terça-feira, 11 de outubro de 2022
Análise de Os Lusíadas: Canto IX, estâncias 88-95
A Ilha constitui o prémio (“O prémio lá no fim, bem merecido” – est. 88, v. 7) pelos “feitos grandes” e pela ousadia (“Porque dos feitos grandes, da ousadia” – est. 88, v. 5) da “forte e famosa” (est. 88, v. 6) gente portuguesa e o reconhecimento pelos “trabalhos tão longos” (“Os trabalhos tão longos compensando” – est. 88, v. 4), que garantirão aos heróis lusitanos “fama grande e nome alto e subido” (est. 88, v. 8), honra, fama e glória (“Aquelas preminencias gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha: / Estes são os deleites desta Ilha.”).
▪ A fama: “Com fama grande…” (est. 88,
v. 8).
▪ A mitificação: “nome alto e subido”
(est. 88, v. 8).
▪ A imortalidade: o contacto dos humanos com as ninfas
confere-lhes um estatuto divino.
▪ Os prazeres da Ilha são os sucessos, as vitórias alcançadas
por mérito próprio (estância 89).
Trata-se,
em suma, do reconhecimento pelos “feitos grandes”, pela “ousadia” e pelo
esforço. Esta simbologia significa que a fama e a glória estão ao alcance de
qualquer ser humano que se destaque pelos seus feitos e conduta virtuosa.
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• Que prémio era esse?
A
imortalidade: os homens subiam ao Olimpo, tornavam-se, assim, deuses,
imortais: “Que as imortalidades que fingia / A antiguidade, que os Ilustres
ama, / Lá no estelante Olimpo, aquém subia / Sobre as asas ínclitas da Fama”.
Os
dois versos iniciais da estância 90 são muito expressivos, pois significam que,
à semelhança do que sucede com a Ilha dos Amores, os deuses da Antiguidade eram
apenas representações simbólicas do prémio que é sempre atribuído àqueles que
norteiam a sua existência pela virtude – a possibilidade de serem imortalizados
pela fama.
Os homens que realizavam feitos ilustres, grandes ações;
aqueles que percorriam um caminho árduo, difícil, cheio de perigos: “Por obras
valerosas que fazia, / Pelo trabalho imenso que se chama / Caminho da virtude,
alto e fragoso…”. Assim, encontravam o prazer, o deleite, a satisfação: “Mas,
no fim, doce, alegre e deleitoso”.
Atribuir a imortalidade.
A estância 91 serve como confirmação desta ideia: a
imortalidade era um prémio dado aos homens, devido aos “feitos imortais e
soberanos” (“Não eram senão prémios que reparte, / Por feitos imortais e
soberanos, / O mundo cos varões que esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo
humanos”). Por isso, obtiveram nomes divinos: “Que Júpiter, Mercúrio, Febo e
Marte, / Eneas e Quirino e os dous Tebanos, / Ceres, Palas e Juno com Diana, /
Todos foram de fraca carne humana.”.
É uma estratégia para convencer os homens do seu tempo a
seguirem o exemplo dos clássicos. De facto, as figuras da Antiguidade citadas
(Júpiter, Mercúrio, etc.) surgem como argumento do Poeta para convencer os
contemporâneos a alterar a sua atitude, combatendo os vícios, bem como para
conferir importância ao caminho a percorrer para atingir a imortalidade.
A enumeração de nomes próprios dos versos 5 a 8 da
estância 91 indica-nos que antes de serem deuses, logo imortais, todos foram
humanos e mortais. De facto, as divindades começaram por ser humanos, tendo
ascendido ao patamar divino por “esforço e arte” e “feitos imortais e
soberanos”, o que lhes valeu a imortalidade. Assim, o Poeta sugere que os Portugueses
podem e merecem passar pelo mesmo processo de mitificação.
▪ Combater a preguiça: “Despertai já do sono do ócio ignavo”
(est.92, v. 7).
▪ Evitar a cobiça e a ambição: “E ponde na cobiça um freio duro,
/ E na ambição também…”.
▪ Evitar a tirania: “… e no torpe e escuro / Vício da tirania
infame e urgente.”.
▪ Promover a igualdade perante a lei, garantindo a
imparcialidade e a justiça: “Ou dai na paz as leis iguais, constantes”.
▪ Impedir a exploração dos mais fracos: “Que aos grandes não
deem o dos pequenos” (antítese).
▪ Combater contra os muçulmanos: “Ou vos vesti nas armas
rutilantes, / Contra a lei dos imigos Sarracenos”.
i) As “honras vãs, esse ouro puro”, obtidas
sem espaço e sem mérito, não dão “Verdadeiro valor” às pessoas.
ii) É melhor merecer a honra e os bens
materiais sem os ter, do que tê-los e não os merecer.
- Justiça;
- Igualdade;
- Fraternidade;
- Lealdade;
- Vontade;
- Honestidade.
i) O reino será maior e poderoso: “Fareis
os Reinos grandes e possantes”;
ii) Haverá igualdade na distribuição
dos bens: “E todos tereis mais e nenhum menos”;
iii) Todos terão honra e fama: “Possuireis
riquezas merecidas, / Com as honras que ilustram tanto as vidas.”;
iv) O Rei será mais ilustre e
esclarecido, devido ao apoio, aos conselhos sensatos e à lealdade: “E fareis
claro o Rei que tanto amais, / Agora cos conselhos bem cuidados, / Agora co as
espadas, que imortais”;
v) Tornar-se-ão imortais como os seus
antepassados: “Vos farão, como os vossos já passados”;
vi) Serão eternamente reconhecidos
como heróis: “Sereis entre os Heróis esclarecidos / E nesta «Ilha de Vénus»
recebidos.”
▪ Através da submissão das Ninfas aos navegantes, juntamente
com o tratamento concedido a Vasco da Gama, incluindo as revelações que lhe são
feitas acerca das consequências da viagem (est. 10 e seguintes).
▪ Pela comparação dos «varões» (incluindo os nautas) com os
deuses (Júpiter, Mercúrio, etc.) que, antes de serem divindades, foram também
humanos. Isto significa que também os homens podem ascender ao estatuto de
deuses, desde que o mereçam.
▪ Assim, é legítimo aspirar à Fama, se ela for conseguida pelo
esforço e pela superação do «ócio ignavo» (est. 92, v. 7).
▪ A procura da Fama não se coaduna com determinados comportamentos,
nomeadamente a ambição desmedida, a tirania, o culto da injustiça, etc., e que
caracterizam os homens do tempo do Poeta.
▪ O serviço prestado ao Rei (“fareis claro o Rei que tanto
amais”, est. 95, v. 1) tem de ser, então, a preocupação daqueles que, na paz ou
na guerra santa contra os infiéis, merecem ser recebidos na Ilha dos Amores.
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Análise do poema "O Poema", de Herberto Hélder
domingo, 9 de outubro de 2022
Análise do capítulo XI de Iracema
Análise do capítulo X de Iracema
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
O tempo da história de O Delfim
O narrador-escritor visitou a Gafeira pela primeira vez em outubro de 1966, data da abertura da caça, e regressou um ano volvido, na mesma altura, com o mesmo propósito: “Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.”
Os acontecimentos da obra não seguem
uma ordem linear, antes são apresentados de forma pretensamente desorganizada e
deliberadamente equívoca ou multifacetada, para que o leitor não concentre a
sua atenção na história do adultério e se dedique, tal como o Escritor, à
análise e reflexão sobre outras mudanças que ocorreram na Gafeira.
Neste contexto, o Tempo assume
enorme relevância, desde logo porque é o responsável pela nova realidade que
vai surgindo. Para o narrador, o Tempo assume várias facetas: tanto pode ser
uma lagartixa, “um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente”, “o
tempo, o nosso tempo amesquinhado”, como uma nora a girar, a escorrer pela
tarde. O Tempo é um relógio cego, um relógio de maquinismos perros. A roda vai
rodando minuto a minuto, sente-se, mas não se vê. Este tempo circular,
repetitivo, é tão subtil como as mudanças que traz à Gafeira.
De facto, o tempo da narrativa é
circular, contém em si o início e o fim de tudo; passado e presente tornam-se
iguais ao futuro e contribuem para a construção do vivido e, sobretudo, para
diluir e esbater as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Por outro
lado, o tempo condensa os acontecimentos, mas não os esclarece, antes procura
passar uma mensagem subversiva, através de jogos de elipses, metáforas,
repetições. Além disso, ao fundir o presente com o passado, apontando já para o
futuro que se entrevê, as divagações do narrador permitem ao leitor compreender
os movimentos da Gafeira e dos seus habitantes, camponeses que o mesmo tempo
transformou também em operários.
O narrador, que é solidário com os
camponeses-operários e com a lagartixa, aparentemente imóvel, narra na primeira
pessoa do presente do indicativo, o que indica que pertence àquele tempo e
apoia a mudança: “Que é o tempo para estas mulheres? (…) E para o Regedor? (…)
E para mim que sou o Sr. Escritor? Pergunto e tenho comigo a resposta num
pedaço de papel que trouxe há pouco na loja do Regedor, uma licença passada por
ordem dos habitantes da aldeia e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom
sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu-se no seu sono de pedra.”
Esta referência positiva ao tempo (“o bom sentido”) está ligado à mudança,
representada pela licença de caça e em quem a passa, porque implica uma mudança
profunda ao nível da própria estrutura social e económica da Gafeira. É por
isso que a lagartixa se agita.
O presente veiculado pelo narrador, a
mistura entre passado e presente impede a identificação exata dos diversos
momentos da história dos Palma Bravo e da Gafeira. Será particularmente difícil
determinar com exatidão os acontecimentos relativos ao adultério e mesmo o
relacionamento entre o narrador e os habitantes da casa da lagoa.
Já no que concerne aos
acontecimentos ligados à lagoa propriamente dita, são claros e relatados pelo
Regedor, sem quaisquer omissões. Aqui o tempo foi inexorável. Trata-se de um
tempo diferente, um tempo que tem de conter em si elementos condizentes com os
habitantes da Gafeira, o Homo Lusitaniensis Sp., como lhe chama o
narrador, um tempo que tem de ser um retrato fiel da mudança entre a modorra
apática e a sociedade de consumo fielmente retratada nos blusões dos filhos dos
emigrantes. O tempo na Gafeira retrata uma realidade alienada da qual a ação
não é representativa, visto que peca por total falta de clareza e de movimento
criativo.
Para criar toda esta ambiência, o
autor vai recorrer à narrativa ulterior, anterior, intercalada e simultânea. No
que diz respeito à narrativa ulterior, ela é representada pelas recordações do
Escritor, pelas citações que faz de falas de outras personagens, pelas
reproduções dos seus apontamentos do ano anterior, algo que viu ou ouviu. A
intercalada, por oposição, apresenta a narração que se antecipa ao
acontecimento e nela se incluem tanto a mudança como o adultério. A narração
intercalada respeita àquela que ocorre entre vários momentos da ação; e
simultânea àquela que é feita ao mesmo tempo que acontece a ação.
Esta anacronia reflete-se na
aparente anarquia do tempo da história, que tão depressa nos transporta até ao
passado, através de analepses (“volto-me antes para o Largo e, sem querer,
torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo
depois da missa.”) , como nos antecipa o futuro, por meio de prolepses (“«A
Barca do Inferno» – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os
espera.”), da Gafeira.
Existe ainda o tempo da escrita,
transposto para o presente, mas que já existia no passado. Exemplo disso são os
apontamentos iniciados em 1966, aquando da primeira visita, e continuados na
segunda e que, eventualmente, se misturam com a própria escrita do romance.
O espaço de O Delfim
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Análise de "Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos"
Na
pintura, encontramos, ao centro, portanto em posição de destaque, uma figura
feminina, Cornélia, que, vestida de branco (cor que simboliza a pureza), se
dirige a uma outra mulher vestida de vermelho (símbolo da paixão, neste caso,
das coisas mundanas) e branco. Esta personagem, sentada, exibe as suas joias
valiosíssimas; como resposta, Cornélia mostra os seus três filhos, o seu maior
tesouro. Deste modo, através desta situação contrastante, a pintora enfatiza o materialismo
e a frivolidade da mulher de vermelho, provocando o seu visível embaraço.
Cornélia,
na realidade, era uma figura histórica romana, uma das poucas mães em Roma às
quais se credita uma poderosa influência sobre a vida pública dos filhos. Era
também conhecida por se vestir de forma menos vistosa do que muitas das suas
contemporâneas. Cornélia era mãe dos Gracos, dos quais dizia
que eram as suas joias, e, depois de ficar viúva, recusou voltar a casar,
preferindo dedicar-se exclusivamente à educação dos filhos, que ficaram
conhecidos pelas iniciativas reformistas e que acabaram por provocar o seu fim
trágico.
Em suma, esta obra critica o apego excessivo aos bens materiais e a vaidade feminina, demonstrando-se que há valores muito mais importantes na vida do ser humano, como, por exemplo, o amor maternal.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca
Dizeres íntimos
O título da composição aponta
para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela
as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que
parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais
(“vou”), quer nos determinantes (“minha”).
O primeiro verso traduz a tristeza
do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão
triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde
já, perante a ideia da morte como algo triste.
Os versos seguintes parecem esboçar
uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos
olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a
expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a
dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal
/i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem
sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito
poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.
Pela leitura da primeira estrofe,
fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que
significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque
não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer,
dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece
ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou
ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.
Os versos 3 e 4, embora contenham
vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer
que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude
solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4).
A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais
fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira
estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois
a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada,
em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias
razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma
certeza.
A segunda quadra abre com a conjunção
coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a
tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a
forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que
ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade
anunciado dentro dos parênteses.
Após o discurso parentético, o «eu»
prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias”
e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição
da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a
gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os
olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no verso 7, os dedos brancos.
Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece
uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte
prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais
positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos
religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo
considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa
sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético
fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na
morte, vai desaparecendo aos poucos.
Por outro lado, não obstante o
Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a
vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a
estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude;
o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade
trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a
juventude.
O último terceto precisa a idade do
«eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a
tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou
seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é
inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a
vontade de viver.
O soneto termina de forma irónica: “Dizem
baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão
de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior
reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha
dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor”
e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a
ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova”
representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o
sofrimento, a dor, a angústia terminam.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa
Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.
Na primeira estrofe, o sujeito
poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e
despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo
em que vive, que o oprime.
Diariamente reduzida a uma coisa, um
objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e
social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as
casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”)
– a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas
limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada
uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe
dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna
todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito,
aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais
íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”,
“irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição,
nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que
acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da
noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas
que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma
realidade que não o deixa respirar.
A cidade, percecionada, pois, como
extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o
funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que
executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e
“sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que
os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao
funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que
lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.
No final do dia, espera-o um quarto,
uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do
escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço
exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade
continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será
exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida
profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja
permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o
funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com
pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas
promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia
de quem pensa de modo diferente.
Habituado a ser dirigido pelo
“chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo
parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a
escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que
vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a
noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos /
tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas
a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado
dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o
rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.
No início da segunda estrofe,
autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço
nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à
colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe
suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma
peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu
lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado
invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.
Isto significa que existe um
desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário.
De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos
documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No
entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma
insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta
para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras
generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético
recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os
números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta
de empregado”.
Apesar de tudo, é no local de
trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar
o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a
vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora),
atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do
“Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas
interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este
lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua
prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo
que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar
que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal
encarcerado, tal como ele.
A realidade é que, da janela do
escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do
qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os
que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano
quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a
contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o
quintal e distrai o dono com o seu canto.
Domesticado como um animal numa
jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se
revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso.
O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano
digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que
nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o
funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver”
por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros
estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do
papel.
A divisão interior que o conflito
entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se
manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia
nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a
resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque
me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações
traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si
mesmo.
Cansado de não viver, mas da vida
desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em
que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um
caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada
pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela
miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não
há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o
desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por
razões diferentes.
Na solidão do quarto, o funcionário
“soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram
sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como
antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que
vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.
Em suma, na segunda estrofe, o «eu»
poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que
exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e
inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de
“poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números
fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma
lírica não participa.
Apesar da sua condição de funcionário
que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que
povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”,
“namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor
a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia
que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho
lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto,
beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu»
faltam.
No entanto, o sonho de libertação é
impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões
poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu
escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na
noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço
físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num
universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o
que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário
cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o
«eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso
intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”,
sem as quais a vida se resume a nada.