sexta-feira, 16 de dezembro de 2022
Análise do poema "Mangueira", de Gonçalves Dias
Análise do poema "Marabá", de Gonçalves Dias
Este poema, que relata a luta de uma
jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos
Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras
e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático
AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No
que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas
métricas.
A única palavra que constitui o título
– Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos
índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para
eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam
gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como
malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a
criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do
encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos
concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas
imperfeitas e indignas da sua cultura.
No que diz respeito à estrutura do poema,
temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado.
Somos colocados perante quatro situações:
1.ª) Referência aos olhos.
2.ª) Referência ao rosto.
3.ª) Referência ao colo.
4.ª) Referência aos cabelos.
Em todos os casos, o sistema é o
mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por
alguém, que acrescenta algo mais.
Desde os primeiros versos, encontramos
um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo
outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha
do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de
Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o
trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja,
produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é
rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será
uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro
que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga
apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui
neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio
como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.
Seja como for, fica desde já
estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial
intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é
puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do
eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma
realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar
que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é
unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a
grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a
isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.
Porém, Marabá não se conforma e
prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são
da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são
esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto
de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza,
através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão
presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra
forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas
qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar.
Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos
outros, mesmo que tenha olhos belos.
De facto, a segunda e a terceira
estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela
própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro
(“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem
autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos
da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do
Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento
do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao
«céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do
mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas
mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro
mais puro” e com a beleza de um beija-flor.
Em suma:
1. Os olhos de Marabá são garços
(esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são
recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.
2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado
pela preferência por um rosto moreno.
3. O colo é flexível e elegante, mas
também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.
4. Ela tem cabelos louros e anelados,
mas o homem prefere-os lisos.
Por outro lado, o retrato de Marabá
pode ser sintetizado da seguinte forma:
• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente
brasileira;
• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela
sua própria comunidade;
• tem olhos garços (verdes);
• a sua pele é alva (da cor dos lírios);
• os cabelos são louros, longos e anelados;
• vive solitária, desprezada pela sua tribo;
• vive desiludida, por sofrer de
discriminação.
Este quadro permite concluir que
temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição
entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta
mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos
ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está
obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de
comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar,
as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços
preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do
facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam
símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a
consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus
relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não
correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que
os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido
excluída do povo de Tupã.
O verso seguinte confirma a
rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a
mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se
em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece
nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria
levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os
cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como
fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e
rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo
sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e
vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos,
compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no
paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam
por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que
fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.
Mediante isto, podemos concluir,
desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma
figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo
que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada
em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos,
para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está
condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que
potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que
apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste
modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem
à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma
reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes
derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a
impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio
«jamais» marca bem a sua solidão.
De facto, depois de todo o poema nos
colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes
finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia
/ Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”.
Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou
Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta
pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu
tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o
qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de
cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se
tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que
agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do
interlocutor venceu.
O poema põe em discussão a
importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia
mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa
autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento,
inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é
determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos
discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se
consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor.
Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na
coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível
para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno
solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de
Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se
fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de
miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota
da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por
outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem
vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem
vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim
sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do
povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê
ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de
preservação, a superioridade da sua beleza étnica.
No que diz respeito a influências, no
poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça,
com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote
utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a
rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão
amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o
poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de
amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor,
lamentando o desprezo a que é votada.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
Análise do poema "Canção do Tamoio", de Gonçalves Dias
domingo, 11 de dezembro de 2022
Análise do poema "Mãos esculturais", de Agostinho Neto
Análise do poema "Para além da poesia", de Agostinho Neto
Análise do poema "O caminho das estrelas", de Agostinho Neto
A composição é construída, gráfica e
formalmente, de modo a sugerir a visão de um caminho, aliás como o próprio
título já sugere. De facto, o poema é constituído por oito estrofes com um
número de versos diferente, o que significa que não há liberdade.
Os cinco versos iniciais formam uma
espécie de introdução, remetendo para o caminho que tem de ser percorrido.
Deste modo, o sujeito poético compara o caminho das estrelas com a curva do
pescoço de uma gazela, um animal característico de África, esboçando, pois,
desde já a forte relação entre a identidade coletiva e a natureza, como se
tentasse demonstrar onde está a origem, portanto, o elemento-chave para a
compreensão do «eu» e para a reflexão acerca da memória.
Logo no primeiro verso, a forma
verbal “seguindo”, no gerúndio, sugere uma ação inacabada, ainda em realização,
refletindo algo que está em andamento, que não foi concluído. Assim, o poema
segue em ritmo de caminhada.
São vários os elementos da natureza
evocados na primeira estrofe: “onda” reflete a presença do mar e da água; “nuvem”;
“asas primaveris” sugerem a suavidade e a beleza da natureza na estação da
primavera, em que a vida renasce, brotando por todo o lado. A impressão com que
se fica é que o «eu», a partir da observação da gazela, constrói o início de um
percurso.
A segunda estrofe mescla elementos
musicais com outros que remetem mais uma vez para a natureza e para a origem
das matérias, como é o caso do «átomo», da «partícula», do «germe» e da «cor».
Este último nome começa a aferir as identidades africanas, mas não segregando,
antes universalizando-as, ideia confirmada no verso 11: “combinação múltipla do
ser humano”.
A terceira estrofe, através da
presença do enjambement, continua a descrição do caminho, cruzando
tempos diferentes. O sujeito poético recupera a memória para refletir sobre o
presente. O agora, o tempo presente é reflexo dos factos do passado, que foram
inevitáveis, o que remete para a identidade africana. Ou seja, o «eu» apresenta-se
como se lembrasse o passado dos povos africanos ao fazer o caminho das
estrelas.
A quarta estrofe, a última da
primeira parte do poema sugere a ideia da ausência: faltam as formas, ideais
com cor, isto é, com sentimento ou vida, sem ritmo, ou seja, sem música, ou
ainda sem cadência, sem cheiro, sem sabor e, por fim, a não existência de
raízes. O «eu» reforça a cada verso a ideia do anterior repetindo o tema, como
se procurasse mostrar ao leitor a força da negação, privação ou da pobreza do
caminho.
Separando as duas partes está um
verso solto composto por um vocábulo curto e simples: “Só”. Esta divisão
comprova a sensação de ausência, enfatizando a sensação de solidão e falta/ausência/privação.
A segunda parte aponta para a
esperança. Inicia-se com a conjunção coordenativa adversativa «mas», sugerindo
a ideia de contraste ou contrariedade, ou ainda retomando a imagem de
esperança, insinuada pelas expressões “verde esperança”, “cheiro novo das
florestas” e “chuva”. Esta última simboliza a renovação e a fortificação. A
água é fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração. Por outro lado,
a chuva é o símbolo universal das influências celestes recebidas pela terra; é
o agente fecundador do solo, que obtém a sua fertilidade dela.
A sexta estrofe alude à “seiva do
raio do trovão”, seiva essa que simboliza o alimento e a essência da vida,
enquanto o raio e o trovão se relacionam com o divino, pois o trovão seria a voz
do deus que está no céu e o raio a sua arma. Estes elementos e fenómenos
naturais aludem ao princípio da vida e à relação da esperança com o sagrado, o
sublime e o natural. Essa relação com o sagrado e com a conceção de um futuro
promissor são veiculados também pelos versos “as mãos amparando a germinação do
riso / sobre os campos de esperança”.
As duas primeiras estrofes da
segunda parte descrevem a concretude do “caminho das estrelas” a ser
percorrido: ainda que só, é constituído pela confiança e é santo. A esperança
perpassa toda a segunda parte; se na primeira ela estava ausente, nesta
predomina, destacando-se o ritmo, os sons e as cores, que retratam a vida
existente para a luta e para a caminhada.
A liberdade reside nos olhos, os
ouvidos podem ouvir e as mãos são insaciáveis pelo toque do tambor, num “acelerado
e clero ritmo / de Zaires Calaáris…”; todos estes elementos revelam o recomeço
ou o caminhar com vitalidade. Note-se que Zaire, além de ser uma província de
Angola, é também o nome do segundo maior rio da África, sendo que o território
angolano inclui parte dos sistemas, hidrográficos do Zaire. Por seu turno,
Calaári é um deserto localizado na zona sudeste de Angola, caracterizado por baixas
temperaturas mesmo durante a estação quente. Assim sendo, pode concluir-se que
existe a referência ao elemento areia (do deserto) e novamente de água (em
rio).
Ora, a presença do deserto e do rio
reflete a ligação com a pátria, tal com o tambor simboliza a musicalidade, o
ritmo do universo, a relação com a ancestralidade africana e constitui um
anúncio da guerra. Os nomes próprios Zaire e Calaári estão no plural e designam
as «montanhas», marcando a pertença das mesmas à região. A presença da cor
vermelha remete para o sangue, para a violência e para a vida, para o momento
de renascimento da coragem e da luta. O vermelho adjetiva aluz das fogueiras
feitas dos capinzais que foram violentados, ou seja, os capinzais estão vermelhos
porque foram violentados (assim se faz o cruzamento entre o humano e o natural)
ou porque receberam sangue humano. A estrofe finaliza evocando de novo a
musicalidade, através das “vozes tam-tam” e “ritmo claro de África”,
oficializando o fortalecimento das culturas africanas e evidenciando a harmonia
pelo encontro e reconhecimento da própria identidade.
A última estrofe do poema, a última,
de forma circular, retoma o início da primeira, clarificando a intenção musical
e apontando para a universalidade do conhecimento das origens africanas: “para
a harmonia do mundo”. Deste modo, o caminho foi sendo percorrido em busca do
«eu» coletivo e, para isso, foram descritos os sentimentos e características
desse caminho árduo em busca da libertação e da identidade. Assim sendo, o
caminho das estrelas é o caminho da reflexão da nação, do conhecimento
histórico e do reconhecimento da própria identidade coletiva.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
Análise do poema "O anjo da guarda", de Manuel Bandeira
Note-se, porém, que a abordagem do
tema da morte é feita de forma comedida. Em versos livres e brancos, o «eu»
poético exprime o seu apelo pela irmã, apelidando-a de anjo.
No primeiro verso (“Quando a minha
irmã morreu”), seguido de outro entre parênteses [“(Devia ter sido assim”), o
sujeito poético apresenta a sua hipótese sobre a morte da irmã: “Um anjo
moreno, violento e bom / brasileiro” veio guardá-lo, veio cuidar dele e, de
seguida, “voltou para junto do Senhor”, ou seja, morreu.
O adjetivo “brasileiro” é destacado
no poema, sendo disposto mais à direita e aproveitando criativamente o espaço
em branco da folha, possibilitando assim sugerir a descida do anjo, que “veio
ficar ao pé de mim”. A imagem da figura angelical é brasileira; o anjo é “moreno,
violento e bom”. Estes dois últimos adjetivos constituem um paradoxo, dado que
aproximam dois conceitos contrários. No entanto, eles irmanam-se, dado que “violento
e bom”, ligados pela conjunção coordenativa copulativa «e», realçam a forma
como o «anjo» impõe os seus cuidados. Por outro lado, é possível associar a
imagem do anjo à forma dedicada e intensa (violenta) como a irmã se dedicava a
cuidar do sujeito poético. De seguida, o sorriso do «anjo» tranquiliza-o, pois
anuncia a sua ascensão, isto é, a imagem da irmã funde-se com a do anjo, que
sobe em direção a Deus.
Análise do poema "Pneumotórax", de Manuel Bandeira
Na segunda parte, formada pelos
versos 4 a 7, encontramos o exame médico, destacando-se as dificuldades
respiratórias do paciente, indiciadas pela aliteração do som /t/ e pela linha
pontilhada que sucede ao verso 7.
Na terceira parte, entre os versos 8
e 10, o médico apresenta o diagnóstico ao doente: “– O senhor tem uma escavação
no pulmão esquerdo / e o pulmão direito infiltrado”. O paciente deposita toda a
sua esperança de cura num tratamento: “– Então, doutor, não é possível tentar o
pneumotórax?” A resposta do médico é irónica de brutal: qualquer tratamento
será inútil. E, eufemisticamente, diz-lhe para “… tocar um tanto argentino”. Ou
seja, o clínico está a dizer-lhe que não há qualquer esperança de cura para a
sua doença. E porquê a alusão a um tango argentino? Este era a música das
tragédias. Assim sendo, o diagnóstico sentencioso do médico é, simultaneamente,
irónico e eufemístico, visto que anuncia de forma indireta e até sarcástica a
iminência da morte do paciente.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022
Distinção entre oração coordenada explicativa e subordinada adverbial causal
Distinguir uma oração coordenada explicativa de uma subordinada adverbial causal não é fácil em muitas circunstâncias, o que dá origem a muitas apreciações erradas.
Com a devida vénia, transcrevemos a explicação da professora Maria Regina Rocha, retirada do Ciberdúvidas:
a) Não
almoço, porque não tenho fome. = Como não tenho fome, não almoço.
b) O Vítor
domina o vocabulário, porque lê muito. = Como o Vítor lê muito, domina o
vocabulário.
c) A Marta
não comprou o vestido, porque era muito caro. = Como o vestido era muito caro,
a Marta não o comprou.
d) O menino
caiu, porque ia distraído. = Como ia distraído, o menino caiu.
e)
Aplaudiram o orador, porque o discurso foi brilhante. = Como o discurso foi
brilhantes, aplaudiram o orador.
a) Sobe, que
te quero mostrar uns livros. = Sobe, pois quero mostrar-te uns livros.
b) Come a
sopa toda, que está muito boa. = Come a sopa toda, pois está muito boa.
c) Não
tenhais medo, que o mundo não acaba agora. = Não tenhais medo, pois o mundo não
acaba agora.
d) O Manuel
tem dinheiro, pois comprou um carro novo.
e) O pai já
está deitado, pois as luzes estão apagadas.
b) O facto de o Vítor ler muito é
a causa, o motivo, que o leva a dominar o vocabulário.
c) O facto de o vestido ser caro
foi o motivo, a causa, que levou a Marta a não o comprar.
d) O facto de o menino ir distraído
foi a causa da sua queda.
e) O facto de o discurso ser
brilhante foi a causa dos aplausos.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade
Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes
brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais
paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o
Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à
seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual
a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato
brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o
Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o
campeão foi o Guarani.
Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre
a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma
atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se
tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na
Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor
elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais
futebol por lá”.
Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge
Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época
em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com
entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de
trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais
e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o
holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que
repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como
sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol
deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o
dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção
chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção
argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais
notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção,
comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de
prosseguir em prova.
Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a
perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da
autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia,
e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –,
comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma
espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para
tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando
que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem
no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em
pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O
sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general
(Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse
contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato
Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31
de dezembro de 1978.
Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois,
de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o
Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela
primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta
(mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece
indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a
coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões.
Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente
conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico
o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os
políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António
Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam
deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no
Mundial do presente ano.
Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste
recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se
alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção»
pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa
proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas,
que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta.
Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no
céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor
conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”).
A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e
1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos
trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o
assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se
relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas:
“Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô
seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”.
De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares,
visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que
têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo
tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere
embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.
As estrofes seguintes focam outras questões: poluição,
assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a
violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo
estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só
entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição
e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio
para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade,
não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na
urbe se morre.
A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia
a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de
porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e
metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de
solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real,
concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer
encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não
dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.
Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras»,
agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de
futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois
escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se
o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao
longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O
arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso
denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que
prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima
pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de
Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em
15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de
março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e
truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia.
Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso
aglomerado de figueiras.
Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros
«primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas
genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos,
que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida
sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna
Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem
lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo),
tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa
humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um
professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da
invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma
espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de
Oliveira, Luana Piovani, etc.
A nona estrofe explicita o quadro económico e político do
ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em
1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o
enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos
pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo,
o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa
vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico
Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o
problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai
levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai
levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores,
substantivos, “mesmo com todo o problema”.
As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da
composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque
ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a
referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode
constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom
Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se
pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar /
Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”.
A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por
questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e
que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que,
para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta
ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras,
empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na
discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora
da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas
asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já
de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao
hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um
grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um
movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do
século XX, assente no «deboche».
A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um
sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete
para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em
festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para
mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma
segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E
inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente
para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de
1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia
entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo
que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a
Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas
da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a
criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece
o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”,
palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu
a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por
crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia»
constituem uma rima interna e formam anagramas.
A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético
é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é
apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa
(“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões
ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos
outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas
abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de
1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para
governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum
tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a
hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”.
A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”)
reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a
informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético
«atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o
que já se passou há bastante tempo?
O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte.
Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe
chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco
característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo
ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como
lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e
Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se
assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de
continuidade.
As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que
agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de
ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a
referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção
“Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim,
onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.
A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso
que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre
o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas
anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência
de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram
indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de
oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six
Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um
acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar
para o governo norte-americano.
Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é
assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o
que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais
espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste
suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval
subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o
enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu
raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática,
casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a
figura do prefeito biónico.
A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar»,
conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma
importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta
(deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da
alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande
questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o
Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já
referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António
Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de
janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média,
nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural.
De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema
demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No
entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na
televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o
palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação
dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama,
Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria
Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os
conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada
vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos
milhões de telespectadores.
O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção
coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito
poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas
de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo
de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.
Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação
do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar
(que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre”
foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado
cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito
crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a
falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna
Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o
entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.
A situação é dramática: as instituições estão
contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas
desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente
suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a
opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar
como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de
reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em
horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a
composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro
dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e
reflexão.
Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na
desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de
Luís Fernando Veríssimo”.