Português: Sá de Miranda: entre as tradições medievais e as inovações italianas

terça-feira, 9 de abril de 2019

Sá de Miranda: entre as tradições medievais e as inovações italianas

            A grande maioria das composições do Cancioneiro Geral está versificada em redondilhas e dentro de certos moldes peninsulares quatrocentistas (vilancete, cantiga, etc.), cuja característica dominante é a de serem constituídos por um mote e respectiva glosa. Esta é a chamada medida velha.
            Entretanto, já no século XIII se consagrara na Itália um novo tipo de verso e de composição poética, o chamado «dolce stil nuovo». A partir de então impôs-se o verso de dez sílabas, o decassílabo, acentuado obrigatoriamente ou na 4.ª e 8.ª sílabas (verso sáfico) ou na 4.ª, 6.ª e 10.ª sílabas (verso heroico) – então denominado «hendecassílabo» (isto é, verso de onze sílabas), visto que, segundo o sistema italiano, se contava a sílaba postónica quando a última palavra era grave. Sendo mais longo, admitindo maior variedade de acentos facultativos e de pausas, o decassílabo é mais flexível, presta-se a maior número de combinações que a redondilha, e consente, portanto, maior liberdade ao poeta. Adapta-se a uma poesia mais individualizada, a uma maior variedade de tom e de temas.
            Quanto às combinações de versos, às construções estróficas, Petrarca seleccionou algumas já cultivadas pelos Provençais:
* o soneto, com dois quartetos de rima geralmente abba e dois tercetos sujeitos a combinações regulares de duas ou três rimas;
* a canção, com número variável de estrofes iguais e um remate, mas sendo o tipo de estrofe (que é um agrupamento de decassílabos e quebrados) da escolha do poeta;
* a sextina (seis sextilhas e um terceto final, com as mesmas seis palavras em diferentes finais de verso para cada estrofe);
* as composições em tercetos (de rima aba, bab, cdc, etc., e rematando por um quarteto em xyxy), e em oitavas (abababcc), composições que se podem prolongar indefinidamente;
» outras.
            O soneto e a sextina, ao contrário das restantes composições, um pelo esquema estrófico e ambos por um sistema obrigatório de rimas ou remates dos versos, mantêm-se mais próximos do formalismo da poesia medieval, e obrigam a uma condensação conceituosa do pensamento ainda comparável àquela que era imposta pelas composições com mote e glosa.
            Além destas formas e géneros, os Italianos assimilaram géneros líricos característicos das literaturas grega e latina, como:
* a écloga, quadro, geralmente dialogado, de tipos populares, sobretudo pastoris (tendo por moldes Teócrito e sobretudo Virgílio);
* a elegia, poema de tonalidade melancólica (à imitação de Tibulo e Propércio) ou sentenciosa (conforme os modelos helénicos), a que os poetas renascentistas adaptaram a composição em tercetos;
* a ode, quer laudatória (modelo: Píndaro), quer lírica, mais heterogénea (modelos: Safo, Alceu, Anacreonte, Catulo e principalmente Horácio);
* a epístola, ou carta em verso (que tem igualmente o modelo em Horácio);
* o epigrama, composição curta e conceituosa, de conteúdo geralmente satírico (modelos: Juvenal, Marcial);
* o epitalâmio, composição congratulatória dirigida a nubentes.
            O estilo novo correspondia a um novo conceito de poesia. O «poeta» quer distinguir-se do «trovador», pretende ser mais que um simples artífice do verso.  Arroga-se a vocação e o destino de revelar o mundo íntimo do amor e de apontar o caminho glorioso por onde devem seguir, não os homens vulgares, mas os grandes do mundo. A poesia tem para os poetas humanistas uma função doutrinária e edificante. Não falando na poesia heroica, nem no teatro, a poesia lírica só por si comporta os assuntos mais diversos além do amor: elogios de heróis, conselhos epistolares sobre o bem público, ensinamentos morais, políticos, religiosos e filosóficos.
            A influência italiana na lírica peninsular manifesta-se já na primeira metade do século XV: o petrarquismo, como nova expressão do amor, é corrente nos cancioneiros castelhanos do século XV e nos poetas quatrocentistas do Cancioneiro Geral. Mas, embora já muito antes o marquês de Santillana tivesse escrito sonetos «al itálico modo», e o italiano castelhanizado Francisco Imperial praticasse os metros do novo estilo, só no séc. XVI, com Juan Boscán e Garcilaso de la Vega, enraizou ele definitivamente na Península.

A. J. Saraiva & Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa

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