita à frente, cruzada sobre a esquerda, Reis sugere movimento, mas
que, tal como em Caeiro, não pode ser absolutamente atestado. O braço direito,
que em Caeiro segura páginas de nada, em Reis encontra-se fletido. O mesmo
gesto, pelo mesmo braço, é partilhado por quem segura a mala de Campos;
contudo, se em Reis o membro se esconde atrás das costas para uma mão vir
segurar inesperadamente o outro braço (braço este que literalmente expõe uma
larga e estranha mão de palma aberta virada para a frente, como que a revelar
que não pertence a este corpo), em Campos o braço flete-se sobre o peito e é a
mão que se encobre, vibrando, silenciosamente. Braço fletido com mão encoberta,
como que a esconder-se do porte rígido que a sustém, a mão de Campos abriga-se
entre os dois últimos botões do casaco, atribuindo a ordem ao corpo.
Casaco
desabotoado no último botão, curiosamente tal como em Caeiro, gola de camisa
descomposta, num corpo tendente a curvar-se que esconde um braço atrás das
costas, que cruza uma perna em possível movimento e que inclina um rosto em
busca, uma cara de Reis de cabelo liso e apartado ao lado pertencente a Campos,
num olhar estranhamente impertinente, obscuro, como o braço, o bolso, a perna,
o próprio Reis que Almada Negreiros retratou, fantasiou, dramatizou.
Álvaro
de Campos, que surge a Pessoa em derivação oposta à de Reis, é a figura que se
encontra no extremo oposto do triângulo, em oposição a Caeiro, o que não deixa
de ser curioso. Campos aparece- -nos, tal como as outras personagens, em
posição clara de movimento, se bem que, na representação, a aparência seja, de
facto, mais realista comparativamente às outras, mesmo porque Álvaro de Campos
parece vir ou ir de viagem devido à mala que segura na mão esquerda, facto que
o pode situar talvez pela altura da morte de Caeiro, quando se encontrava em
Inglaterra, já que afirma ter sido “uma das angústias da minha vida (...) que
Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.” (idem, 1980: 272).
Descrito
por Pessoa como o mais alto dos três, Álvaro de Campos surge-nos numa postura
absolutamente retilínea, alinhada, austera, contrariamente ao Campos tendente a
curvar-se que o ortónimo nos apresenta. Campos, “entre branco e moreno, tipo
vagamente de judeu português” (idem, 1950: 26), não surge de cabelo
“liso e normalmente apartado ao lado” (ibidem: 26), mas com um chapéu
que lho encobre e que parece pertencer a Pessoa ele mesmo, aliás, tal como
outros traços fisionómicos da personagem em si: “mito que sempre contempla
Fernando Pessoa em travesti de passeio, óculos, chapéu, laço, gabardina,
como as fotografias e os retratos que o fixaram nos últimos anos da sua vida.”
(Stegagno-Picchio, 1988: 66).
O
monóculo erudito que Pessoa lhe colocou, sim, está lá, talvez como o único objeto
que realmente seja de Campos, ou, quem sabe, como nada mais do que um artifício
entre tantos outros.
Álvaro
de Campos, que na sua obra isolou o lado emotivo, “a que chamou
«sensacionista», e que (...) produziu diversas composições, em geral de índole
escandalosa e irritante” (Pessoa, 1968: 41), surge-nos aqui como uma personagem
num porte absolutamente severo, clássico e regrado, um autêntico Reis. “E Reis
nota em Campos a falta de uma disciplina, daquele domínio da emoção que faz a
superioridade da poesia em relação à prosa.” (Coelho, 1949: 164): onde se
encontra nesta personagem a rebeldia, onde ressalta a falta de domínio? Se
“Pessoa isolou em Campos a sua impulsividade, os seus nervos; as impressões do
dia-a-dia sensabor, a vontade lassa de as transmitir nuamente ao papel, sem
refinamento estético.” (ibidem: 193), em que aspeto fisionómico
transparece o ímpeto no filho indisciplinado da sensação? O ritualista em
excesso, onde se encontra? E, se “Campos é o Pessoa que, pela imaginação, se
mexe convulsivamente, raivosamente, com a força dos seus nervos, não uma força
calma e duradoura” (ibidem: 192), onde está o extravasar de emoção de
Álvaro de Campos? A inquietação metafísica com que Fernando Pessoa o concebeu?
Onde se vê Álvaro de Campos neste corpo?
Interpretando-o
como aquele cuja mala transporta o seu nome, em Campos as linhas do rosto são
absolutamente reais, definidas até às formas mais simples do mais fino traço.
Linhas retas que se alongam num traço contínuo da sobrancelha ao nariz, unindo
os dois lados da face, linhas que contornam todo o seu corpo e temporariamente
o retesam, são percebidas pela nossa memória como elevando-lhe em linha reta a
perna direita (não ligeiramente fletida como em Reis, ou em Caeiro no caso da
perna esquerda) num movimento ritmado, como quem caminha a largos passos em
direção ao desconhecido. Talvez vá ao encontro de Reis, talvez siga até Caeiro.
De face virada na direção de Caeiro a quem, tal como Reis, parece obedecer
subalternamente, dele sobressai um olhar tão vago como a incerteza do caminho
que toma, de quem ou daquilo que busca, ligando-o ao mundo exterior de uma
forma sem retorno. Verdadeiramente negros, os olhos maquinalmente esvaziados
coordenam, disciplinam um corpo que lhes obedece. Detêm um poder hipnótico, de
onde brota a expressão que parece tudo querer possuir e, simultaneamente, de
tudo abdicar, no vazio que por trás deles se rasga. Quem se encontra por trás
daquele vazio? A quem obedece o corpo de Campos?
Nesta
trilogia da unidade que Almada Negreiros interpretou, não podemos encarar a
ordem na qual os colocou como meramente arbitrária. Os três planos de
representação pictórica de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não
se apresentam como uma opção infundada; pelo contrário, Almada aplicou neles a
sua mestria de representação. Nestas “ficções do interlúdio”, como Pessoa lhes
chamou, as figuras pintadas em triângulo aparecem-nos como marionetas nas suas
mãos. Suas... de Almada, de Pessoa, de ambos?
Ao
traçar as linhas, prossegue numa melodia em que o ritmo une os elos dispersos
das personagens, ritmo este que, só por si, justifica e resume a essência do
gesto criador. Alberto Caeiro, sendo “o «mestre», porque elabora a doutrina e
pratica a crítica que permite a emancipação de Fernando Pessoa do
«decadentismo» a que estava acorrentado” (Simões, 1980: 321); Ricardo Reis
“representando uma conquista substancial no caminho de uma personalidade que
fará da simulação o seu processo normal de realização literária” (ibidem:
321); e Álvaro de Campos, “o discípulo que se aproveita das liberalidades que a
rebeldia do primeiro favorece” (ibidem: 321), moldam como que um
triângulo sem ângulos, partes de um todo como órgãos de um corpo, onde cada um
deles converge do mesmo modo para a unificação, para ressurgir num Pessoa que
se desintegra, reparte continuamente em cada um deles, escravo como é da
multiplicidade de si próprio.
Na
pintura, linha e cor unem as suas linguagens para nos devolver as figuras e o
branco que a todos pertence não esgota em si a tonalidade semelhante da cor da
pele que Almada Negreiros lhes veste. A camisa branca que lhes é comum, tal
como o lenço que a lapela alberga, é uma das particularidades que os reconhece
como únicos, unos, numa unidade essencial que se adivinha em afinidades,
identificando-os na multiplicidade como indivisíveis na sua divisibilidade: “o
mundo dos heterónimos constitui de facto um universo” (Coelho, 1949: 193).
Contudo,
na semelhança reside a diferença, pois o branco que partilham, tal como a
transparência que o traço, que lhes é comum, delimita, não deixa de ser aqui fator
de desagregação, uma vez que a cor que descuida a camisa de um suposto Reis é a
mesma que, pelo contrário, coloca no bolso de Álvaro de Campos um lenço dobrado
meticulosamente, brindando-nos claramente com a diversidade na individualidade.
Tornam-se entes diferentes do criador, filhos mentais com qualidades herdadas,
mas com a diferença de serem outros. Outros distintos, marcadamente distintos.
Nesta
oscilação entre semelhanças e diferenças, movimenta-se a linguagem de Almada,
numa linha que demarca mais do que confunde, acentuando a lógica de um todo, as
formas estruturais de um conjunto, de onde sobressai a interioridade das
personagens. A arte de ser de Caeiro, a arte de sentir de Campos e a arte de
viver de Reis consubstanciam-se no pincel de Almada e metamorfoseiam-se cada
qual na sua máscara. “... quanto aos figurantes que as ostentam, eles dão-nos,
ao mesmo tempo, a sensação de falar cada um para seu lado e de estarem
continuamente a responder uns aos outros. São como personagens de uma peça
monumental, na aparência toda construída em monólogos – os quais, todavia, se
articulam num diálogo ininterrupto, estabelecido a uma zona mais profunda.”
(Pessoa, 1978: 15).
Esta
interpretação de possível caricatura que vemos pede-nos, obriga-nos à questão:
para onde se dirigem Caeiro, Campos e Reis? O que pretendem encontrar? Quem
pretendem encontrar? Ou será que devíamos perguntar-nos, pelo contrário, de
quem pretendem fugir? Ou, ainda, de quem pretende fugir Almada quando
teatraliza a fuga dos heterónimos pessoanos? Por que motivo fugirá Almada
através deles?
A
diversidade da personalidade artística de Almada, expressa, neste caso, através
da pintura e representação, configura uma genuína teatralidade subjacente a
todo o trabalho criativo do pintor. Deste modo, as diversas personagens,
socorrendo-se de máscaras distintas, percorrem, não apenas o caminho que pelo
poeta foi traçado, mas dramatizam a diversidade de caminhos que a obra do
pintor percorreu. Personagens estas que instituem, afinal, uma obra, uma
unidade, talvez um único ato, que o intérprete, ficcionista, dramaturgo,
desenhista, despersonalizando-se, põe em ação, “da luta contra a histeria pela
criação literária; do esforço do intelecto para expulsar a angústia; de como,
despersonalizando-se, o autor se projeta no drama que compõe.” (Coelho, 1949:
164). Ou seja, as faces de Pessoa interagem, reagem umas às outras, comunicam,
dialogam para que, através delas, por elas e nelas este possa encontrar
caminhos possíveis, saídas para outros universos, para os universos da sua
evasão.
Os
caminhos que percorrem, quando se encontram longe de si próprios para a si
poderem regressar, são caminhos de procura, de rutura, de despersonalização. “É
certo que Campos, algumas vezes perplexo (...) buscou evadir-se (...) por um
certo ato de vontade delirante. E Reis, por seu turno, procurou o lenitivo do
epicurismo. Deste modo, em face da situação que lhes é imposta, os discípulos
de Caeiro tentam diferentes caminhos: a fuga pela alienação do mundo concreto,
pela embriaguês da imaginação sensorial (Campos Whitmaniano), a criação por um
esforço racional de um modus vivendi que reduza ao mínimo o sofrimento
(Reis), ou a simples expressão da ansiedade, da angústia, da melancolia, do
tédio (Campos, Pessoa ortónimo)” (ibidem: 190).
Em
Almada, a conquista da unidade passa pela noção da desconstrução do indivíduo
coletivo. “Há uma abstração do «eu» concreto em proveito de um «eu» máscara, e,
em Pessoa há uma abstração do «eu» concreto em proveito de outros «eus». Assim,
Pessoa evolui num teatro feito daquilo que os sonhos são feitos, enquanto
Almada traz a memória e o desejo da voz sonora, da fala como ato, na página
como no palco.” (Martins, 1996: 312). Consciente da alteridade dos corpos,
Almada reconstitui-se em novos fundamentos, anteriores ao encontro do “eu”
consigo.
No
retorno não encontra dentro de si o mesmo. Personalidade outra que pertence
agora à própria Terra, à parte do mundo em que cada homem está. Dando voz a
Almada, “O Homem não é um homem. O Homem somos nós todos e cada um de nós.”
(Lambert, 1996: 148). Do mesmo modo, o que caracteriza a vida é a procura, não
o encontro. É na procura que as vozes se cruzam e tecem. Tecido e o tear
fundem- -se, confundem-se, acabando, finalmente, por ser o mesmo.
Almada
Negreiros tenta restituir o segredo dos corpos, propiciar-lhes a existência
através do mistério da linha, na essência plástica e anímica que os envolve.
Agarrando os contornos do triângulo, na mesma linha fez eclodir a luz dos
corpos, dos rostos, dos olhares, em semelhanças e contrastes de ligeiros traços
e curvas difusas. É a linha que sobressai, que adquire o poder extraordinário
de depurar as formas, de as reduzir a uma essência, ao próprio movimento e ao
drama de ao corpo se unir e apagar a fronteira entre os dois mundos,
unificando-os, eternizando-os, libertando-os ao encontro dessa essência, de uma
genuinidade que a palavra manifestou e que Almada (trans)figurou.
O corpo
é, assim, uma linha sem começo nem fim, triangular, que sugere o infinito,
materializado a partir do universo escrito que funcionou como pretexto para a
eclosão, para o preenchimento das formas a que as almas pertencem. A imaginação
contaminou o universo ficcionado, realizando-o, encenando-o e dando-lhe um ou
diversos sentidos. Sentidos estes que se ocultam no segredo da linha e lá
permanecem, onde subsiste o drama em gente que o próprio Almada, porque toda a
arte é uma forma de despersonalização, simulação e, simultaneamente, de
espelho, completou.