Portanto...
Quando uma aluna da minha professora de português do então 5° ano do liceu começava a resposta com "portanto", como na altura era moda na linguagem juvenil, era certo que desencadeava uma tempestade. Ainda me dá vontade de rir quando me lembro do teatro que ela fazia, arregalava os olhos como se tivesse visto um fantasma, levava as mãos ao cabelo e arrepelava-os de pavor, puxava do lenço branco que trazia no bolso e assoava-se ruidosamente como se lhe tivesse entrado um cheiro tóxico pelas narinas. Isto durava um bom bocado e o silêncio na aula era terrível, a temer a borrasca a cair sobre a desgraçada do portanto. Seguia-se o sermão. Portanto??? Ó parvoinha, ó tolinha, então ainda não raciocinaste e já estás a usar uma conjunção coordenativa conclusiva? Estás a coordenar o quê, disparates ou sabedoria? Queres fingir que sabes do que estás a falar, julgas que me enganas? Em vez de estudar e de aprender a usar os miolos decoraste as coisas e vens para aqui fingir que sabes do que falas? Explicava depois, já mais calma, que primeiro é preciso explicar os elementos em que se baseia o raciocínio, o que mostra que as pessoas estudaram o assunto e perceberam-no em vez de andar "à pesca", como ela dizia. Se essas premissas estivessem erradas, bem podíamos usar os portantos todos que não havia anjo protector para nos defender da asneira final. E ela considerava ofensivo que se começasse pelo "portanto", não era só um erro de construção da frase -o que já seria gravíssimo - ela ensinava que era uma questão de respeito pela inteligência e boa fé dos outros, porque se não pudessem avaliar o ponto de partida tinham que seguir a conclusão sem saberem se estava certa ou errada. Um dos exemplos que dava para ilustrar as consequências nefastas desta organização do discurso era poder esconder preconceitos, ideias feitas que levavam a conclusões sem permitir escrutinar os seus fundamentos. Apontava uma aluna com uma elaborada trança no cabelo e dizia, à queima roupa, "portanto, tu só te preocupas com os penteados", e todos sabiam que essa era uma boa aluna e que era injusto ela concluir pela avaliação superficial; ou mostrava à turma uma lancheira debaixo do tampo de uma carteira e acusava " portanto acordaste tarde e não tiveste tempo de tomar o pequeno almoço" e todos sabiam que a menina vinha de longe e se levantava de madrugada, claro que teria fome antes da hora da saída das aulas. E por aí fora. Ela ensinou-nos a ser exigente na avaliação dos argumentos, a desconfiar de quem apresenta ou adere a conclusões sem se preocupar em saber se as razões resultam da ignorância disfarçada ou da má fé, para chegar ao "portanto".
Hoje, se olharmos à nossa volta, há um recurso sistemático aos "portanto" para início de conversa, começa-se sempre pela afirmação peremptória e, quando se vai ver o raciocíonio e as suas premissas, por mais duvidosas ou incertas que sejam, já todos assumiram a conclusão. A minha professora de português, se fosse viva, teria um colapso nervoso. Arrepelaria os cabelos, invectivando este mundo de enganos. E não haveria lenços capazes de a proteger da corrosão ácida das conclusões mal pensadas.