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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Linhas temáticas de A Sibila

1. O mistério do ser humano ou o vivido e por viver (pp. 88-89, 123-135, 168-169, 170, 181, 248-249)

            As duas páginas finais funcionam como uma espécie de síntese, de desenlace, que já vinha sendo anunciado e preparado desde o início. Tomando como paradigma uma mulher do campo que se notabilizou pelas suas qualidades descobertas durante a doença iniciática, Agustina parece ter desejado radiografar a incomensurabilidade do ser humano, as suas realizações e as suas frustrações, a sua radical solidão.
            Não é verdade que todos nós nos debatemos com as nossas frustrações?
            Não é verdade que muitos de nós ainda não descobriram as suas potencialidades nem nunca as chegarão a descobrir?

            2. As relações homem-mulher (pp. 33, 52-53, 63, 86)

            A mulher é um ser realista, intuitivo, responsável e enraizado profundamente na terra; o homem é um ser volúvel e irresponsável, que procura sem cessar o prazer. Vive fora de casa e deixa à mulher as responsabilidades de administração e as tarefas domésticas; por isso, os homens dissipam os bens, enquanto que as mulheres os conservam, ampliam e transmitem. As mulheres, escravas do lar, parasitas dos homens, aceitando, resignada e estoicamente, a sua condição de procriar e conservar, são hostis às inovações, escapam às mudanças do tempo, mantêm as suas tradições ancestrais e são felizes à sua maneira. Os homens, vivendo fora de casa, em contacto com as alterações sociais, são marcados pela noção do tempo.

3. As relações familiares (pp. 20-21, 23, 27, 35, 39, 53-54, 119)

            Dado o casamento ser, regra geral, uma mera união de patrimónios, é natural o casal não ter um relacionamento humano harmonioso e viver em constante conflito: ou porque o homem mantém as suas aventuras extraconjugais, ou porque é bronco ou estúpido, ou porque age segundo estatuto de superioridade. E, como reflexo, as relações dos pais e dos filhos também não são harmoniosas.

4. A sociedade é marcadamente matriarcal (pp. 52-53, 81)

            Pelo que foi referido anteriormente, facilmente se pode concluir que as mulheres são valorizadas no que diz respeito à garantia da sobrevivência dos bens. Os homens depositam irresponsavelmente nas mãos das mulheres a tarefa do destino da casa. Maria, Estina e Quina são uma trindade feminina muito valorizada.

            5. Visão negativa de todos os seres humanos

            Todos os seres humanos são negativos, ridículos e mesquinhos. A imagem de Quina, apesar de tudo, sai amenizada, dadas as suas qualidades já referidas. O narrador expressa claramente os defeitos dos seres humanos: intrigas, mentiras, crimes, estupidez, adultérios. Todavia, podemos concluir que esta visão negativa é exagerada, visto que as virtudes das personagens são devidamente salientadas e valorizadas.

            6. Noção de propriedade

            Entre o povo aldeão, rural, a propriedade privada é tida como sagrada. Ainda hoje, acontece que, por reivindicações mesquinhas (por um metro de terreno, por exemplo, se cometem grandes crimes). Na casa da Vessada há ainda a sua ligação aos laços de sangue: "A casa da Vessada, com os seus campos, as suas presas e o seu montado, e que tinham sido pertença de mais de dez gerações dum mesmo ramo, caberia ao mais nefasto inimigo da sua propriedade, se ele fosse o competente herdeiro e o continuador." (p. 224). Ou seja, a propriedade é entendida como herança sagrada a transmitir ao herdeiro seguinte, de geração em geração. Foi por isso que Custódio não conseguiu ser o herdeiro da casa.

            7. Noção de casamento

            O casamento é visto como forma de enriquecimento e em que o amor é secundário e até supérfluo: "(...) E o homem que ela amava desistira do casamento, medida esta tida por demais natural entre o povo do campo, para quem o casamento é mais do que o imperativo da espécie – é a união de dois patrimónios.
            - As mulheres só gostam de tratantes – dizia ela, como se anunciasse um teorema de geometria." (p. 39)
            Dois episódios exemplificam esta conceção: o casamento de Estina com Luís Romão desfaz-se por falta de património, de dote, da parte dela; o mesmo acontece com Quina e Adão, que, juntamente com o avô, representam o tipo dos agiotas, profundamente gananciosos e materialistas.

            8. Oposição campo/cidade

            O campo é associado à preparação para a vida, às privações e ao trabalho; a cidade está ligada à futilidade, à esterilidade, ao ócio, à superficialidade, à vaidade a ao artificialismo.
            Por outro lado, as personagens que abandonaram o campo e ascenderam à burguesia citadina são criticadas e até caricaturadas pelo seu ridículo, pela sua desadaptação e pelo seu postiço. Veja-se o caso de Elisa Aida, de Narcisa Soqueira e das filhas do tio José.
            As pessoas que permanecem fiéis ao seu meio e aí crescem, como Quina, são louvadas e elogiadas. A burguesia citadina aparece como uma ameaça ao equilíbrio da vida rural (pp. 37-38, 51, 65, 72, 102, 122).
            À aristocracia burguesia capitalista, cultural ou intelectual, é oposta e preferida a aristocracia da terra, propondo o regresso ou a fidelidade aos valores ancestrais, na tentativa de reencontrar uma pureza original perdida ou uma estrutura humana e social mais perfeita. (Cf. o diálogo que inicia e finaliza a obra.)
            A cultura popular manifesta-se nas tradições e modos de pensar do povo, nas crendices e nos provérbios, ganha projeção pelo seu primitivismo e pela sua ingenuidade. Ao contrário, a cultura citadina é tida como romântica, desligada do mundo real e cheia de frustrações. (Cf. pp. 14, 16, 35, 40, 87, 110, 117, 119, 125, 128, 135, 138, 189 e passim.)

Simbologia de A Sibila

            * Incêndio: símbolo da purificação, imprescindível à continuidade da família em lugar preservado de influências nocivas. Tal como o ouro, o metal precioso, é purificado pelo fogo, também a casa foi purificada das manchas e impurezas pelo incêndio, necessário à continuidade da família:
            "Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva."   
            (p. 7);
            "Acontecera pouco tempo depois da chegada de Maria." (p. 18).

            * Terra/campo: símbolo da autenticidade e ingenuidade e da fertilidade, da pureza original do homem, em contraste com a cidade, símbolo do artificialismo, da degenerescência: "A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendida da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações." (p. 7)

            * Cidade: símbolo da imitação, do superficial, do postiço e do castigo que pesa sobre os que abandonaram o seu lugar de origem; a esterilidade.

            * Pombal: símbolo do refúgio e da ternura;
-» o pombal (episódio dos borrachos) # o episódio das rãs = a fragilidade e a ternura de Custódio ≠ a sua crueldade e a violência primitiva.

            * Maçãs (símbolo bíblico): símbolo da beleza e do encanto femininos (Eva) e da sabedoria e fecundidade, coexistindo com as sucessivas gerações da família de Quina, como se se tratasse de um microcosmos feminino, onde existe consonância entre a existência de pessoas e objetos: "(...) sobrado, onde se acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de serrim." (p. 8)

            * Rocking-chair: símbolo quer dos pólos opostos de Quina – ternura e vaidade – , quer do fluir do tempo, fazendo lembrar o pêndulo do relógio. Pelo seu movimento oscilatório, e, consequentemente, ascendente, promove a subida espiritual, ou melhor, a ascese para onde a personagem principal sabia conduzir-se.

            * Mancha cor de sépia: sinal de predestinação: "Era uma menina de aspeto pouco viável, roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de sépia(...)". (p. 9)

            * Número 7: tradição cultural de antiguidade bastante remota (semana, lua, vida dos gatos, etc.), apresenta um significado pleno de valor místico, cuja simbologia é universal como o próprio homem: "Era a segunda filha que vingava num matrimónio de sete anos(...)" (p. 9)  ;   "(...) em toda a parte há sete cores e sete ventos, e o homem é só um." (p. 37)
            A este número, bem como ao 5, convergem numerosas superstições populares. Representam até atributos infernais para toda a vida: "Melhor é chamar, pois, Eva às quintas ou sétimas filhas, e que Adão sejam os infantes todos que venham perfazer esses fatídicos números." (p. 40)

            * Esterilidade da mulher de João: simboliza o efeito do abandono da terra (= fecundidade).

            * Casa da Vessada: local da evocação e da cristalização do tempo; relicário da memória dos tempos, das gentes e das coisas; local do (re)conhecimento (doença de Quina) e da revelação; local da oração; casa-templo.

            * Sala: local de reflexão.

            * Cozinha: local de convívio, do contar de histórias, da preparação dos trabalhos.

            * Eira: símbolo da comunhão e da solidão (opção de Quina de não casar face a Adão; Quina encontra Custódio depois de regressar da casa de Abel).

            * Quarto: espaço de amor; espaço dramático: doença de Quina, êxtase de Quina e morte de Quina.

            * Antigo quarto de João, que agora era madureiro de peras de inverno (p. 208): a partida de João para a cidade transformou o seu quarto num espaço útil.

Linguagem e recursos estilísticos de A Sibila

- Linguagem fortemente analítica do real.
- Uso da hipérbole.
- Linguagem erudita, variada, expressiva (narrador), mas adequada às personagens, por isso também, por vezes, proverbial, oralizante.
- Linguagem e vocabulário referentes à sociedade rural nortenha (entre 1870 e 1950):
. enumeração de utensilagem rural;
. marcas dialetais;
. estribilhos frásicos individuais;
. aforismos, historietas, superstições e orações;
. afetividades do campo;
. interjeições nortenhas: "Biras, biras, birinhas"; "Cantés!"; "Bô!"; "Adei", etc.;
. expressões populares: "Ela acadima!"; "Não se atrigue..."; "impontar"; "pagar a décima"; etc.
- Níveis de língua: cuidado e corrente, exceto nos breves discursos das personagens, em que predomina o nível familiar e o nível popular.
- Uso de estrangeirismos com intenção crítica.
- Linguagem sentenciosa (aforismos), reflexiva, elíptica, recorrendo frequentemente ao polissíndeto.
- Linguagem também complexa e antitética adequada, especialmente, à natureza de Quina.
- Linguagem hipotética (discurso modalizante), de acordo com a personalidade de Quina, sempre hipotética (sibilina).
- Utilização frequente do discurso valorativo, pois, em toda a obra, há valores que se negam e outras que importa preservar e transmitir.
- Construção periodal estirada, complexa, muito hipotática ou subordinativa, ritmada na adjetivação e na seleção cuidada dos verbos, por vezes com recurso ao paralelismo anafórico.
- Uso do pretérito perfeito (narrativo), do pretérito imperfeito (descritivo), do conjuntivo (hipotético/modalizante), do pretérito mais-que-perfeito (traduz a mutação retrospetiva).
- Utilização da hipérbole, da ironia, da metáfora, da comparação, etc.
- A linguagem simbólica (herança do Simbolismo).

Intencionalidade da obra A Sibila

            Os leitores e críticos não se pronunciam ou divergem na formulação de juízos de valor ou definição do significado ou intenção de A Sibila.
            João Camilo advoga tratar-se da história de uma família rural, pois esta "ocupa de facto o primeiro plano da história contada". Daí que tudo aquilo que atente contra os valores da família e do mundo rurais seja vergastado por um sarcasmo impiedoso.
            Ao longo da obra vai-nos sendo transmitida, nomeadamente através de Quina, a ideia de que todos aqueles (filhos de lavradores ricos) que abandonaram o campo e atingiram lugares de prestígio ou poder são traidores da verdadeira aristocracia – a aristocracia da terra. Sejam eles Bernardo, ou mesmo Germa, o médico que vem ver Quina (pertencente a uma "raça de proletários intelectuais que distinguem por si só uma época", oriundo de uma família em que "havia vários médicos, engenheiros, doutores de leis e um ou outro licenciado em Filosóficas, e que viviam mais ou menos dos expedientes das suas carreiras") ou qualquer personagem intelectual ou intelectualizado que se tenha guindado a uma posição de relevo através da cultura.

            Todavia, A Sibila não admite uma interpretação que se afigura demasiado esquemática e simplista. A obra é a história de uma família rural em decadência desde o último quartel do século XIX até meados de século XX, representada por um espaço (a Vessada e a comunidade rural em que se insere) e uma figura mítica, herdeira de uma tradição popular de mistério, figura de aldeia carismática, que enfrentou e venceu dificuldades e frustrações para se impor e conseguir riqueza, poder e veneração de todos. Há uma atitude crítica em relação aos que traíam as origens, se aburguesaram e vivem na cidade, mas, além disso, a obra retrata o combate humano de autoafirmação, ultrapassagem de barreiras, substituição de objetivos, quando os iniciais e preferidos se nos escapam, mesmo com alguma ou muita mesquinhez, primitivismo ou ingenuidade à mistura.

As relações entre a personagem narradora e o narrador omnisciente

            Germa, a personagem que é simultaneamente narradora, e o narrador omnisciente mantêm relações ao longo de todo o romance que Maria Alzira Barahona (Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português Contemporâneo) explicita do seguinte modo:

O leitor é introduzido na ação mediante a fala de uma personagem (Germa), que pressupõe um diálogo e tem como assunto a história de uma velha casa. A réplica vem da parte de Bernardo: meia dúzia de palavras cortadas por um parêntesis da autora que assim as faz acompanhar da descrição dos gestos de quem fala. E a réplica retoma-se… para ser imediatamente atalhada pela voz da autora, uma terceira pessoa que até então se mostrara testemunhal e que agora, numa atitude omnisciente, começa a discorrer sobre a sua personagem. E o leitor, levemente descoroçoado por não continuar a tomar conhecimento da conversa, procura compensar-se com as informações sobre Bernardo Sanches. Tem então o primeiro sobressalto: de súbito a voz da autora irrompe, fazendo ouvir uma reflexão própria. E o leitor (…) olha, desconfiado, esta primeira pessoa que se afirma despudoradamente através de um presente verbal. Quando prossegue o seu contacto com a personagem, através do que dela lhe comunica a autora, nova surpresa o detém: as informações, em que depositava a cega confiança devida ao autor omnisciente, são referidas como simples pensamento de Germa. O leitor procura sossegar-se e atribui a mesma dose de conhecimento a autor e personagem, o que, no caso, seria possível. Mas afinal não é isso que se verifica porque, meia dúzia de linhas adiante, a autora decide falar de Germa, sem qualquer indicação gráfica que permita a mudança; e é seguramente a autora, pensa o leitor, porque Germa não poderá falar de si própria na 3.ª pessoa. E sente-se confundido ao fim de uma página de leitura.

"Chão de giz", Zé Ramalho

A tradição oral do narrador de A Sibila

            A obra inicia-se com o diálogo entre Germa e Bernardo Sanches e termina com o mesmo diálogo. Tal situação parece filiar o romance numa tradição de narrativas orais, o que, aliás, é favorecido pelo narrador de 1º nível cuja opção foi contar e resumir em vez de mostrar e de construir cenas. A sua voz é omnipotente e omnipresente, estabelecendo a unidade entre personagens e episódios díspares.

Narração com base na memória

            O romance abre com o diálogo entre Germa e o seu primo Bernardo Sanches sobre a casa onde se encontram e a sua transmissão de geração em geração. Mas depressa Germa já quase não o escuta porque "(...) subitamente o ambiente ficara repleto doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, onde pairava um cheiro de priogana e de maçã, se enchia de uma expressão humana e calorosa, como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde vivem, e o seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação." (p. 9)
            É esta evocação que vai dar lugar à narração. Entre o início da evocação e fim do universo evocado passam-se cem anos. Toda a narrativa é formalmente apresentada como uma longa analepse na memória de Germa.

A opção do narrador de A Sibila

            O estatuto do narrador condiciona sempre a sua narração. Se a opção for por mostrar os acontecimentos, os locais em que se dão e as personagens que os realizam, teremos uma narrativa que privilegia as cenas; o leitor como que vê o que se passa como num palco ou num filme. Se a opção for por contar, a sua voz, será omnipotente e omnipresente, esperando que o leitor aceite a boa fé dessa voz, que diz o que lhe apetece e quando lhe apetece. Só resta ao leitor aceitar ou recusar, porque não vê.
            Ora em A Sibila, o narrador assemelha-se a um contador de histórias, privilegiando em absoluto o contar. Daqui resulta o facto de se assistir a uma acumulação de episódios, digressões sucessivas e a inexistência de uma intriga à maneira tradicional.

O narrador de A Sibila

            . Germa: narradora participante homodiegética.
            A Sibila é uma longa retrospetiva da vida de uma família feita por uma personagem secundária, Germa, que, sentada na velha rocking-chair de sua tia Quina, já falecida, a evoca com nostalgia, apesar da incompreensão e dos atritos que, muitas vezes, ensombraram as suas relações. A obra é um longo devaneio de Germa que começa e termina no mesmo espaço (a sala da casa da Vessada), com um diálogo entre ela e Bernardo Sanches.

            . Narrador (não participante) omnisciente: Germa é frequentemente substituída por um narrador omnisciente, isto é, que sabe mais do que as personagens e se desloca facilmente no tempo e no espaço.
            Este narrador dirige-se ao leitor (narratário) num estilo familiar, por vezes irónico, até humorístico, estabelecendo a ligação entre episódios e personagens díspares. Parece não se preocupar com o futuro da narrativa ou sua progressão dramática, derivando, frequentemente, para digressões que só aparentemente são desencadeadas pelos interesses ou intenções momentâneas da narração. De facto, há uma relação implícita entre os diversos episódios. Existe uma preocupação de ultrapassar o momentâneo e captar o eterno, o homem no seu combate de sempre, dilacerado por contradições, minado pelo vício, mas sempre apregoando virtudes.
            Em suma, o narrador omnisciente manifesta-se também como omnipotente, conduzindo a narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica, recorrendo à analepse e à prolepse, e fazendo com que a obra não tenha uma intriga, mas uma sobreposição de inúmeras histórias curtas. A minúcia com que os gestos ou comportamentos das personagens são descritos serve o objetivo profundo da narração: induzir o eterno e o todo através da acumulação do efémero e do fragmentário.

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Tempo-duração em A Sibila


            Agustina segue a noção do tempo como duração: sentimento da continuidade da vida, sentimento da continuidade na mudança, sentimento de eternidade.
            Segundo Bergson, o tempo-duração é uma forma de sucessão qualitativa dos nossos fenómenos da consciência; o nosso eu deixa de fazer a separação entre o estado do presente e os estados anteriores.
            Fora de nós, o movimento não é contínuo, mas só uma sucessão de posições: pontos-instantes. Por isso, a continuidade do tempo ou a duração é feita pela síntese da memória.
            O processo de criação processa-se pela memória, observando-se um jogo entre o imperfeito, o mais-que-perfeito, o perfeito e o presente, a ausência de verbos, a substantivação do infinitivo e o uso repetido do adjetivo.

Tempo e intemporalidade em A Sibila


            Um aspeto que confere ao romance um carácter universal é a linha da intemporalidade.
            Assim, o(a) narrador(a) faz sistematicamente um percurso de vai-e-vem: presente-passado-presente.
            A propriedade passa de geração em geração: "A casa da Vessada, com os seus campos, as suas presas e o seu montado, e que tinham sido pertença de mais de dez gerações dum mesmo ramo, caberia ao mais nefasto inimigo da sua propriedade, se fosse ele o competente herdeiro e o continuador." (p. 224)
            As pessoas e os objetos permanecem na memória e podem ser constantemente recordados como se lê neste romance.
            O balanço contínuo da rocking-chair parece indicar um movimento intemporal: na mesma cadeira, sentaram-se outras pessoas, na mesma cadeira, sentar-se-ão ainda outras. É a vida humana na sua dimensão eterna.
            Estes dados são indicadores do que escapa às contingências temporais para se projetar no horizonte ilimitado da intemporalidade.

Tempo e transcendência em A Sibila


            Há, pelo menos, dois aspetos importantes na obra: as orações de Quina e a referência frequente à morte. Quanto às orações, Quina ultrapassa a dimensão humana e entra na esfera da dimensão sobre-humana ou na linha dum tempo diferente, que lhe causa medo e sensações estranhas e novas. São momentos fugazes que não a deixam voar, não lhe permitem agarrar a chama de Prometeu, porque as coisas terrenas pesam-lhe como chumbo. Atingiria plenamente a transcendência se o seu misticismo se purificasse dos interesses imediatos. De qualquer forma, o romance constrói a ponte entre a imanência e a transcendência.
            Após a sua morte, permanece a herança, mas mais do que material ou temporal, o legado de Quina a Germa é espiritual. Aquilo que mais inquieta a herdeira não são os bens materiais que a tia acumulou à custa de muito sacrifício e habilidades ou esperteza e lhe deixou em testamento, para que a casa permanecesse na família, no sangue. Intelectual burguesa, civilizada nascida na cidade e cuja educação e personalidade foram muito influenciadas por Quina e pelo ambiente rural da Vessada, reflete sobre o passado, numa altura em que o discurso snob de Bernardo a aborrece, e interroga-se sobre p futuro. O importante está para além do tempo, não é controlado pelos homens, "é todo o destino". Estamos no domínio da transcendência, de tudo aquilo que ultrapassa os limites e poderes do homem e que, todavia, influencia todo o seu comportamento, as suas "aspirações".
            Quanto à questão da morte, devemos procurar as razões que levam o(a) narrador(a) a apresentá-la como algo de natural, que não provoca traumas nem angústias. Uma das respostas possíveis encontra-se no facto de que tudo ou quase tudo se passa numa aldeia, no campo, onde as pessoas convivem com essa dimensão mais naturalmente: os animais nascem e morrem; é o seu ciclo biológico. As árvores da mesma maneira. Os seres humanos também. Mas com estes a morte é acompanhada de fenómenos que a ligam ao transcendente, pois é interpretada como a saída do efémero, do temporal, do imanente, e a entrada na outra dimensão, numa dimensão que os transcende. Atente-se na naturalidade da morte de Quina (e já muito antes da sua mãe): num primeiro momento, ela teve um êxtase em que se viu festivamente integrada no cosmos; num segundo e último momento, depois duma longa evocação de todos os seres que lhe foram queridos ou com quem mais de perto se relacionou, ela, deitada na sua solidão, escuta os passos da "irmã" morte que a vem chamar para outra dimensão. (Cf. pp. 199-200; 207-212; 233-234)

Tempo-crónica

            A maior parte dos acontecimentos é narrada em analepses. O tempo preferido é, portanto, o passado. A memória desempenha, neste campo, um papel fundamental porque associa os acontecimentos: o(a) narrador(a), apoiado(a) nela, deixa-se arrastar ao sabor das linhas das diversas associações, interrompendo uns acontecimentos para episodicamente narrar outros, recuperando os primeiros num momento posterior. Assim, podemos concluir que o tempo é a dimensão temporal de cada acontecimento que se passa, tendo como centro a vida de Quina. É, pois, um tempo-crónica.

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