sábado, 3 de abril de 2021
"Os rios nasceram nossos", Quarteto 1111
O mito de Cupido e Psique — Brendan Pelsue
segunda-feira, 29 de março de 2021
domingo, 28 de março de 2021
"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes
Apesar de o título do poema apontar
para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto
autobiográfico?
É certo que o elemento «auto-» está
presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos
«meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que
aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia
se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo
que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A
Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva
presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da
autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia,
mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora
admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um
texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por
questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.
Uma leitura metafórica do poema permitiria
entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas»
como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente,
sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer
poético.
Porém, o poema pode ser lido também
de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do
quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam
de brincar com estas.
O uso do determinante possessivo
tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético
não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os
gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as
baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel
importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não
tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).
Numa crónica publicada na revista “Visão”,
Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido
durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação
metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos,
isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz
– e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que
em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua
interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois.
Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na
cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou,
com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”
A partir da leitura desta crónica,
Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que
“[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação
simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do
sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e
baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.
Assim sendo, esta composição poética
é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio
poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que
pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título
longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um
poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o
assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito
risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e
pela solidão humana que pode sugerir).
Além disso, os gatos ligam-se
afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma
que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a
escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão
associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória:
“O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para
crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”
O poema, pela relação que estabelece
entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à
questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não
vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história
de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior
de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”)
que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade
factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente
garantida.
O uso do presente do indicativo na
apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja,
a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à
autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que
compreende o relato de acontecimentos passados.
Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes
A composição poética constrói-se, em
parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da
expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do
mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre
ambos.
Por outro lado, o poema configura
uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança,
sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as
do segundo.
A figura adulta oferece uma
recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores
boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas.
De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente:
um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta
da gaiola.
A partir deste «episódio», mostra o
contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as
lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o
adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a
formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar
para se tornar uma “boa menina”.
Por outro lado, podemos ler a fala
inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a
menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado
modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de
tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e
pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o
sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes
mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo
ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo,
a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte
do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram:
ela não fora mesmo “boa menina”.
Por oposição, a fala da criança
traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia
traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo
indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do
adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de
pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter
deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do
adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa
menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como
único determinante da sua conduta.
Há, aqui, uma espécie de conflito
quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela.
As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com
que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo
o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é,
de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade
em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas
do bom comportamento não foram observadas.
Todo o poema é percorrido pela
ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua
conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o
antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele,
dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está
presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz
ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona
quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a
menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?
sábado, 27 de março de 2021
Análise de "A minha Musa antes de ser", de Adília Lopes
A Musa avisa o «eu», antes mesmo de
desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração
ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar
custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa,
castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça”
que faz ao sujeito poético.
Apesar de reconhecer a crueldade da
sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com
ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao
que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e
auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de
Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se
atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do
mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo.
Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela
inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da
linguagem.
Sucede que, neste poema, a Musa
inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua.
A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala
nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura
mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das
formas verbais nas primeira e segunda pessoas.
A nível estilístico, a repetição
irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade
desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua”
é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão
humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da
fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma
espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de
fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter
consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de
que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e
contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua”
no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético
desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.
Este acarretará, naturalmente, consequências.
Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada,
não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar
disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a
língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo,
este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito
poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.
"Eu sou a luva", de Adília Lopes
Neste poema, o sujeito poético
apresenta-se com diversos «eus».
A composição poética abre com duas
metáforas: a da luva e a da mão, que sugerem a ligação entre duas pessoas,
equiparando-se no que diz respeito ao modo de pensar e de agir. No entanto,
neste poema parece sugerir a existência de conflitos e divisões.
A ausência de pontuação –
nomeadamente de vírgulas – permite-nos fazer diferentes leituras do texto. Assim,
o sujeito poético apresenta-se, no início, marcado por dois nomes: a luva e a
mão. Poderá isto significar que há dois «eus»: a Adília e o eu, que o sujeito
poético procura fazer coincidir, formando um único ser. Deste modo, estaremos
perante a união do sujeito poético (eu) com Adília. Convém, neste contexto, ter
presente o facto de Adília Lopes constituir o pseudónimo literário de Maria
José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Deste modo, quando afirma que o «eu»
do poema quer coincidir consigo “mesma”, este «eu» parece não ser já Maria
José, visto que é com Adília (a figura que assina os textos) que o «eu» se quer
unir, formando um único ser. Esta ideia parece ser confirmada por entrevistas
dadas pela própria poeta, que afirma que “Adília Lopes e Maria José da Silva
Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu.”. No entanto, logo
de seguida acrescenta: “E muitos outros nomes que eu não sei”.
Esta nota permite fazer outra
leitura do poema. Se separarmos as conjunções coordenativas copulativas «e»
presentes nos versos 2 e 3, deparamos com uma pulverização de «eus», visto que,
além de Adília Lopes e Maria José, podem existir “muitos outros nomes”. Assim
sendo, o «eu» que encontramos no início do poema não seria nem Adília Lopes
(embora no terceiro verso apareça uma Adília, convém notar que o sobrenome
Lopes não está presente, o que poderá indiciar a existência de outra figura, de
outro nome, diferente da poeta que assina os seus textos como Adília Lopes) nem
Maria José, mas um «eu» que não sabemos quem é. A leitura do segundo verso,
deste modo, estender-se-ia até à segunda conjunção «e», presente no verso 3.
Este dado permite afirmar que a mão é, agora, Adília. A ocorrência do segundo
«eu». No final desse terceiro verso, poderá remeter tanto para o «eu» do
primeiro verso como para outro, distanciando-se do primeiro. É este segundo
«eu» que quer coincidir consigo mesmo. Assim sendo, se, de acordo com a
primeira leitura, estaremos perante o par Adília Lopes / Maria José, de acordo
com a segunda, seremos confrontados com várias «faces», podendo ser ora Adília
Lopes, ora Maria José, ou ainda muitos outros nomes.