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domingo, 24 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A um frade dizem escaralhado", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, não possui refrão), em coblas singulares (ou seja, com estrofes com o mesmo esquema rimático), da autoria de Fernando Esquio, trovador provavelmente ativo entre o final do século XIII e início do XIV, compreende uma sátira, em termos bastante crus, a um frade que se dizia impotente, mas engravidava todas as mulheres que lhe passavam por perto, tendo três delas dado à luz no mesmo dia. Assim sendo, desde já, podemos concluir que a afirmação da impotência por parte do frade serve para esconder as suas aventuras sexuais.
    A cantiga aborda questão da libertinagem na sexualidade, a partir da referência à virilidade sexual de um frade, que se fazia passar por aleijado ou impotente: “A um frade dizem escaralhado, / e faz pecado quem lho vai dizer”. Ou seja, quem espalha esse rumor sobre o frade comete um pecado, isto é, comete um erro. A razão é simples: “ca, pois el sabe arreitar de foder, quer dizer, possui potência, virilidade, para praticar o sexo, o que o deixa feliz (de acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, “gai” – alegre – é um termo provençal que, tradicionalmente, era lido por vários estudiosos como “que gaj’é” – que é um gajo –, todavia o termo “gajo” só começou a ser atestada em português em meados do século XIX, pelo que a sua utilização nesta cantiga não parece verosímil; eventualmente, podemos também associar o vocábulo ao sentido de “promíscuo”). O calão “de piss’arreitado” reforça a promiscuidade do religioso e o desrespeito pelas normas da religião que professava, nomeadamente a do celibato. Por aqui passa a crítica do trovador à quebra desse voto por parte do clero.
    Resumidamente, o trovador fala de um frade que dizem ser impotente (“escaralhado” significa “desprovido de membro viril”), boato que o próprio religioso teria confirmado. Na verdade, não só seria dotado de pénis, como este funcionava muito bem – como se depreender da expressão “saba arreitar de foder”, que indicia a sua potência sexual – e tem ótima disposição para o sexo, de modo que, como se verá, engravidou várias mulheres, por isso, ao invés de “escaralhado”, é um homem “bem encaralhado”.
    O escárnio e a sátira acentuam-se com a referência ao facto de o frade engravidar todas as mulheres com quem se deita (hipérbole), gerando diversos filhos e filhas, o que prova que é “bem encaralhado”, ou seja, que é bem potente sexualmente, ao contrário da fama de impotente que possui. De facto, o religioso não peca de forma isolada, antes continuada e profícua. O uso recorrente do calão expõe-no como um símbolo de corrupção e desrespeito pelos preceitos religiosos. Em simultâneo, se conectarmos a mensagem da cantiga à atualidade, poderemos considerar que a crítica se vira para a própria instituição Igreja, por forçar os seus membros a adotar comportamentos anti-natureza, como o celibato, isto é, a inibição do sexo.
    A ironia acentua-se na segunda estrofe: o sujeito poético afirma, ironicamente, que nunca usaria o termo “escaralhado” para designar o frade e fá-lo como se fosse uma espécie de concessão: “Escaralhado nunca eu diria”. Exemplificativo do seu vigor sexual é o facto de trazer o membro viril: “mais que traje ante caralho ou veite” (termo provençal que significa «verga», «pau», ou seja, em sentido figurado, pénis. Mais esclarecedora é a afirmação segundo a qual tem várias mulheres de leite, quer dizer, a amamentar filhos seus. Estes versos (“ao que tantas molheres de leite / tem”) tem duas leituras possíveis: a primeira sugere que o frade mantém relações sexuais com mulheres lactantes; a outra que o religioso se torna para as mulheres um deleite sexual, pelo seu “caralho arreitado”. A sátira atinge o zénite com a hipérbole “ca lhe parirom três em um dia”, isto é, três mulheres deram à luz, engravidadas por ele, no mesmo dia. Além disso, como se não bastassem já os factos apresentados para desmentir a sua pretensa impotência sexual, ficamos a saber que o frade possui muitas outras mulheres grávidas: “e outras muitas prenhadas que tem”. Em suma, o religioso tem mulheres engravidadas por si a amamentar; três deram à luz na mesma data; muitas outras estão grávidas. O que se pode concluir de todas estas provas? O frade seria muito “encaralhado” por isto. A ironia é clara: o indivíduo é o oposto de “escaralhado”, de impotente; pelo contrário, é particularmente dedicado ao sexo e fértil, como o comprovam as inúmeras mulheres com quem manteve relações sexuais e que engravidou
    O trovador, ao longo do poema, enfatiza sistematicamente a quantidade exagerada de mulheres com as quais se relacionam sexualmente. Na terceira estrofe, são apresentados outros exemplos: o da famosa soldadeira Marinha e de uma pastorinha prenhe, além de “muitas molheres que fode”. Deste modo, o «eu» lírico afirma, logo no primeiro verso, que tal homem “Escaralhado nom pode ser”. A conclusão, óbvia, surge nos dois versos finais da cantiga: um frade assim, por tudo isto, tem que ser muito viril (“e atal frade bem cuid’ eu que pode / encaralhado per esto seer”. Observe-se que o termo «arreitado» ainda é usado na Baía. No Brasil, nas formas “arretado” e “retado”, com o sentido de alguém muito masculino e também de pessoa ágil e firme. Os dois sentidos acabam por se ligar, dado que a ideia de firmeza sempre se associou à sexualidade.
    Em suma, o trovador enfatiza as habilidades do frade, referenciando-as cinco vezes (vv. 3, 4, 5-6, 7 e 9). O frade teria tantas parceiras sexuais que, em determinada ocasião, teriam nascido, no mesmo dia, três crianças de três mulheres engravidadas pelo frade. O trovador chega, inclusive, a citar o nome de uma das mulheres com quem o religioso se relacionava: chamava-se Marinha e seria mãe de vários filhos dele. O «eu» poético fala de uma «pastorinha», termo que significava uma mulher jovem, indiciando que o frade tinha engravidado também uma jovem de pouca idade, além de diversas outras mulheres.
    Estilisticamente, além do uso da ironia (“A um frade dizem encaralhado, / e faz pecado em que lho vai dizer”; “e atal frade cuid’eu que mui bem / encaralhado per esto seria”) e do calão cru, há que destacar o jogo com as palavras «escaralhado», que designa alguém impotente, e «encaralhado», que apontam para alguém constrangido, que se encontra em situação difícil ou de embaraço. Assim sendo, o primeiro vocábulo associa a figura do frade a uma pessoa que possui uma reputação indesejável, a de ser incapaz de manter relações sexuais, o que, em termos práticos, até se poderia considerar benéfico, pois, deste modo, mesmo que contra a sua (eventual) vontade, ele respeitaria o voto de castidade. Por sua vez, a segunda palavra remete para uma reputação conotada com a virilidade, a masculinidade, mas também à devassidão e à luxúria.
    A anáfora, presente no uso repetido da conjunção coordenativa copulativa «e», serve o propósito de intensificar o caráter devasso e a virilidade do frade, visto que serve a enumeração dos factos que o atestam [o caráter]: “e pois emprenha estas com que jaz / e faze filhos e filhas assaz”; “ca lhe parirom três em um dia, / e outras muitas prenhadas que tem; / e atal frade…”. O diminutivo «pastorinha», equivalente a «mocinha» / «jovenzinha», carrega em si as ideias de pureza e simplicidade, bem como de juventude, logo de inocência, em tese, da figura feminina (em tese, porque, na prática, mantém relações sexuais com o frade), que contrastam com a do frade, devasso e experiente, pelo que não lhe seria difícil seduzir uma jovem. A aliteração em «f» (“e faze filhos e filhas assaz”) enfatiza a consequência da devassidão do frade e da sua atividade sexual repetitiva e sem contenção: o gerar de uma quantidade grande de filhos. A hipérbole (“tantas molheres de leite tem, / ca lhe parirom três em um dia”) dá nota do número elevado de mulheres com quem o frade manteve relações sexuais e, consequentemente, engravidou, indiciando o comportamento devasso e descontrolado, completamente alheio ao dever de castidade. O religioso é, de facto, um homem extremamente fértil e com uma vida sexual bem ativa, em suma, um femeeiro contumaz.
    Nesta cantiga, a impotência é apresentada como estratégia de conquista do frade, que age de modo a sugerir que sofre de impotência (de estar escaralhado – versos 1, 8 e 15), em que muitos acreditavam. Deste modo, não se trata efetivamente de impotência do religioso, mas, pelo contrário, de uma forma de encobrir, aos olhos das demais pessoas, a sua intensa atividade sexual e desrespeito pelo voto de castidade.
    De forma genérica, o trovador denuncia que um frade, que todos creem impotente, na verdade não o era, bem pelo contrário. O adjetivo qualificativo «escaralhado» significa, ao pé da letra, “aquele que não tem o seu membro viril”. O sentido de não o ter desse modo procura sugerir a ideia de que não servia para tal fim, ou seja, era impotente. No entanto, o trovador atesta que “el sabe arreitar de foder” (v. 3), o que significa que o pénis funciona em pleno, como o atesta o facto de engravidar as mulheres com quem se relaciona (v. 5). Os versos finais de cada estrofe apresentam outro qualificativo – «encaralhado» (vv. 7, 14 e 21) –, que significa o oposto de «escaralhado», isto é, quer dizer “portador de membro viril”.
    O uso desses vocábulos confirma a existência de um mecanismo característico da cantiga de amor: o dobre. Este recurso consiste num processo através do qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na primeira estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas seguintes deverá repetir-se uma palavra na mesma posição). O primeiro dobre, focado nos versos iniciais das estrofes, refere-se à palavra «escaralhado», ou seja, impotente. O segundo dobre é o qualificativo «encaralhado», presente nos derradeiros versos das estrofes, e indicia que o frade, afinal, não é impotente, pelo contrário, é um expert em matéria de sexo.
    Esta cantiga, em suma, denuncia a prática recorrente na época: a manutenção de concubinas por parte de membros do clero, o que contraria as recomendações saídas do IV Concílio de Latrão, que teve lugar em 1215. A questão é que o trovador insinua que o frade pratica sexo de forma ostensiva, inclusive com mulheres que amamentam (porque geraram filhos seus).
    De acordo com Hugo Gonçalves [in Prática Sexual e Humor nas Construções Identitárias da Nobreza Portuguesa na Corte Dionisina (1279-1325), Goiás, 2014), “A manutenção de relações sexuais por parte de clérigos era uma preocupação não só da igreja. De uma maneira ou de outra, o poder secular se envolveu nestas questões, visando restringir esse tipo de envolvimento. Ao clérigo que se casasse com mulheres virgens, era-lhe reservada a justiça secular: fosse através de um processo, fosse pela cítola. Em uma lei datada de 1305, Dom Dinis reivindica para o poder secular o direito de julgar os clérigos que se envolvessem com mulheres virgens. Essa atitude visava proteger as mulheres – especialmente as pertencentes a qualquer círculo da nobreza, que seriam as ideais para o casamento – de se envolverem com algum clérigo que não pudesse dispor de bens para seu favorecimento. Portanto, a petição do monarca é de que o clérigo que violentasse alguma mulher leiga fosse excomungado como se tivesse agredido a outro clérigo, e por isso passasse para as mãos da justiça régia […].
    Outra forma de fazer justiça consistia nas sátiras, pois era uma maneira de se denunciar práticas vigentes e condenáveis aos olhos daquela sociedade. Através do humor, do riso e da pilhéria, se criavam situações, hipotéticas ou não, que certamente traziam certa desconfiança para os adeptos das práticas deletadas. Seus delatores, bem como a maioria da audiência, certamente se deleitavam em imaginar os envolvidos, ou ainda certamente acusavam uns e outros de serem os atores da cena, comentando o clima humorístico envolto nas encenações destas cantigas.
    Portanto, retorna-se à questão da cultura do insulto, pois essas delações pressupunham que houvesse certo afastamento deste clérigo das “muitas molheres que fode” (v. 19), já q eu não o poderia. É impossível reconstruir o ambiente de encenação dessas cantigas, mas ao que tudo indica elas sugerem uma pessoa, sem dizer nenhum nome, as quais eram motivo de divertidas especulações momentâneas, em busca da correspondência real da personagem da sátira. Assim é possível afirmar que essas práticas entre os clérigos eram comuns.
    A construção identitária da nobreza também se dava nestas ocasiões, afinal, escarnecer dos clérigos que não podiam manter tais práticas, enquanto os mesmos nobres a mantinham era uma maneira de se afirmar através do humor. Em última instância, existe uma sugestão de que o referido clérigo mantinha relações com uma soldadeira, que era uma categoria de mulheres que acompanhavam os jograis – músicos que viviam desta atividade, recebendo pelas apresentações que faziam, e às vezes produziam algumas cantigas – e bailavam nas apresentações dessas composições poéticas. Estas mulheres tinham diferentes tratamentos nesta sociedade, muitas vezes sendo confundidas com prostitutas.
    Os estatutos de uma e de outra são diferentes, e as soldadeiras nem sempre eram prostitutas. Por outro lado, como a cantiga propõe em relação à Marinha, essas mulheres deveriam manter relacionamentos sazonais nas cidades que mais frequentavam. Daí pode advir a explicação do facto de o frade ter feito “tantos filhos em Marinha” (v. 16), por ela ser uma soldadeira com quem tivera várias oportunidades de se encontrar.
    […]
    Fernando Esquio, por sua vez, tratou a impotência como uma possível estratégia necessária para um frade disposto a peripécias sexuais, já que mão podia manter relações deste tipo, e que acreditava que fazer com que as mulheres pensassem que era impotente o ajudaria a continuar indefinidamente com suas companheiras.”

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Análise do capítulo X de O Cortiço

     Ao longo da obra, já assistimos a modificações operadas em várias personagens:
        - Jerónimo e Rita;
        - Pombinha.
    Agora vai-nos ser apresentada a causa da mudança de João Romão.
    Enquanto Miranda invejava João Romão pela sua capacidade de enriquecer pelo seu próprio trabalho; João Romão invejava Miranda por este ter sido nomeado barão. É a subida de Miranda que provoca em J. Romão a consciência da sua miséria e do desperdício do que ganhara. Toda a riqueza que tem de nada lhe serve, pois nunca fez nada educativamente e em termos sociais para subir de classe.
    Começa agora a manifestar-se a diferença entre J. Romão, que sente a necessidade da mudança, e Bertoleza, que mantém a mesma atitude para com a vida. Esta diferença vai acentuar-se ao longo do romance. Aponta-se a ideia da civilização, tópico típico do Realismo.
    O capítulo termina com uma noite de domingo e com festa no cortiço e em casa de Miranda.
    No cortiço, Firmo apercebe-se do que se passa entre Rita e Jerónimo e a discussão termina em luta, em que Jerónimo é ferido. Chega a polícia, mas é impedida de entrar, funcionando sempre a imagem do grupo, apesar de algumas referências individuais.
    Há toda uma variedade de acontecimentos descritos: o romance assume uma grande variedade de níveis temáticos. Os acontecimentos são sempre marcados pela intensidade, veemência e sentimento; são episódios que mostram vivências individuais, mas sobretudo vivências em grupo. Todos os elementos descritos com intensidade têm uma função e consequências.
    O capítulo termina com a referência a um fogo que começa a alastrar no cortiço.

Análise do capítulo IX de O Cortiço

     Temos aqui 3 episódios importantes:
        => Modificação de Jerónimo, agora uma pessoa totalmente diferente: tornara-se contemplativo, sedutor, apreciador dos prazeres, tudo resultante da influência da vida americana e da natureza do Brasil.
    Ao contrário, a mulher continuava íntegra e fiel à sua tradição de portuguesa; apenas mudara exteriormente. Estava até mais triste por causa da mudança operada em Jerónimo, que começa a repeli-la. As modificações tinham correspondência no apuramento dos sentidos, o que o afasta da mulher e o aproxima de Rita Baiana.

        => Novo escândalo, provocado mais uma vez por um episódio de cedência sexual: Florinda aparece grávida de Domingos, no que é apoiada pelas mulheres do cortiço. A mãe exige uma reparação, mas mais uma vez é João Romão quem tira proveito da situação, aproveitando-se do que acontecera. Isto mostra a situação da mulher: é sempre ela que perde.

        => Visita de Léonie, uma prostituta que vem visitar o cortiço e traz a afilhada Juju. O assombro que provoca vem do exagero com que se apresenta, mas também do sucesso que tivera na vida. Apesar de ser representante de um tipo de vida negativo, ela é muito querida e respeitada no cortiço. Apenas Rita não se deixa impressionar.
    Na sucessão dos acontecimentos, encontra Pombinha e marca com ela um jantar, que já por si é um indício do que irá acontecer.

Análise do capítulo VIII de O Cortiço

     Descreve a continuação do processo de mudança de Jerónimo, sobretudo pela aproximação aos novos costumes e a Rita e consequente afastamento em relação à mulher.
    Piedade mantém-se íntegra: não acompanha a mudança do marido, que se aproxima de Rita, principal representante das sensações que o ligam ao Brasil (ex.: café).
    A apresentação da aproximação de Jerónimo e Rita é cortada por um episódio entre Leocádia e Henrique. Episódios deste tipo abundam na obra e mostram a inexistência de valores ou existência de valores relativos. São atos relacionados com o assédio sexual, que mostram o sórdido, o patético e são várias as personagens que apresentam comportamentos deste tipo. Mostram um lado humano voltado para a animalidade. Estes episódios são importantes para se traçarem retratos individuais, que dão uma imagem do todo. Esta literatura de massas é importante em Aluísio de Azevedo: são poucas as personagens que têm os seus momentos individuais (exs.: Romão, Miranda); as outras aparecem inseridas num conjunto, apesar de se fazer um retrato individual. Isto está patente nas reações que se seguem a este episódio, que passam por fases diferentes: silêncio, expectativa, participação.
    Este episódio é importante pela conceção do homem, relatividade de valores e pela participação das massas.
    O final do capítulo é importante para a caracterização de Rita como uma pessoa boa e dada aos outros: é ela que ajuda Leocádia.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Para sempre, Mãe!

19.03.1930 - 21.10.2024

Análise do capítulo VII de O Cortiço

     Continua o domingo, dia especial, em que os sentidos e o prazer se juntam. É também o dia em que todos se juntam e fazem reuniões bastante festivas. Isto remete para uma característica do romance, que é a junção de vários sentidos. Os convivas distribuem-se pelas várias casas, mas juntam-se todos na altura do canto e da dança.
    Mas, no capítulo, há outros aspetos importantes:
        = Contraste do cortiço com a casa de Miranda, que reage ao barulho. As reações às observações de Miranda são violentas e ainda fazem mais barulho.

        = Retrato de Firmo, através de uma descrição miudinha e nervosa, que vai ser importante, quando se põem em contraste Firmo e Jerónimo. Era delgado, capadócio, pernóstico, bigodinho crespo, petulante. Era oficial de torneio, oficial perito e vadio. Era o companheiro de Rita.

        = Caracterização de Libório: velho semítico e desgraçado. Dele fica a imagem de repugnância e nojo.

        = Referência a Albino, por contraste com Libório: é muito suscetível quando é alvo de brincadeira.

    Temos, assim, neste capítulo, o acumular de vários retratos individuais, que permitem construir uma imagem do grupo, caracterizado sobretudo por uma certa degradação. Tanto a imagem de Firmo, como de Libório e Albino deixam passar uma ideia negativa.
    Com o cair da noite, vem a festa: festa em casa de Miranda e festa no cortiço. Esta começa a ter uma influência marcante em Jerónimo, antes mais fiel ao fado. Começa a estabelecer-se um contraste entre o som brasileiro e o fado, que acaba por ser colocado de parte. É uma influência que, apesar de subtil, é profunda e opera-se através dos sentidos, responsáveis pelas modificações, mesmo em termos de atitudes. Rita vai ser o agente da modificação que Jerónimo começa a sentir. É como se ficasse preso num encanto, sem hipóteses de dele fugir. Isto mostra a influência da raça, do meio e do momento sobre a personalidade. Mais do que um romance de intriga, estamos na presença de um romance de mudança de caráter. A esta modificação de caráter associa-se a paixão.

Análise do capítulo VI de O Cortiço

     O início deste capítulo marca um flagrante contraste com o fim do capítulo anterior. É um domingo, dia de calma, em que as pessoas descansam e se dedicam aos seus afazeres pessoais. De tudo isto, resulta uma harmonia que não se verifica nos dias de trabalho.
    Mas a intriga tem que avançar e nestes capítulos temos dois acontecimentos muito importantes: chegada de Jerónimo e, agora, a chegada de Rita Baiana.
    Rita é recebidas e querida por todo o cortiço. Temos ainda a sua caracterização física: sensual, irrequieta, independente, daí ser contra o casamento, visto como cativeiro. Da mistura do facto de ser baiana e mulata, resulta a sua sensualidade. Ela representa o Brasil, os elementos tipicamente brasileiros. É muito popular, jovial e respeitada. A todos tem uma palavra a dizer, o que mostra que os conhece bem. É atrevida, mas boa; sempre que uma personagem é expulsa do cortiço ou tem problemas, é ela que se mexe para os tentar resolver.
    Rita procura informar-se de tudo o que se passa na sua ausência e daí perguntar a Leocádia quem eram os "jururus do 35", apresentando esta Jerónimo e Piedade como "boa gente" e "coitados".
    Temos já os elementos importantes para o avançar da intriga:
            - chegada de Jerónimo
            - chegada de Rita Baiana
            - referência a Pombinha
    Antes tivemos a descrição das origens do cortiço, graças à ação de João Romão. Agora o cortiço começa a ganhar vida própria através dos elementos humanos que nele habitam. Criam-se as condições para que a alegria sentida nestes capítulos se altere.
    Se o elemento humano em Aluísio Azevedo é positivo, como é que o meio o vai alterar? Esta é a tese que se pretende provar.

Análise do capítulo V de O Cortiço

    Caracterização de Jerónimo e sua mulher, Piedade de Jesus.
    Piedade tinha uma figura simpática, era dedicada, simples, natural e honesta. Pela sua entrada no cortiço e conversa das lavadeiras, podemos tirar algumas conclusões: tinham uma vida arranjada, viviam bem um com o outro e tinham uma personalidade própria e vincada. Tinham uma filha a estudar num colégio, o que mostra que tinham algumas posses económicas.
    A analepse serve para mostrar a vida passada de Jerónimo e Piedade, agora marcada pela saudade e melancolia portuguesas. A assimilação dos hábitos brasileiros (ex.: sensualidade) é mais tardia.
    O capítulo termina com uma imagem que fornece certos indícios de desgraça, que se irá verificar mais tarde.

Análise do capítulo IV de O Cortiço

     O capítulo anterior anunciou a chegada de uma personagem, que agora nos é apresentada: Jerónimo, que vem em busca de emprego na pedreira.
    Enquanto a descrição do cortiço se ligava à descrição das personagens que o habitam, a descrição física da pedreira é diferente. É um elemento árido e agressivo, onde se sobrepõe o calor e a dureza do trabalho. A agressividade mostra-se na interligação com as pessoas que aí trabalham. Mistura-se a aridez da pedreira com o fogo da bigorna e o resultado é um ambiente infernal.
    É neste âmbito que se introduz Jerónimo. Na conversa deste com João Romão, vai acusando os trabalhos mal feitos da pedreira, o que mostra a sua competência e honestidade (características implícitas que derivam do diálogo).

Análise do capítulo III de O Cortiço

     Neste capítulo, encontramos a caracterização do cortiço e de seus habitantes. Estes são caracterizados pelas suas atividades diárias: as mulheres dedicam-se, sobretudo, à lavagem. Resulta um retrato alegre e vivo, o que deriva da abundância dos sentidos que ficam no ar.
    As personagens são muitas e variadas: Leandra, a "Machona", que tinha três filhos: Ana das Dores, Nenen e Agostinho; Augusta, mulher de Alexandre; Leocádia, mulher de Bruno; Paula, chamada "bruxa"; Marciana e sua filha Florinda; D. Isabel e sua filha Pombinha; Albino, sujeito efeminado. Temos ainda a referência a uma personagem que está ausente, mas que vai ser muito importante: Rita Baiana, que vive com Firmo.

domingo, 20 de outubro de 2024

Benfica vence a 11.ª Supertaça de hóquei em patins feminino

 

Análise do 6.° parágrafo do conto "A Aia"

A aia

1. Caracterização

     A aia nascera no palácio, o que significa que sempre ali vivera e a sua vida fora dedicada a servir o rei, daí a sua lealdade absoluta, a sua submissão e servidão, que não são, todavia, exercidas por se tratar de uma mera obrigação, antes constituem uma paixão, uma espécie de religião, e a fazem feliz. O seu único propósito é servir o rei e o reino e os seus interesses. Daí não ser de estranhar que o seu choro pela morte do rei tenha sido o mais sentido. A sua fidelidade e dedicação são inabaláveis: “Tinha a paixão, a religião dos seus senhores”.

2. Crenças – Conceção de vida e de morte

    A aia é crente, pois acredita na vida depois da morte, o que a ajuda a superar / aceitar essa perda: “Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida na Terra se continua no Céu.” Além disso, para ela o Céu reproduz a estrutura social existente na Terra, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra: “O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando num outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam nesse reino celeste retomar em torno dele a sua vassalagem.” Deste modo, a morte do rei não representa um fim definitivo, mas apenas uma transição para outro reino, onde continuará a reinar, de modo semelhante ao que fazia em vida, o que reflete a sua crença na vida após a morte, onde as relações e hierarquias se manteriam intactas.
    Deste modo, quando chegar o dia da sua morte, espera reencontrar o rei, seu senhor, e continuar a desempenhar o seu papel de serva, retomando o seu trabalho de fiação e preparação de perfumes, repetindo as ações realizadas em vida. O Céu é uma continuação idealizada e eterna do que ela já conhece, numa espécie de servidão eterna: “… e feliz na sua servidão”.


Linguagem

    A linguagem do parágrafo pertence, em parte, ao domínio do religioso e do sagrado, para transmitir, desta forma, as suas crenças.
    A comparação “Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto…” enfatiza o facto de a aia ter chorado copiosa e sentidamente a morte do seu rei, mais do que qualquer outra pessoa.
    O eufemismo “O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas.” Suaviza a morte dos pajens, o que está de acordo com as crenças da aia num mundo para além da morte. Por outro lado, traduz a convicção da aia na vida no céu enquanto réplica da vida na Terra. De facto, para a serva, o céu reproduz a estrutura social terrena, mantendo o rei e os seus súbditos a hierarquia vivida na Terra. Esta crença envolvia os próprios animais e os objetos (cavalos e armas).
    Face ao exposto, é evidente a antítese entre vida e morte, que, neste caso, não são abordadas como opostos, mas como continuidade, o que anula o contraste. A morte do rei constitui uma tragédia pessoal e coletiva e é chorada como tal, porém, para a aia, não constitui um fim definitivo, antes uma transição para outra forma de existência que, na prática, consiste na continuação da ordem social e do papel da aia existentes na Terra.
    Relativamente à adjetivação, a presença de adjetivos como “grande [rio]” e “[reino] celeste” realçam a grandiosidade e o sentido trágico da morte, ao mesmo tempo que evidenciam a dimensão quase mitológica do evento.

 
Elementos simbólicos

    O uso de símbolos é constante ao longo do conto, como sucede também neste parágrafo, no qual se destacam os seguintes, alguns revisitados:

a) o “grande rio” onde o rei encontrou a morte simboliza a passagem da vida para a morte;

b) o raio de lua descreve a ascensão da aia ao céu mágico;

c) o cavalo de batalha, as armas e os pajens simbolizam o poder do rei e a hierarquia social existente no reino, que se conservarão no Além.

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Análise do 5.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens

    Este parágrafo apresenta uma nova personagem: o escravozinho, o filho da escrava que amamenta o príncipe.
    Socialmente, enquanto filho de uma escrava, a sua condição é igualmente a de escravo. Além disso, embora tenha nascido na mesma noite que o príncipe e seja rodeado dos mesmos cuidados e tratado com o mesmo carinho, a sua condição de vida é claramente mais humilde. O seu berço é “pobre e de verga”, o que simboliza a sua condição inferior e subalterna na sociedade. No entanto, cola-se-lhe à pele uma certa dignidade e inocência, a ele que é alvo do mesmo amor, cuidados e atenção que o príncipe, incluindo por parte da rainha. Fisicamente, é um bebé de berço, tem o cabelo negro e crespo e olhos brilhantes (“Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas” – comparação).
    À semelhança do que sucede com as restantes, também o filho da aia é uma personagem anónima, sendo identificado pela sua condição social, daí ser designado pelo narrador como o «escravozinho». Esta designação não deixa dúvidas de que é um escravo, portanto socialmente inferior.
    A aia, a mãe do escravozinho, é uma escrava que dá título, nome e sentido à história, cuja função é exercer um papel maternal, isto é, criar ambas as crianças. Fisicamente, é bela e robusta, qualidades que sugerem vigor físico. Psicologicamente, é uma serva leal, traço que se revelará fundamental para o desenrolar dos acontecimentos. A sua lealdade e dedicação são tais que cuida do futuro rei com o mesmo desvelo e carinho que dedica ao próprio filho: “A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho – o outro seria o seu rei.” Ou seja, se a um a liga o sangue, ao outro é a lealdade a quem lhe é superior.
    Por sua vez, o principezinho, sempre tratado de forma carinhosa, por meio de diminutivos, fisicamente, tem o cabelo louro e fino e os olhos brilhantes. Social e psicologicamente, dada a sua nobreza de sangue, é de condição social superior, portanto privilegiada, e rico, como o demonstra o facto de dormir num berço “magnífico e de marfim entre brocados”. Ele representa o futuro da monarquia e do reino, daí ser, de certa forma, o centro das atenções e das preocupações das demais personagens. Nesta fase inicial da sua existência, é tratado de modo igual ao do escravozinho, sem privilégios de monta, à exceção do berço em que dorme. Assim, ambos partilham da mesma atenção, cuidado e carinho, sugerindo que, na infância, não existem as barreiras e diferenças que, no futuro, os separarão.
    A caracterização do príncipe e do escravozinho revelam um conjunto de semelhanças e diferenças entre as duas personagens:

a)      Semelhanças:
i)      viviam no mesmo castelo
ii)    tinham nascido na mesma noite de verão (símbolo de um destino partilhado?)
iii)  alimentavam-se do mesmo seio = a aia amamentava ambos (estão ligados simbolicamente desde os primeiros momentos de vida)
iv)  eram ambos beijados pela rainha
v)    eram tratados pela aia com o mesmo carinho, como se fossem os dois seus filhos
vi)  os olhos de ambos eram brilhantes (igualdade na beleza e no brilho)

b)      Diferenças:
 
 

Principezinho

Escravozinho

Aparência física
simboliza o contraste étnico e social entre ambos

. cabelo louro e fino

. cabelo negro e crespo

Condições materiais

. berço magnífico e de marfim

. berço pobre e de verga

Condição social
. classe social: nobreza / realeza – príncipe herdeiro do trono
. rico e privilegiado
. filho da rainha

. classe social: escravo

. pobre e humilde
. filho da escrava

Situação

. frágil e vulnerável

. nada tinha a recear


Linguagem e recursos expressivos

    A adjetivação assume também grande relevância neste parágrafo, preferindo o narrador o uso da dupla adjetivação na elaboração do retrato das personagens. Assim, a aia é caracterizada como «bela e robusta», enfatizando a sua beleza física e a sua robustez física. Os dois traços têm o condão de a humanizar, sugerindo que, apesar de ser de condição social inferior, é um ser humano que se destaca pela aparência física atraente (o primeiro) e enfatizar o seu lado maternal e capacidade de nutrição. A dupla adjetivação é o recurso usado para dar conta das características físicas dos dois meninos: o cabelo louro e fino do príncipe sugere uma imagem de delicadeza, pobreza e fragilidade da personagem (na tradição cultural ocidental, o cabelo louro é assiduamente associado à nobreza e pureza, o que sugere a sua condição social destacada); o cabelo negro e crespo do escravozinho contrastam com o do vizinho de berço e são associados a pessoas de origem africana, enfatizando, portanto, a identidade / origem étnica e social da personagem – filho de uma escrava. A adjetivação expressiva é utilizada ainda para descrever os berços. Assim, o do príncipe é magnífico, adjetivo que sugere riqueza, enquanto os nomes «marfim» e «brocados» enfatizam as ideias de sofisticação e privilégio. Por seu turno, o do pequeno escravo é «pobre» e feito de «verga», nome que expressa a simplicidade do objeto, denunciando a sua condição social inferior. Em suma, estes adjetivos vincam os contrastes sociais e materiais entre as duas crianças, bem como os traços físicos e psicológicos que distinguem as personagens.
    O retrato dos dois infantes assenta também na figura da antítese, que evidencia as características contrastantes que os diferenciam, como é o caso da cor da pele e do cabelo, a qualidade e o material dos berços.
    A comparação dos olhos de ambas as crianças a pedras preciosas realça o seu brilho e beleza.
    Outro recurso impactante e reiterado ao longo do conto é o diminutivo, aplicado às duas crianças. «Escravozinho» enfatiza a tenra idade da personagem, bem como as ideias de inocência e fragilidade, traços partilhados por ambos os infantes. Por outro lado, evidencia o facto de a condição social ser uma espécie de ferrete que a sociedade impõe desde a nascença ao filho da aia e que o acompanhará ao longo da vida. Em terceiro lugar, o termo carrega, por si, uma conotação de submissão e inferioridade, o que é enfatizado pela redução ao diminutivo, que veicula, nesta aceção, as ideias de pequenez e submissão. No fundo, reflete a mentalidade da época medieval, durante a qual as pessoas escravas eram tratadas como inferiores e menos importantes do que as restantes.


Elementos simbólicos

    O berço de marfim simboliza a riqueza e o privilégio de quem nele dorme, o príncipe, enquanto o de verga traduz a humildade e a condição social inferior do pequeno escravo.
    O facto de os dois bebés serem amamentados pelo mesmo seio pode simbolizar a igualdade na primeira infância, antes que as normas sociais se impusessem e pusessem em marcha o estatuto de cada um.
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