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domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ansur Moniz, mui’houve gram pesar", de Afonso X

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB, satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros, de baixa condição social.
    No verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais – reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado, o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais humilde.
    Na segunda estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros. Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é, Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão, ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência. Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos, <apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros. O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica discursiva da cantiga.
    Outro ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”, provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
    Ao longo da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição, indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento, tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente, tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida deixa de ter amigos.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os níveis, incluindo o sexual).
    De facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida – para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade, o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte, dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
    Partindo do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir / quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
    Por isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou / e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual, pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte da abadessa.
    Na quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que, quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes vós mais fazer / ao comendador entom”.
    Na finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem / de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”, em geral religiosa).
    Ao contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa. Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui para a formação do tom de malícia.
    Nota, por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim” (v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim” (v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
    Esta cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
    A já referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar” referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou de outra mulher que lá morasse também.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC, e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito usadas.
    A cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
    Quem dá início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
    O corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
    Os dois versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os “panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
    O trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza, passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade do que é dito.
    A sátira acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora, esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a própria dignidade.
    Mais uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
    A composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero, um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes – era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim, o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana. Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade. É uma leitura possível, mas pouco provável.
    A primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”). A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito” e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
    A gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
    A segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”), pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
    Este, porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam (hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
    A quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora, esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo atribui a si próprio.
    Em suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido reconhecido por um bispo.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achei Sanch’Eanes encavalgada", de Afonso X

    A presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
    A cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra, um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo, gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
    A comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, / e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”, “en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
    Atente-se no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha” é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar, acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
    Além da hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo, estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010). O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha (“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia (“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada legalmente em várias legislações medievais.
    Por outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social, designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
    A mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda, metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha. Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse, o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
    As duas palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
    Um outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco, incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v. 14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz: «Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário, pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”. Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada (“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina, vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
    Em suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente com uma mulher.
    Outras interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava, bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Análise do 10.° parágrafo do conto "A Aia"

    1. Vários homens / inimigos chegam à porta da câmara onde os bebés dormem, destacando-se um dentre todos. Trata-se de um indivíduo «enorme» (adjetivo que dá conta da sua grande envergadura), de «face flamejante» (adjetivo que destaca o tom do rosto do homem, agitado pela luta travada até chegar ali, ou sugere uma aparência demoníaca), envergando “um manto negro sobre a malha de cota”. O adjetivo «negro», que qualifica o manto, associa mais uma vez a personagem ao Mal, enquanto a cota de malha simboliza a proteção e a prontidão para a batalha. O contraste / antítese entre o negro e a face flamejante intensifica a ideia de que a figura em questão transporta consigo uma ameaça. Simbolicamente, o homem, com o seu manto negro, representa o mal, a destruição e a morte.


    2. A ação do homem, provavelmente o próprio tio bastardo, é marcada pela rapidez e pela violência. Desde logo, a sua chegada é qualificada, através do advérbio «bruscamente», como brusca e repentina. O facto de se fazer referência a outros homens que o acompanham indicia que não está e não age sozinho.


    3. Ao entrar, olhou em direção aos berços, o que revela o seu objetivo: o principezinho. A sequência de ações que se seguem e o modo direto e cru como são descritos evidenciam a urgência e a agressividade da personagem. Assim, ela correu para o berço de marfim, “arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro” (esta comparação acentua, por um lado, a violência e a brusquidão do rapto do bebé e, por outro, a sua motivação; além disso, ao comparar a criança a uma bolsa de ouro, o narrador sugere que aquela é vista como um objeto de grande valor, não como um ser humano).
    Por último, o homem abafa os gritos da criança, gesto que reforça a brutalidade do rapto e a tentativa de a silenciar, de modo que ninguém se aperceba e o persiga, e abala furiosamente. O manto negro que é usado para abafar o bebé pode ser analisado como uma metáfora da supressão da sua vida.
    Atente-se na expressividade das formas verbais, todas de ação (“olhou”, “correu”, “arrancou” e “abalou”), as quais revelam a violência e a rapidez com que o rapto é consumado.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Críticas à obra de Verney

Crítica à obra de Verney:
        . algumas ideias são desastrosas e exageradas (ex.: a literatura não se pode ver como
           passível de crítica científica);
        . em rigor, nem sempre terá havido da sua parte uma atenta reflexão pedagógica, mas
           sim uma preocupação de divulgar as ideias vigentes;
        . as suas ideias não são sempre originais, limitavam-se a transmitir as ideias que vigo-
           ravam na Europa e/ou em outros casos adapta essas ideias ao ensino em Portugal.
    Não se pode falar em orifinalidade total. É uma síntese de ideias que permitiu a chegada do Iluminismo até nós. Ele entendia que a cultura em Portugal estava voltada de costas para a evolução científica da Europa e, por isso, havia falta de progresso e a sociedade e mentalidade portuguesas eram atrasadas.
    Ele propunha o que de mais avançado se produzia na Europa, sobretudo no campo dos métodos de investigação. Era uma autêntica reforma no campo do ensino. Por exemplo, nos estudos linguísticos, propunha que o Português devia ser o centro dos estudos linguísticos e não o Latim.
    Em vez da retórica, do ornato, sem finalidade persuasiva, entendia que se devia optar pela apresentação de um discurso elaborado segundo a perspetiva da razão. Muitas destas ideias chegaram a Portugal por via dos estrangeirados, entre os quais se destaca a figura de Luís António Verney. As suas ideias foram bem aceites, quer no reinado de D. João V, quer no reinado de D. José. É nesta altura que D. João dá grande importância à cultura, nomeadamente aos livros publicados nos outros países e foi ainda criada a Real Academia Portuguesa da História, que contribuiu para a renovação dos métodos de investigação histórica. Por isto se vê a importância que este rei dedicou à cultura. Segue-se D. José, que escolheu novo governo e teve como seu colaborador direto o Marquês de Pombal, que não foi muito bem aceite pela nobreza tradicional. Em 1759, é promovido a Conde Oeiras e, em 1770, a Marquês de Pombal.
    A grande renovação cultural dá-se neste reinado por ação do Marquês de Pombal,que vai assumir o papel do déspota iluminado. As transformações introduzidas assemelham-se aos efeitos que o terramoto produziu em 1755.
    Foi de tal maneira significativa a ação do Marquês de Pombal que é difícil não haver controvérsias em relação às suas decisões. D. José socorreuse deste homem para modificar o clima cultural do país, nomeadamente a reforma do ensino. Devido ainda à ação do Marquês, terminaram os autos de fé e acabou a perseguição aos cristãos-novos. Mas a sua principal ação foi a expulsão dos jesuítas. Isto é importante sobretudo porque o ensino lhes estava entregue.Confisca os bens da Companhia e tenta influenciar o papa Clemente XIV para que extinga a Companhia. Para isso contribui a sua acusação anti-jesuíta, chamada Dedução Cronológica, na qual pretende justificar que todo o mal que aconteceu ao país foi culpa dos jesuítas e que a única forma de trazer a felicidade ao povo era a sua expuslão. A Companhia foi extinta em 1773 e só foi restaurada em 1814. O Marquês teve assim tempo para fazer as reformas.
    O final do século XVIII foi um período de estabilidade política; até a Igreja começou a ser obediente, temendo represálias. O Marquês chegou  pensar numa remodelação danobreza tradicional

O século XVII em Portugal

Em Portugal:
                    Enquanto estas teorias faziam furor na Europa culta, que vivia uma época áurea no campo das artes, em Portugal, no século XVII, fazia-se uma travessia no deserto no campo das artes por razões políticas.
    Vivia-se uma decadência com duas grandes causas:
        a) por um lado, a repressão da Inquisição,que causa uma estagnação cultural;
        b) por outro lado, vivíamos numa crise política e económica, que veio a culminar com a
            perda da independência.

    Isto explica o desinteresse pelas letras nacionais.
    À estagnação aliava-se a Inquisição e a censura política do governo espanhol, que procurava eliminar tudo o que exaltasse o caráter patriótico. O passado era uma compensação para o presente.
    Os que tinham mais imaginação refugiavam-se no passado, porque não ia tanto contra o domínio espanhol. Procuravam na história temas para a sua escrita. Temos, por exemplo,uma obra de Frei António de Brito e Frei António Brandão, que é uma verdadeira história de Portugal. Este patriotismo é exaltado pelo domínio espanhol como forma de não recusar os valores tradicionais. No domínio filipino, a língua mais falada era o espanhol, se bem que era aceite o bilinguismo. O Português passou a ser visto como uma espécie de tesouro a preservar. Os estudos linguísticos entravam na moda.
    É desta época a famosa Corte na Aldeia (Rodrigues Lobo), datada de 1611. É constituída por dezasseis diálogos em prosa, em que se realça o cultivo do saudosismo da época em que Portugal era independente e assim se procurava escrever o Português com esmero. O autor pretende dar como exemplo uma linguagem castiça, autêntica e atual.
    Os autores estavam sarciados em fronteiras por motivos políticos. Isto ainda com a independência em 1680.
    Nos reinados seguintes, a cultura começa a assumir uma importância crescente, nomeadamente no reinado de D. José com o Marquês de Pombal,que renovou inclusive as universidades.
    Estes factos têm importância, enquanto Portugal começaa fugir à estagnaçãoi em que viveu no passado século XVII,que foi um século de atraso cultural para Portugal. No reinadode D. José, em parte devido às transações comerciais, desenvolveu-se o aspeto cultural.

Estrangeirados:
                        Na Europa, vamos encontrar emigrados portugueses não só exilados,mas também intelectuais que aí procuram um novo processo de aculturação.
    Tempos, pois, portugueses que se fixam em certos países europeus devido a missões diplomáticas ou fugidos à censura inquisitorial.
    São os estrangeirados. No primeiro grupo, temos Francisco Oliveira, Marquês de Pombal, D. Luís da Cunha, etc. No segundo grupo, temos Ribeiro Sancho e Luís António Verney.
    O pensamento dos esrangeirados, iluminados por princípios iluministas aliados ao empirismo ou utilitarismo, veio provocar alterações em Portugal.
    A crise mental portuguesa do século XVII mais não era do que a consequência da falta de cultura e esta era devida ao tipo de ensino feito em Portugal, entregue nas mãos dos jesuítas.

A importância de Luís António Verney:
                                                                O pensamento dos estrangeirados vem na linha do Iluminismo / Utilitarismo.
    Nesta crise cultural de Portugal, temos que ter em conta o tipo de ensino entregue aos jesuítas com uma orientação tradicional de verdades reveladas. Era um ensino especulativo, dognático e teológico.
    Para os estrangeirados, era necessário substituir os mestres, pois os princípios científicos não se adaptavam aos dogmas antigos. Era necessário dar lugar àobservação dos factos e à sua comprovação pela experiência. Estamos perante os ventos vindos da Europa, com Newton, Rousseau, Voltaire, etc.
    Os estrangeirados eram portugueses que viviam no estrangeiro e que modificara, a estrutura mental do país, uma vez que iam recolhendo as novas correntes do pensamento europeu da altura.
    Estrangeirados é uma designação dada pelos que cá viviam e que se chocavam com as ideias que eles traziam. Os estrangeirados intervinham efetivamente na vida cultural portuguesa, escrevendo textos que causaram polémica.
    Um dos estrangeirados mais importantes foi Luís António Verney (1713-1792). Teve uma educação primorosa, entregue aos jesuítas e vai voltar-se contra o ensino que praticavam, precisamente porque o conhecia por dentro. Elenão condena apenas os jesuítas, mas todo o ensino que tinha como base dogmas.
    A sua obra O Verdadeiro Método de Estudar foi publicada em 1746 e é a compilação de dezasseis cartas que ele envia de Roma para Portugal. Na segunda publicação da obra, ele escreveu sob o pseudónimo de Barbadinho. Esta obra é um marco histórico no Portugal de então. Deu lugar a uma grande polémica e, segundo uns, marca o reinado da escolástica em Portugal. Continha as bases de uma reforma profunda em todos os campos do saber,abandonan-se à autoridade dos filósofos antigos.
    A crítica e estudo de Verney estenderam-se a vários domínios:
i) ensino universitário;
ii) ensino da teologia (critica as subtilezas inúteis com que se entretinha a teologia, devendo preocupar-se mais com os textos bíblicos);
iii) ensino do Direito, que se limitava a especulações metafísicas;
iv) ensino da Medicina, que se convertera em erudição e comentários de autores antigos;
v) ausência do ensino da língua materna, porque só se estudava a gramática latina;
vi) outros domínios.
    Por detrás desta obra está subjacente a teoria dos mestres do Iluminismo.
    Para Verney, "filosofar é igual a raciocinar cientificamente". Ele diz que o exemplo dos juízos sobre princípios evidentes é a Matemática. É um projeto de reforma do ensino em Portugal, por detrás da qual está o princípio do materialismo mecanicista.
    Até na literatura Verney pretende defender os princípios científicos. A condição fundamental da poesia é a verdade, pois o que se sabe ser falso não interessa ao leitor. Chega mesmo a afirmar que alguns passos da lírica camoniana carecem de sentido lógico, porque o poeta usa a mitologia, logo não se fundamenta na verdade e não tem sentido lógico.
    A obra de Verney traduz princípios racionalistas que vão talvez longe demais, porque tudo o que se escrevesse deveria estar de acordo com a experiência e contemplar apenas os fenómenos da natureza; devia ter um fim pragmático e para ele ela é apenas um ornamento.
    Esta obra é constituída por 16 cartas dirigidas a um professor de Coimbra e cada uma ocupando-se de uma disciplina do plano de estudos vigente. Critica, fundamentalmente, o estudo que se fazia e propunha reformas. A maior reforma traduzia um novo espírito de orientação global mais do que propriamente uma planificação.
    O conteúdo das suas cartas era o seguinte:
        => carta I: língua portuguesa;
        => cartas II-IV: gramática latina e latinidade: Grego, Hebraico, línguas modernas;
        => cartas V-VII: retórica e poesia;
        => cartas VIII-XV: lógica, metafísica, medicina, direito civil, direito canónico, teologia,
              física e ética;
        => carta XVI: regulamentação geral dos estudos.
    No sentido genuíno da palavra, esta obra não pode ser considerada literária, mas incluir-se dentro da bibliografia pedagógica de cariz didático. Em cada carta há uma crítica aos estudos vigentes e depois apresenta propostas de reformas.

sábado, 30 de novembro de 2024

Análise do 9.° parágrafo do conto "A Aia"

    No que diz respeito à categoria tempo, este parágrafo confirma o seguinte: a maioria dos acontecimentos do conto tem lugar à noite. Neste caso, o evento é a invasão do palácio pelo tio bastardo e da sua horda, na tentativa de matar o principezinho e subir ao trono.
    O facto de se tratar de uma noite escura e de silêncio ajuda criar um ambiente de suspense e de mistério, bem como de ameaça iminente. Com a escuridão, os sentidos das personagens estão mais alerta, daí que estejam mais atentos a pequenos ruídos ou movimentos. Por outro lado, a noite é uma fase do dia em que as pessoas se encontram mais vulneráveis, pois encontram-se maioritariamente a dormir. Em terceiro lugar, a ausência de luz facilita a aproximação dos inimigos ao palácio, todavia o silêncio é um obstáculo ao ataque, dado que qualquer ruído será mais facilmente escutado pelos vigias.


    Quando às personagens, é o que sucede com a aia, que, quando se prepara apara adormecer, com os sentidos ainda assim despertos, “adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe…”. Ou seja, a protagonista pressente o que está a acontecer, no seu permanente estado de alerta para proteger o príncipe.
    Determinada, a ama procura confirmar o seu pressentimento e, após tê-lo feito, perante a ameaça iminente (“Num relance tudo compreendeu – o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe!”), não hesita e troca os bebés de berço para proteger o príncipe. A sua ação é rápida e firme, sem espaço para hesitação: “Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga – e tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real…”.
    Deste modo, a aia sacrifica o seu próprio filho por um bem maior: a defesa do príncipe e, consequentemente, do reino. Por outro lado, com este gesto, a protagonista confirma o seu forte senso de dever e lealdade… mas a que custo!
    Além disso, a troca de bebés mostra que a aia é uma mulher decidida e astuta. De facto, ela não pensa sequer em confrontar os invasores, optando por fazer uso de uma estratégia engenhosa para os enganar e, assim, salvar o príncipe, deitando-o no berço simples e pobre. Os assaltantes concluem, como se verá no parágrafo seguinte, que o príncipe dorme no berço rico, de acordo com a sua condição nobre. O plano da aia é simples, mas eficaz.
    Apesar da astúcia, frieza e racionalidade demonstradas na troca de bebés, o seu amor de mão está sempre presente, como se constata pela intensa emoção que evidencia (“entre beijos desesperados”) quando concretiza a sua ação.
    Por que razão uma mãe como a aia sacrificaria o seu próprio filho tão amado?

1.º) Por lealdade ao rei e à rainha.

2.º) Por um bem maior: o de todo o reino.

3.º) Por acreditar na vida além da morte.

4.º) Por acreditar que a vida depois da morte é uma continuação da vida terrena.


    Relativamente à linguagem, a deste parágrafo espelha alguma formalidade, mático e elevado. É o que sucede, por exemplo, através do recurso a expressões como “arrebatou o príncipe” ou “atirando os cabelos para trás”, que conferem à narrativa uma certa grandiosidade.
    Outro recurso importante são os verbos de ação. Formas verbais como «descerrou», «arrebatou», «atirou» ou «cobriu» criam uma sensação de movimento, de dinamismo e urgência. Por exemplo, o verbo «arrebatar» evidencia a rapidez e a determinação com que a aia troca os bebés de berço. Por outro lado, a presença de outras formas verbais, no pretérito perfeito («adivinhou», «escutou») remete para ações já concluídas.
    Em terceiro lugar, destacam-se as sensações, nomeadamente as visuais e auditivas. A alusão ao som de “passos pesados e rudes” (hipálage e adjetivação) e de um corpo “tombando molemente” (advérbio de modo) criam a noção de imagens auditivas intensas, vívidas, o que sucede igualmente com as sensações visuais, como “um clarão de lembranças, brilhos de armas…”.
    Outro recurso relevante é a antítese. Esta é visível, por exemplo, entre o silêncio inicial e o súbito som de luta, ou entre a nobreza e o requinte que rodeiam o príncipe e a humildade e simplicidade do escravozinho. A troca de berços para salvar o príncipe reflete esses contrastes, pois o que permite, à partida, aos invasores, saber qual dos dois bebés é o príncipe é exatamente o berço: o mais rico é aquele onde dorme a vítima que buscam.
    Como é característico do conto, o narrador socorre-se da economia de diálogos, ou seja, não existe diálogo, havendo apenas a registar uma única fala em discurso direto, da autoria da aia. O efeito da ausência de diálogos prende-se, por um lado, com a construção de uma ação rápida e, por outro, com o aumento da tensão narrativa.
    A adjetivação é bastante expressiva, como sucede ao longo do conto. Assim, o adjetivo «curto», em “curto rumor de ferro e de briga”, sugere que o ruído que a aia ouviu ou pressentiu é breve, mas é o suficiente para a deixar em alerta. Por seu turno, a dupla adjetivação “pesados e rudes” a qualificar os passos sugere a aproximação de alguém ameaçador e rude. De facto, além da adjetivação, podemos vislumbrar na expressão a presença da hipálage, que consiste na atribuição de uma característica que pertence a uma pessoa a algo relacionada com ela. Assim, a lentidão e a rudeza, que, na realidade, pertencem à pessoa que caminha, são transferidas para os seus passos. Por outras palavras, o indivíduo que a aia ouve a caminhar é pesado e rude. Quanto ao adjetivo «desesperados», qualifica os beijos que a aia dá ao filho quando o retira do seu berço e o coloca no do príncipe, enfatizando o desespero e a dor infinita que sente ao fazê-lo e, assim, condená-lo à morte. No fundo, a protagonista vive um drama pessoal intensíssimo, dividida entre o seu instinto de mãe e o dever de proteger a vida do príncipe.
    A obra de Eça de Queirós inovou bastante no uso do advérbio. Neste excerto, a locução adverbial “à pressa” dá conta da rapidez com que a aia se veste por causa da urgência da situação: ela tem de se certificar rapidamente da causa e origem do barulho que ouviu. Da celeridade da sua atuação, depende a vida do príncipe. Por sua vez, o advérbio «violentamente» enfatiza a ânsia e a tensão que se apoderam da protagonista e a necessidade de agir rapidamente. Além disso, dão nota da necessidade de correr a cortina para evitar que alguém, a partir do exterior, consiga ver o que ela vai fazer: trocar os bebés de berço. Na frase imediatamente anterior, deparamos com «molemente», advérbio que traduz o modo como o corpo cai, já sem vida ou resistência. Já «rapidamente» expressa a celeridade com que a aia agiu, sem hesitação.
    Por último, a comparação “um corpo tombando molemente sobre lajes, como um fardo” caracteriza o modo como o corpo de um interveniente na luta caiu no chão, isto é, de forma simultaneamente mole e pesada.

Breve bosquejo das ideias que moldaram o século XVII

Docente: Dr. Henrique Almeida
Ano: 1989/1990

     A obra literária é o retrato do mundo circundante e, por isso, temos que nos debruçar sobre os condicionalismos económicos e sociais em que uma obra surge. O texto não surge afastado da época emque é produzido. Terá que se fazer uma inserção do texto na sua época. Os nossos pontos de referência cultural provêm da Europa, nomeadamente de França, Inglaterra e Alemanha. Daí procurarmos efetuar um levantamento cultural e social dos aspetos provenientes da Europa.
    O texto permite uma apreciação em dois pólos de estudo: reete para conceções da vida e sociedade de uma época; mas é passível de uma análise do texto inserido no policódigo literário.

    O século XVII aparentemente tinha sido um século inculto, porque não houve grades manifestações com caráter perdurável. Mas em vez de inculto, é mais correto o termo estéril, na medida em que a sua cultura surgiu desgarrada dos problemas reais da vida. Não é um século de grandes inovações.
    Não obstante, escreveu-se, pensou-se e construiu-se muito. No entanto, devido ao afastamento da vida real,  cultura desta época parece ter-se encaminhado para subterfúgios de estilo e racionalismo da história e da arte e de uma ligação marcada à época medieval, uma época de verdades feitas e aceites sem comprovções.Não havia a preocupação de inovação e enraizamento dos valores culturais.
    Mas o século XVII constitui um pólo importante. Para provar que não foi um século inculto, podemos falar em correntes ou combinações de ideias de Galileu, Spinoza, etc. Podemos, assim, falar no espírito racionalista de Descartes, no geometrismo indutivo de Spinoza, no empirismo dos filósofos ingleses como Lockee no experimentalismo de Bacon e no fisicismo de Newton. São correntes que marcam este século.
    O denominador comum a estas correntes é uma confiança total, sem restrições, na razão e no espírito crítico, de modo a combater as verdades tradicionais estabelecidas, as quais surgem aos olhos dos novos pensadores como fruto de superstições e crendices, como não tendo comprovação possível. Essas «verdades» eram recebidas como divinas. Nesta época, inicia-se um período de campanha crítica contra os valores do passado. Pope afirmou: "A natureza e suas leis estavam escondidas nas treveas: «faça-se Newton, disse Deus, e tudo brilhou»."
    Nesta altura, a Europa medieval tinha sofrido um abalo não só com o Renascimento, mas também com toda a sua renovação de ideias.
    Aos poucos criavam-se as bases para se alicerçarem as invações que estavam para chegar com o século XVIII. A linha do empirismo e do heliocentrismo do século XVIII foi sendo criada com os contributos do século XVII, apesar deneste não terem acontecido grandes inovações.
    É, em 1715, que surge o Iluminismo,ainda no tempo de Luís XIV, altura em que era evidente a transformação europeia, que foi designada por Paul Hazard como "a crise da consciência europeia", porque se dá uma rutura de mentalidades.
    A segunda vaga do Iluminismo corresponde ao movimento do Enciclopedismo. Já no século XVII tinha surgido uma obra de antecipação à obra Encyclopédie, escritaentre 1751 e 1755 por Diderot e d'Alembert e composta por 35 volumes. Esta enciclopédia foi vista como referente a um abalo sísmico em grau elevado em relação às verdades tradicionalmente aceites. Agora é verdadeiro aquilo que é verificável, raciona, captado pelos entisos e experimentável. Daqui se depreende que novas apetências começam a surgir no público, atinentes às ciências exatas e naturais. É uma época que traz consigo uma forte movimentação de apologia da razão e do progresso. Segundo este novo critério da razão, as pessoas acreditam no que é comprovável.
    Entramos nos alvores do Século das Luzes, que traz consigo um esforço de renovação cultural, que passa por uma corrente política: o despotismo iluminado,que tem em vista uma eficiência total e se vai subordinar à conceção do progresso humano. Usa-se a noção do Iluminismo que advém da luz, esclarecimento.
    O homem é visto não como uma criatura degradada pelo pecado original, submetido a leis divinas; ele domina a natureza pelas suas leis e conhecimentos exatos. Daí a importância do papel  da máquina,que seconexa a progresso técnico e científico com poderes ilimitados. Só o homem pode dominar o mundo, porque domina a razão. Devem ser abolidos os hábitros tradicionais e das desigualdades humanas. A razão passa a ser detentora do fiel da ciência. A ciência passa a ser divulgada segundo critérios tradicionais. Daí a designação de Século das Luzes. Entende-se que as superstições conduziam a injustiças humanas e estariam na base do sofrimento humano. Agora dominam os princípios da razão.
    Foi a confiança no poder da ciência que se chamou Iluminismo.

Análise do 8.° parágrafo do conto "A Aia"

    O parágrafo abre com a alusão ao ambiente geral que se vive no palácio real: “um grande temor enchia o palácio”. Na ausência do rei (morto) e do herdeiro, o príncipe (bebé de berço), quem governa agora é uma mulher (a rainha) entre mulheres. Este passo (“uma mulher entre mulheres”), por um lado, constitui um contraste entre a fraqueza associada ao género feminino e a força esperada em quem reina num contexto de crise. Quando um qualquer perigo espreita um reino, espera-se que haja uma liderança forte, o que não acontece neste caso, transparecendo uma sensação de fraqueza, representada pelo facto de quem lidera ser uma mulher.
    Por fim, o tio bastardo decide agir. O narrador prossegue a sua caracterização através da metáfora “homem de rapina”, que reafirma o seu caráter violento e cruel. Além disso, o recurso ao determinante artigo definido «o», em “O bastardo, o homem de rapina”, confere-lhe um sentido de generalização e singularidade, como se ele fosse o único e o pior de todos os do mesmo género.
    De seguida, o narrador referencia as suas ações e atitudes:

1.ª) Erra no cimo das serras, onde passa o seu tempo, uma posição estratégia que confirma a sua imagem de predador que está à espreita, ao longe, aguardando a melhor ocasião para atacar.

2.ª) Desce à planície com a sua horda, ou seja, abandona, por fim, as montanhas à frente de um grupo de facínoras (o termo «horda» evoca um grupo violento e desorganizado).

3.ª) Enquanto se encaminha para o palácio real, deixa um sulco de matança e ruínas (metáfora), isto é, destrói as aldeias e casais por onde passa, destruindo e matando o que encontra por onde passa. Esta ação confirma a caracterização traçada no texto até aqui: é um homem violento, bárbaro, cruel e impiedoso.

    De seguida, o narrador descreve os preparativos de defesa da cidade:

1.º) Reforço das portas da cidade: “As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes.

2.º) Monitorização das atalaias: “Nas atalaias ardiam lumes mais altos.”. Desta forma, aumenta-se a vigilância durante a noite.

    No entanto, a defesa da cidade enfrenta um grande problema: a falta de disciplina – “Mas à defesa faltava disciplina viril.” –, ou seja, não há uma força organizada, uma liderança enérgica e decidida, normalmente associada ao papel dos homens em tempo de guerra-

                Por que razões falta disciplina:

1.ª) “Uma roca mão governa como uma espada.” (comparação e metáfora): uma mulher (“roca”) é frágil comparativamente ao homem (“espada”) numa sociedade tradicional, ou seja, uma mulher não tem a capacidade guerreira de um homem – a rainha é incapaz de defender o reino após a morte do rei. A metáfora da «roca» (objeto usada para fiar) e da «espada» (arma de combate) sugere que, embora a rainha esteja disposta a liderar a defesa do palácio e a exercer o seu papel de rainha, não possui a força nem a experiência para o fazer, o que resulta numa liderança frágil e emocional (note-se que os termos usados apontam para os papéis tradicionais atribuídos a mulheres e homens: a roca remete para tarefas domésticas, enquanto a espada se associa à violência, à ação, à morte; a mulher é um ser mais recatado, circunscrito ao ambiente caseiro, aos filhos, ao cuidar da casa e criar uma família, enquanto o elemento masculino está mais predisposto à violência física).

2.ª) “Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha.” (eufemismo: o uso do verbo «perecer» destina-se a suavizar a ideia de morte): a elite guerreira da nobreza morrera na guerra juntamente com o rei, pelo que restavam apenas aqueles que não possuíam capacidade estratégia e militar, bem como força, para lutar.

3.ª) “E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva.”: a rainha está mais preocupada com a segurança do filho do que com o reino, daí que passe o tempo a correr do e para o quarto do filho, o que faz com que não haja uma liderança adequada e efetiva.

    Nesse ambiente de medo e desorganização, apenas a aia permanece «segura», enquanto protege o príncipe. A comparação dos seus braços às muralhas de uma cidade sugere a força e a determinação com que defende o herdeiro do trono. Por outro lado, estabelece um contraste entre a firmeza da escrava e a fraqueza da rainha, que apenas sabe chorar.

Análise do 7.° parágrafo do conto "A Aia"

Personagens


    Apesar na sua crença na vida para além da morte e da sua continuação noutro plano, enquanto mãe, não deixa de recear pelo destino do principezinho, o que mostra que está consciente dos perigos que agora corre, após a morte do pai: “[…] também ela tremia pelo seu principezinho!”. Atente-se na expressividade do determinante possessivo «seu», que reflete a devoção, o cuidado e o afeto maternal que a aia sente pelo príncipe, que trata como se fosse seu filho. Além disso, mostrou-se, ao longo do tempo, ansiosa e extremamente preocupada com o destino do herdeiro do trono, reconhecendo a sua fragilidade e o longo caminho que terá de percorrer até ao estado de adultez: “[…] pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada […]”. Muito tempo passaria ainda até que ele pudesse ocupar o seu legítimo lugar no reino e exercer o poder.

    Deste modo, a aia não esconde a sua preocupação com o destino do principezinho, sobretudo por causa da ameaça constante do tio bastardo, que deseja usurpar o trono e, para tal, terá de se desfazer do sobrinho. Este receio, esta preocupação revelam o seu forte sentido de dever, responsabilidade e lealdade.

    Apesar de todo o afeto que nutre pelo príncipe, a aia possui um amor superior pelo próprio filho. Ao contrário do herdeiro do trono, que está relacionado com o poder e rodeado de inimigos e de perigos, o pequeno escravo, por causa dessa sua condição, está livre dessas questões, daí que a mãe sinta que está mais protegido do que o príncipe: “Esse, na sua indigência, nada tinha a recear na vida.”

    Este parágrafo torna claro que, não obstante demonstrar uma ternura por ambas as crianças, o faz de formas diferentes. Assim, os beijos q     ue dá ao príncipe são “ligeiros”, enquanto os entregues ao escravozinho são “pesados e devoradores”, metáfora que significa que são mais intensos, viscerais, profundos e possessivos. Outra metáfora – “Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despidos das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço…” – apresenta-o como desprovido, desde o seu nascimento, de qualquer riqueza ou estatuto social, pois até a sua nudez é coberta apenas por um “pedaço de linho branco”. Contrariamente ao príncipe, que está destinado a assumir grandes possibilidades, a deter enorme poder e a viver rodeado de riqueza, o pequeno escravo nada tem a perder em termos materiais, porque nada possui.

    Ora, essa ausência de bens materiais e de estatuto social, proporcionam-lhe uma certa liberdade e proteção física e emocional: as preocupações e os problemas associados ao poder e à riqueza, que pesarão, no futuro, sobre o príncipe, não o atingirão: “[…] nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo.”

    Por outro lado, a afirmação segundo a qual “A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe” quer dizer que, embora o príncipe seja o herdeiro de um trono e, em termos materiais, a sua vida possa ser considerada mais importante, logicamente, para a aia, a vida do seu filho possui mais valor. Que a razão justifica esta postura? O escravozinho tem à sua frente uma existência com menos cuidados e preocupações que, na sua mente, “enegrecem a alma” dos que possuem e exercem o poder. Assim sendo, uma vida simples e humilde são superiores, na ótica da aia, a uma existência marcada pelo exercício do poder e das responsabilidades que caberão ao príncipe.

    Outra personagem visada neste excerto é o tio bastardo, que é descrito como uma pessoa «cruel», sombria e ameaçadora. Fisicamente, tem a pele escura (comparação hiperbólica “de face mais escura que a noite”) e, psicologicamente, possui uma maldade interior superior, mais profunda do que a sua expressão exterior (comparação hiperbólica “coração mais escuro que a face”), é extremamente ambicioso e deseja fortemente o trono (“faminto do trono”), que procura usurpar sem quaisquer escrúpulos. Além disso, retoma-se neste parágrafo a metáfora do lobo, de atalaia, à espera da presa (“… espreitando de cimas do seu rochedo entre os alfanges da sua horda!”), ou seja, sugere-se que está à espreita, a observar e a esperar o momento oportuno para atacar, tal como faz um animal predador. Assim sendo, confirma-se que o tio representa uma ameaça constante para o príncipe e o reino.


Elementos simbólicos

 
    A peça de linho branco que envolve o corpo do príncipe é simbólica. Por um lado, o branco está associado, tradicionalmente, à pureza e à simplicidade, parecendo enfatizar a ideia de que uma vida despojada de ambições e preocupações é extremamente valiosa. Por outro lado, poderemos estar perante uma crítica ao fardo que constitui uma existência caracterizada pela riqueza e pelo exercício do poder.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A molher d’ Alvar Rodriguiz tomou", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Estêvão da Guarda, é constituída por duas sétimas de rima interpolada e emparelhada (ABBABBA) e tem como figura visada a mulher de Álvaro Rodrigues por ter sido abandonada pelo marido e, por isso, se recusa a “chegar-se a ele”, que é o equivalente a dizer que a sátira visa efetivamente o segundo e não a esposa. Deste modo, pode concluir-se que o tema da composição é o lamento da mulher pela ausência do marido, o que nos recorda o queixume da donzela da cantiga de amigo relativamente ao seu amado exatamente pelo mesmo motivo.
    Efetivamente, a mulher de Álvaro Rodrigues queixou-se (“tomou tal queixume” – o advérbio de intensidade e grau intensifica o queixume, sugerindo que é especialmente forte, fora do comum) por o marido ter partido para longe (“sel foi daquém”) e a ter abandonado. Como consequência, desde que ele regressou, ela “nunca s’a el chegou”, isto é, nunca mais se aproximou dele, nunca mais teve qualquer gesto de afeto, nunca mais permitiu o contacto físico entre ambos, o que seria mais do que comum no seio de um casal, para mais tendo em conta que estiveram separados durante algum tempo. Esta recusa constitui, portanto, o castigo reservado pela mulher para o marido por este a ter abandonado. Independentemente das circunstâncias, nem a bem nem a mal, ela não se aproxima dele. É uma outra forma de abandono que a esposa pratica, em resposta ao abandono de que foi vítima, e pretende continuar: “nem quer chegar”.
    Convém esclarecer que não existem dados que permitam identificar este Álvaro Rodrigues. De acordo com a cronologia, poderia tratar-se de Álvaro Rodrigues Redondo, referido pelo Nobiliário do Conde D. Pedro enquanto criado de D. Álvaro Gonçalves Pereira, prior dos Hospitalários e do Crato. Esta figura era filha de uma dona do Crato e neto (ou mesmo filho), por via bastarda, do trovador Rodrigo Anes Redondo. Antes de assumir a chefia da Ordem, Álvaro Rodrigues Pereira esteve em Rodes, tendo participado na guerra contra os Turcos, juntamente com os homens de armas e cavaleiros que levara de Portugal, de acordo com os textos de Fernão Lopes. De acordo com estes dados, se se confirmasse que este Álvaro Rodrigues seria efetivamente a figura da cantiga, estariam enquadradas as alusões à sua partida para “Além-Mar” que surgem nalgumas cantigas a ele dirigidas. O Conde D. Pedro refere-se-lhe numa cantiga como sendo monteiro-mor.
    Os três versos iniciais da primeira estrofe esclarecem que a mulher só retomará o contacto, o relacionamento, se ele lhe assegurar (“jurando-lhe ante que, a bõa fé”) não voltará a deixá-la como deixou. Deste modo, é possível concluir que a esposa não sente confiança no marido, que só voltará a aproximar-se se estiver certa das intenções dele, o que parece indiciar, por um lado, que valoriza a estabilidade, a sinceridade e a honestidade e, por outro, que Álvaro Rodrigues não observou essas características até então, nomeadamente aquando da sua partida.
    A repetição do verbo «leixar» («deixar») é muito significativa, antecedida do advérbio de negação «não» e seguida do termo comparativo «como». Começando pelo advérbio, este enfatiza a ideia da recusa absoluta, passe o pleonasmo, e da firmeza da mulher ao declarar que não tolerará nova situação de abandono nos termos em que se processou a anterior. Por outro lado, a reiteração de formas do verbo «leixar» estabelece um contraste entre o passado (em que foi abandonada e, por isso, sofreu a dor da solidão) e o presente, apontando também para o futuro, em que recusa a repetição da situação e exige um compromisso ao marido de que tal não se repetirá. O comparativo «como» enfatiza o modo como Álvaro Rodrigues a deixou, provavelmente insensível, insincero, desrespeitoso, circunstância que não tolerará que se repita: ela não permitirá que ele a abandone novamente da mesma forma que o fez anteriormente.
    Esta cantiga parece evidenciar uma nova atitude por parte da mulher da época, visto que a personagem da composição evidencia uma firmeza e uma liberdade que eram pouco comuns na época, na qual o género feminino estava quase sempre sujeito à vontade dos maridos. Além disso, a sua atitude demonstra um caráter forte, determinado, colocando-a numa posição de poder relativamente ao marido, o que configura uma inversão de papéis. Por outro lado, o texto mostra que aprendeu com o passado e que não permitirá que a situação se repita, a de um abandono abrupto e insensível.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético designa Álvaro Rodrigues como «cativo», nome que, por um lado, sugere o facto de ele ser prisioneiro / estar subjugado à vontade e determinação da mulher (que recusa a sua aproximação e só a tolerará se o marido preencher uma condição) e, por outro, o qualifica como pessoa infeliz, desgraçada, não só pela recusa da mulher, mas também por não a conseguir demover da sua resolução (“nõn’a pode desta seita partir”), nem recorrendo a meios violentos: ameaças (“nem per meaças”) ou agressões físicas (“nem pela ferir”). Quer isto dizer que o visado pode recorrer à ameaça ou à intimidação, mas nada disso derrubará a sua determinação e força.
    O verso «nem per meaças nem pela ferir» reflete a sociedade da época medieval e os relacionamentos entre homens e mulheres. Assim, o comportamento de Álvaro Rodrigues, efetivo ou aludido, de ameaçar ou agredir fisicamente a esposa reflete o poder e a autoridade que o homem detinha sobre a mulher numa sociedade patriarcal. Curiosamente, a personagem feminina foge ao estereotipo epocal, não cedendo às ameaças do esposo, antes lhe resistindo firmemente. Trata-se de uma subversão da relação de poder característica daquele tempo, usada pelo trovadorismo para criticar os padrões sociais, que levavam os homens a crer que poderia ser possível conquistar o afeto feminino através de ameaças, da força física, da violência e da coerção.
    Ironicamente, a resistência e a obstinação da recusa da mulher poderão ser facilmente vencidas (“se a quer desta sanha tirar”): o marido tem de jurar “bõa fé” (isto é, tem de se comprometer) que nunca mais a abandonará (“a jurar / que a nom leixe em neum tempo já.”). Significa isto que a esposa exige sinceridade, lealdade e compromisso total da parte de Álvaro Rodrigues.
    Este aspeto aponta para uma reflexão sobre o valor da “bõa fé”, da lealdade, da sinceridade, do compromisso como bases para um relacionamento, para um matrimónio. Por outro lado, a exigência de que o homem jure lealdade à esposa constitui uma inversão do papel tradicional dos géneros: nesta cantiga, é ela quem estipula condições ao marido, invertendo o padrão social. A figura feminina exige um compromisso verdadeiro, recusando-se a ceder à intimidação ou à violência, o que evidencia a sua força e capacidade de resistência em defesa dos seus interesses e convicções.
    A cantiga, intencionalmente ou não, critica o abandono temporário ou definitivo das mulheres pelos maridos, uma temática que percorre grande parte do trovadorismo, e que é exposta, neste caso, através da resolução / queixa da mulher de Álvaro Rodrigues. A resposta da esposa é inusitada, já que enfatiza uma postura de resistência feminina numa sociedade patriarcal: ela impõe uma condição firme para retomar o relacionamento – ela só se voltará a “chegar ao marido” caso este prometa de que não voltará a ser abandonada, demandando lealdade e estabilidade, valores que o marido não terá demonstrado anteriormente. Neste contexto, Álvaro Rodrigues mostra-se totalmente impotente para vencer a determinação da consorte: “nem per meaças nem pela ferir, / ela por en neua rem non dá”. A única solução que lhe resta é jurar “a bõa fé” de que não a voltará a abandonar. Em suma, a cantiga critica não apenas o marido, mas a estrutura social que normalizava o abandono das mulheres, sós, desprotegidas e dependentes.

Análise da cantiga "A mim dam preç’, e nom é desguisado", de Afonso Anes do Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Afonso Anes do Cotom, chegou até nós incompleta: uma única estrofe (sétima) com rima interpolada e emparelhada. Nela, compara-se o aspeto físico de três maljeitosos: o próprio trovador, João Fernandes e Pero da Ponte, o qual levaria a palma aos outros dois.
    O sujeito poético começa por referir que tem a fama ou reputação – que não é despropositada, ou seja, é certeira – de ser maljeitoso. Para que não haja dúvidas, volta a confirmar que concorda com essa apreciação: “e nom erram i”.
    O verso três refere-se a um tal Joam Fernandes, figura de difícil identificação, desde logo por se desconhecer o seu apelido. Se considerarmos que a cantiga datará de cerca de 1241 e terá sido produzida em Castela, poder-se-ia tratar de Juan Fernández Valdés, senhor de Beleña, que faleceu na batalha de Martos, em Jaen, em 1275. Um outro candidato seria João Fernandes de Lima, marido da Ribeirinha, a famosa barregã de D. Sancho I, após a morte do monarca, e que antes tinha sido casado, em primeiras núpcias, com Berenguela Afonso de Baião, tia do trovador D. Afonso Lopes Baião. Desempenhou cargos importantes nos reinos de Leão e Portugal, tendo falecido por alturas de 1245.
    Joam Fernandes pertence também ao grupo dos maljeitosos. Ele é conhecido pela alcunha de “o mouro” por causa do seu aspeto físico, como é confirmado pela rubrica de uma cantiga de Martim Soares (“Joam Fernándiz, um mour’est aqui”).
    Outro dos homens que faz parte do grupo é o trovador Pero da Ponte, que supera os dois anteriormente citados. De facto, se alguém o visse em «cós», isto é, sem manto, em corpo bem feito, parecer-lhe-ia “moi peor talhado”, ou seja, o mais maljeitoso.
    Em suma, esta cantiga constitui uma sátira dirigida a três figuras específicas (o próprio Afonso do Cotom, João Fernandes e Pero da Ponte) e à sua aparência. Ironicamente, o sujeito poético inclui-se no grupo dos maljeitosos, o que pode configurar uma forma de autoironia, através da qual ri de si mesmo, enquanto satiriza os demais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A Dom Foam quer’eu gram mal"

    Esta cantiga, da autoria de João Garcia de Guilhade, é de escárnio e maldizer, de mestria e finda, em cobras uníssonas, com dobre (vv. 1 e 7 de cada estrofe: “mal” – est. 1; “já maenfestou” – est. 2; “falar” – est. 3). Nela, o trovador, em simultâneo, elogia uma dona e critica o seu marido, explicitando claramente o que seriam os bastidores do amor cortês.
    O poema abre com a alusão a “Dom Foam” (= D. Fulano), uma fórmula usual nas cantigas trovadorescas para omitir uma identidade concreta, a quem o «eu» poético deseja “gram mal”, ao contrário do que sucede com a sua esposa, por quem expressa a sua admiração e deseja “gram bem”. Esta antítese (“mal” / “bem”) estabelece a linha condutora da composição poética: o elogio da esposa e a crítica ao marido. Esses sentimentos já o acompanham há muito tempo (“gram sazom há que m’est’avém”) e não mudarão (“e nunca i já farei al”), ou seja, o trovador não fará outra coisa, nunca se desviará deste propósito, nunca mudará de atitude relativamente à figura masculina (sempre o criticará e desprezará) e à feminina (sempre a exaltará).
    A partir do verso 5, o trovador explicita o momento em que começou a experimentar esses sentimentos pelas duas personagens, isto é, desde que viu a mulher (“ca, des quand’eu sa molher vi”), deduzindo-se que tal sucede por ela ser muito bela. E é essa beleza que o seduz e causa o encanto, bem como a aversão pelo marido. A partir desse dia, serviu-a sempre que pôde, não obstante ser casada, e, em simultâneo, procurou o mal para Dom Foam, por a amar ou por o considerar indigno dela.
    Enfaticamente, o sujeito poético declara querer manifestar os seus sentimentos, algo que pesará muito a alguém – certamente Dom Foam –, porém isso mão o impede de o fazer. Ele está consciente que a sua postura poderá ter consequências sérias: mesmo que “morra” por o fazer, quer dizer mal do mau, ou seja, criticar o marido (o “mão”) e bem “da que mui bõa for”, isto é, elogiará a sua esposa, que caracteriza como “mui bõa”, expressão que reforça a exaltação das virtudes da mulher, como sucede na cantiga de amor. O verso seguinte, na esteira deste tipo de cantar, através de uma hipérbole, apresenta-a como uma mulher perfeita, única, a melhor: “qual nom há no mundo melhor” (ou seja, é a melhor de todas, quer física, quer sobretudo psicológica e moralmente). O verso final da cobla reforça a ideia do inicial, isto é, de manifestar publicamente o seu elogio da mulher e a crítica do esposo: “quero-[o] já maenfestar”.
    A terceira cobla explicita a razão da hipérbole do verso 13, descrevendo as qualidades da mulher: nenhuma outra a supera na aparência física (“De parecer”) e na forma de falar, de comunicar, de se expressar (isto é, sabe estar, conviver), e nas boas maneiras (“e de bõas manhas haver”). Esta figura feminina é o protótipo da mulher perfeita, sem igual, superior a todas as outras, como se conclui do uso de nova hipérbole: “ela, non’a pode vencer / dona no mund”. Tendo em conta que se trata de uma mulher casada e juntando isto à caracterização que, sumariamente, dela é feita, não restam dúvidas de que esta composição poética traça o retrato da mulher característico da cantiga de amor. Obedecendo às regras desse género poético, o trovador faz uso da mesura e da cortesia e não a identifica, nem ao marido, dado ser casada. A expressão “a meu cuidar” enfatiza a ideia que se trata da sua opinião.
    Os três versos finais desta estrofe apresentam outro traço típico da mulher do cantar de amor: ela é de origem divina (“ca ela fez Nostro Senhor”, o que justifica a sua perfeição física e moral e a coloca num plano superior ao do trovador, o que a torna inacessível, desde logo pelo seu caráter divino. Em contraste, o marido da “senhor” é uma criação do “Demo”, uma criação do Mal. Para que não restem dúvidas sobre a sua origem, o «eu» poético afirma que as suas palavras e ações são guiadas pelo Diabo. Esta nova antítese (Deus / Diabo) liga-se à anterior e explicita o motivo por que ela é digna de elogios e ele de crítica.
    A finda, constituída por três versos, clarifica que, por ambos serem da maneira descrita nos versos anteriores, caberá a Deus, que tudo pode e vale, julga-los tal como o trovador os encara. Porque “ataes” (marido e esposa) são assim (ele foi criado pelo Diabo e representa o Mal, logo é objeto de crítica; ela, por Deus e representa o Bem, daí ser digna de elogio) e como o trovador sente por eles o que enunciou, caberá a Deus o julgamento de ambos, dado ser quem tem valor e poder para tal. Assim, será a divindade a declarar o veredito final sobre as virtudes da esposa e as falhas do marido, ou seja, estamos na presença de um julgamento moral superior. E quem poderá contestar Deus?
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