Segundo a tradição,
este soneto terá sido composto no momento da agonia final de Bocage. De
qualquer forma, seja ou não verdade esta suposição, não restam grandes dúvidas
acerca da fase da vida em que o poeta escrever o soneto: fim da vida,
aproximação da morte [“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento.”;
“(...) a língua quase fria”].
n Assunto:
reconhecimento da ausência de mérito/valor dos seus textos (em prosa e em
verso) e o arrependimento perante a vida inútil que viveu.
n Tema:
arrependimento/autocrítica do sujeito poético relativamente à sua existência.
n
Estrutura interna
▲ 1.ª
parte (vv. 1-4) – Mostrando-se consciente da proximidade da morte, o sujeito
poético apresenta-se desalentado e decepcionado perante si próprio, desejando
que o seu sofrimento e remorso lhe atenuem o castigo de que irá ser vítima. É
como que a síntese das restantes estrofes.
Repare-se
na expressão egotista (uso continuado da 1.ª pessoa), aqui reforçada pela
presença do nome próprio do poeta. Nesta estrofe e, de um modo geral, dentro
das restantes, as formas verbais partem do presente para o passado
e, depois, para o futuro, demarcando assim três momentos: o
arrependimento de agora sucede à ilusão de ontem, e justifica o desejo de uma
morte a pensar na eternidade. O passado e o presente são interpretados e projectados
no futuro: depois da morte, tudo acabará, e do engenho poético (estro)
que o celebrizou nada restará, a não ser pó e vento (vv. 1-2). Neste contexto,
o sujeito poético formula um desejo estruturado com base numa metáfora,
numa hipérbole e num oximoro: “O meu tormento / Leve me torne
sempre a terra dura.” (vv. 3-4), ou seja, o tormento do sujeito poético torna
leve a terra da sepultura, quer dizer, o seu desespero será atenuado após a morte
– ou com a morte – uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a
sua existência.
▲ 2.ª
parte (vv. 5-14) – O sujeito poético desenvolve o seu pensamento, revela uma
grande capacidade de auto-análise e autocrítica, acentua o seu arrependimento e
a vontade de remediar (se possível) os maus efeitos produzidos/causados pelos
seus textos.
O
sujeito poético, na 2.ª quadra, apercebe-se de que a sua inspiração poética o
fez cometer erros, de que fez uma vã figura, reconhecendo o uso negativo que
fez da inspiração poética e a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto
em que se encontra agora. É isso que traduz a apóstrofe e a exclamação
“Musa!”, ou seja, uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização
dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de
desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste numa espécie de
pedido de desculpas ou comiseração. É a função morigeradora da morte.
No
1.º terceto surge o arrependimento do sujeito poético e a vontade de poder
alterar o passado. Ou seja, apercebendo-se da nulidade da sua
existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos
seus erros (vv. 9, 12-13), o sujeito poético deseja alterar o rumo dos
acontecimentos futuros, alertando poetas novos (“mocidade”, v. 10) para o
carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som
fantástico”, v. 11).
Na
derradeira estrofe, o sujeito poético autonomeia-se “Outro Aretino” (Aretino –
1492-1556 – foi um poeta satírico italiano de vida boémia) e sente remorsos por
ter produzido poesias satíricas, imorais. Daí que se dirija aos leitores (“gente
ímpia”, v. 13), a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da
poesia, ou seja, ele confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a
ser “absolvido” pelos leitores, pede que destruam os seus textos, que o
esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios
poéticos, pretendendo não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem –
deseja que a morte física abranja os seus textos igualmente, e que não perdure
a imagem desencantada e mesmo deplorável daquele que foi “Outro Aretino” (v.
12).
Em
suma, o sujeito poético encontra-se moribundo, prestes a morrer (vv. 1-4) e foi
a partir desta tomada de consciência do momento que atravessava que efectuou a
retrospectiva da sua vida, apercebendo-se da nulidade da sua
existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos
seus erros (vv. 9, 12-13), desejando alterar o rumo dos acontecimentos futuros,
alertando poetas novas (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista
que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11), mas que, quando
é usada de forma imoral (“Outro Aretino fui...”, v. 12), faz sentir remorsos a
quem a ela recorre. É, pois, na fase terminal da sua vida que o sujeito de
enunciação envida esforços no sentido de não deixar rancor nas pessoas,
preferindo o esquecimento, a destruição dos seus versos (v. 14) à recordação
negativa.
n
Estado de espírito do sujeito poético
Neste soneto, o
sujeito de enunciação tece uma autocrítica, sobressaindo a auto-recriminação e
o desconforto sentidos pelo EU lírico relativamente ao desrespeito manifestado
perante outrem (“Eu aos Céus ultrajei!”, v. 3; “A santidade / Manchei!...”, vv.
12-13); a humildade e a consciência de que a sua existência poética teve um efeito
nulo, inútil por obedecer a impulsos irracionais (“... vã figura / Em prosa e
verso fez meu louco intento”, vv. 5-6); o remorso e a tentativa de contribuir
com a sua experiência para modificar comportamentos semelhantes ao seu (vv.
10-11); a resignação, a submissão perante o público, a modéstia ao propor o
esquecimento (v. 14), a anulação da sua pessoa, tal como fora exposto logo no
verso 1: “Já Bocage não sou”.
Outros sentimentos do
sujeito são a desilusão do momento presente, o arrependimento dos seus actos
passados, a falta de segurança e confiança, o desânimo, o desalento e o remorso
por não ter sido mais lúcido, mais racional.
n
Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
O poema é composto por
duas quadras e dois tercetos (soneto), cujo esquema rimático é
ABBA/ABBBA/CDC/DCD, verificando-se rima interpolada e emparelhada nas quadras e
cruzada nos tercetos. Todas as rimas são graves e consoantes; nos versos 5 e 8,
9 e 11 é rica (“figura”/”pura”), nos restantes é pobre (“escura”/”dura”). O transporte
existe nos versos 1-2, 3-4, 5-6, 9-10, 12-13. A métrica é o verso decassílabo.
2.
Nível morfossintáctico
Existe grande
abundância de vocábulos de cariz negativo no poema: cova, escura,
desfeito, ultrajei, tormento, dura, vã, louco,
fria, manchei, ímpia, rasga. Esta abundância
contribui para evidenciar a autoconsciência que o sujeito poético tem de si e
dos trabalhos que produziu, o temor que sente relativamente ao futuro – castigo
divino – e o apelo que dirige aos leitores no sentido de destruírem os seus
textos e, dessa forma, fazer desaparecer os erros/malefícios provocados pelos
seus textos.
A partir da análise
das pessoas verbais e dos pronomes pessoais e determinantes
na 1.ª pessoa gramatical (meu, vv. 2, 3, 6; me, vv. 4, 9, 13; meus,
v. 14), conclui-se que o sujeito poético elaborou uma auto-análise, na medida
em que, além dos pronomes e determinantes já referidos, predomina a 1.ª pessoa
verbal do singular (6 ocorrências) em frases onde se refere a si próprio,
mencionando também aspectos exteriores à sua vida, mas que são parte integrante
da sua personalidade e actividades (6 ocorrências). Quanto aos tempos verbais,
alternam o presente, o passado e o futuro: o sujeito
poético mostra-se consciente quanto à insensatez, irracionalidade e efeitos
prejudiciais causados pelos seus versos (vv. 3, 6-9, 12-13) – passado; assume a
culpa, os seus erros, arrependendo-se (vv. 5, 9) – presente; reconhece o fim do
seu trabalho (v. 2), teme o castigo (v. 4) – futuro. Por outro lado, o uso do imperativo
tem como finalidade alterar o que for possível no futuro: a crença na utopia da
poesia a que deseja pôr fim (v. 10) e a sua imagem negativa que deseja ver
apagada (v. 14), através da destruição dos seus textos.
Tratando-se de um
poema com o qual se pretende fazer uma caracterização, neste caso, a
autocaracterização do sujeito poético, é natural a variedade de adjectivos
que contribuem e reforçam essa caracterização. A sua colocação nas frases pode
tornar o efeito mais objectivo (pospostos) ou mais subjectivo (antepostos). No
texto verifica-se a anteposição dos adjectivos nas afirmações em que o sujeito
poético se refere a si, à sua imagem (v. 5), à sua audácia (v. 6), à sua
tentativa de alertar os outros (v. 10); a posposição dos adjectivos surge
quando o sujeito poético faz referências mais objectivas e a aspectos
exteriores a si, à sua sepultura (vv. 1 e 4), à razão (v. 8), à ilusão
prematura dos novos poetas (v. 11) e aos leitores (v. 14).
No que diz respeito à pontuação,
o predomínio das reticências põe em relevo o carácter hesitante do
sujeito poético, ao constatar a desilusão do momento presente (1.ª estrofe), o
arrependimento dos seus actos (2.ª e 4.ª estrofes), denotando-se no sujeito
poético a falta de segurança e de confiança, características de quem cometeu
actos impróprios, injustos e os assume perante os outros. As exclamações
reforçam a função das reticências, na medida em que transmitem o estado de
espírito negativos do sujeito lírico: desconforto e desânimo em relação a si
próprio, remorso por não ter sido mais lúcido e racional.
A interjeição Oh
(v. 13) contribui para acentuar a emotividade das palavras transmitidas,
salientando-se a pena, o lamento, a desilusão relativamente ao seu passado.
à convulsão interior
do sujeito poético é transmitida ainda com o auxílio de outros procedimentos
formais e estilísticos: a bipartição de alguns versos (1, 3, 12 e 14),
responsável pela criação de uma pausa no seu interior, justificando o encavalgamento
da segunda parte com o verso seguinte; a ênfase final no sentimento de fé numa
vida transcendente, que é expressa com a repetição da forma do verbo crer:
se antes o tomaram como modelo de poeta, devem agora recebê-lo como paradigma
do arrependimento. Note-se ainda como a palavra ímpia(v. 13), acentuada
como grava (impia), rima com fria e corria (vv. 9 e 11),
através do processo de mudança de acento (diástole).
O hipérbato do
verso 1 (“Já Bocage não sou!...”) reforça o desânimo e a desilusão do sujeito
poético ao anular a sua própria pessoa, deixando evidente o que fora em tempos
– note-se a colocação do nome no interior de um segmento.
3.
Nível semântico
O eufemismo e o
hipérbato dos versos 1 e 2 (“À cova escura / Meu estro vai parar
desfeito em vento...”) denotam o carácter moribundo do sujeito poético (“cova
escura”), o qual vai contribuir para o tom confessional do poema. Esta sugestão
de morte aparece noutra sugestão eufemística presente no verso 9: “... a
língua quase fria...”.
A metáfora e o oximoro
dos versos 3 e 4 (“O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.”)
traduzem um desejo do sujeito lírico, ou seja, que o seu tormento torne leve a
terra da sepultura, que o seu desespero seja atenuado com e após a morte, uma
vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência. A
impossibilidade de concretização deste pedido acentua o seu estado de espírito
de tristeza, mágoa e dor.
A apóstrofe “Musa!”
(v. 7) expressa uma tentativa de estabelecer contacto com aquela divindade que
permite a existência de inspiração poética, em forma de desculpabilização pelo
mau uso que fez daquele dom. Quer dizer, com esta apóstrofe o sujeito poético
dirige-se, neste momento da sua reflexão e auto-análise, à própria poesia de
que se serviu para as suas loucuras e imoralidades, lamentando-se do uso
negativo que fez da sua inspiração poética e reconhecendo a falta de
racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. O poema trata
de uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à
imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo,
à divindade que possibilita tal poesia consiste como que num pedido de
desculpas ou comiseração (note-se cumulativamente o emprego da personificação).
A partir da metáfora
do verso 8 (“Se um raio de razão seguisse, pura!”), equipara-se a razão ao Sol
por ser aquilo que pode esclarecer a mente do sujeito lírico e torná-la lúcida
e sensata, tal como o Sol ilumina os dias e o espaço que habitamos.
Na expressão “... a
língua quase fria / Brade em alto pregão à mocidade...” (vv. 9-10), toma-se a
parte do corpo que tem a capacidade de comunicar – “língua” – pelo todo a que
pertence – o sujeito poético – como forma de transmitir a intenção deste em
expressar aos outros a sua experiência – estamos perante uma sinédoque.
Por outro lado, o desespero do sujeito é tão grande que conta, nos momentos que
antecedem a sua morte, poder modificar as atitudes daqueles que ouvem/lêem,
gritando e alertando poetas novos para o carácter utópico e fantasista que a
poesia possui e que eles procuram, mas que, quando é usada de forma imoral, faz
sentir remorsos a quem a ela recorre.
Por meio da apóstrofe
do verso 13 (“... gente ímpia...”) o sujeito poético dirige-se aos leitores, a
quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia. Confessa-se
perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores,
sugere que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se
aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretende não deixar
lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física
abranja também os seus textos e que não perdure a imagem desencantada e
deplorável daquele que foi “Outro Aretino”.
A metáfora dos
versos 12 e 13 (“A santidade / Manchei...”) salienta o efeito negativo ou
pejorativo das palavras/poesia do sujeito poético, contrastando com a pureza e
idoneidade conferida pelo primeiro termo.
n
Características