Português

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Maria das Mercês


             Maria das Mercês preenche o papel da mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado pela povoação da Gafeira (metonímia).
            Segundo a doutrina de Salazar, a vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família, os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode comprovar através do seguinte quadro:
 

Deus

Pátria

Família

a Igreja

a retaguarda amável

7 anos de casamento

o colégio de freiras

o serviço da esposa

A infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento)

as dádivas aos pobres

o sorriso à chegada

a obediência ao marido

a ceia de Natal com os trabalhadores

 

o ensino do criado

 
            O marido ausenta-se e deixa-a sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães… fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
            Neste contexto, Maria das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente diminuído se tal lhe acontecesse.
            Chega um momento em que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes repercussões na evolução do papel social da mulher.
            Por último, a vida de Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte «post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.

Caracterização do Delfim


             O Delfim é Tomás Manuel da Palma Bravo, a personagem principal da obra, o Engenheiro, a figura em torno da qual gira a narrativa e que é o elemento que possibilita o retrato da situação que se vivia em Portugal na época.

            Ele é o herdeiro das tradições machistas, não só da família, mas também do homem português, característico da burguesia salazarista. De acordo com as normas da época, Tomás Palma Bravo deveria ser superior a tudo e a todos, deveria ser o protetor, o primeiro em qualquer ocasião, o chefe, o sábio, o forte, superior aos trabalhadores, fossem eles camponeses-operários, criados, criadas, mas sobretudo em relação às mulheres, incluindo a própria esposa, dado que era inaceitável que qualquer mulher fosse considerada igual ao homem. De facto, na época o género feminino era encarado como um português de segunda, cuja existência se deveria resumir a atender aos desejos e necessidades do homem. Assim, este jamais se poderia mostrar fraco. Mesmo que o fosse, teria de encobrir a sua fraqueza, mesmo que através dos seus mastins, como é exemplificado pelo excerto seguinte: “o engenheiro anunciado por dois cães…”.

            Ao longo da obra, tomamos conhecimento dos vários epítetos com que é tratado: o nome próprio completo, o Engenheiro, o Amo, o Infante, Tomás Manuel (como todos os seus antepassados), membro do casal Palma Bravo, Tomás Manuel Undécimo. Seja qual for a denominação, ele é o Delfim, o centro das atenções da Gafeira e de todos os seus habitantes.

            Tomás Manuel é o chefe incontestado cujos suportes são a mulher e o criado. De facto, Maria das Mercês deveria acompanhá-lo perante o povo da Gafeira, enquanto Domingos o deveria fazer durante as suas visitas a bares e prostíbulos, tudo de acordo com a sua vontade e sem terem o direito de exigir ou sugerir o que quer que fosse, desde logo porque não eram considerados seus iguais. Só ele sabia tudo, ele era o senhor de ambos. Nada deveria ser discutido e nunca seria contestado. Só ele detinha o poder.

            Na realidade, nem sequer tem a coragem de se submeter aos exames necessários para esclarecer a origem da infertilidade do casal, isto é, determinar quem era estéril: ele ou a esposa, questão que ficará por esclarecer: “… não o vejo a ir à porta do médico e sujeitar-se a um atestado de esterilidade.” Tomás Manuel esconde o problema através das suas deambulações noturnas e do desprezo pela ciência e pelos seus avanços: “Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem-nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência.” Tudo isto demonstra uma grande falta de segurança e de confiança em si próprio. Tal como sucede, por exemplo, em Os Maias, no célebre episódio das Corridas de Cavalos no Hipódromo, vemos aqui o contraste entre o ser e o parecer em torno desta personagem, que insiste no culto das aparências. No final, tudo se desmorona em seu redor, desde logo porque nada nem ninguém pode parar a evolução do tempo e das mentalidades.

            A relação que mantém com Domingos é semelhante à que teria com um animal de estimação. Tomás Manuel diverte-se ao ver a falta de desenvoltura do criado em certas áreas, procurando iniciá-lo nos vícios e desinteressando-se completamente por saber sequer se isso dizia alguma coisa ao outro. Tudo se justifica pelo paternalismo do Delfim, que pretende fazer de Domingos um bom machista como ele, o que não se concretiza, dado que o criado depende completamente do Engenheiro, a única pessoa com quem convive, daí as suas falas sistemáticas com os cães e o entendimento especialíssimo com as máquinas.

Conceção das personagens em O Delfim

             Como não se trata de uma obra tradicional, as personagens são objeto de um tratamento diferente do habitual num romance.

            Em O Delfim, as personagens representam diferentes tipos sociais, planas, dado que não apresentam evolução interior, os seus comportamentos não se alteram ao longo da narrativa. A única exceção será Maria das Mercês, uma personagem redonda ou modelada, e talvez Domingos. Ambos ganham força interior e mudam o seu percurso existencial.

sábado, 19 de novembro de 2022

Símbolos do tempo em O Delfim


             Um dos elementos que está associado ao tempo é a lagartixa, descrita como “brasão do tempo”, da transição da posse da lagoa e da própria lagoa.
            A lagartixa, aparentemente inerte no seu muro de pedra, simboliza o tempo, a humildade e a pequenez. Ela simboliza a inércia, a preguiça sábia e familiar, a vigilância tranquila (dado que tem consciência de que a mudança é inevitável), daí a sua presença vigilante e constante nos muros e umbrais das portas. Como gosta de estar ao sol, simboliza também a procura da luz, aqui interpretada como busca do saber. A sua ação, em perseguição de um novo saber, de uma nova luz, de uma mudança, dá-se sem chamar a atenção. As únicas figuras que reparam na sua atividade são os “bons portugueses”.
            Outro símbolo do tempo é a transição da lagoa, que passa das mãos do Engenheiro e dos seus antepassados para as do Regedor e dos Noventa e Oito que ele representa. Esta alteração representa a mudança dos próprios tempos, do poder e da ordem, que se opera de forma subversiva.
            Um último símbolo é a lagoa, que representa a vida e constitui uma fonte de alimento para os camponeses-operários. Para o Engenheiro, a lagoa é somente mais um símbolo do poder inútil que, nas mãos do Noventa e Oito, passará a simbolizar evolução e progresso, quer do tempo, quer das estruturas sociais, económicas e ideológicas.

O tempo psicológico em O Delfim


             Para os camponeses-operários, o tempo passa lentamente, mas de forma incisiva, enquanto para Maria das Mercês ele demora a passar e está intimamente ligado à sua solidão: “Sete anos de esposa a passear de lá para cá (…). De vez em quando a jovem esposa julga ouvir o telefone. Outras vezes o motor de um automóvel; noutras o portão a girar nos gonzos, como se isso fosse possível sem que os cães dessem sinal. Esses malditos. Mas o telefone morreu há muito, porque as amigas jogam na vila, em casa umas das outras (…).” Para Tomás Manuel, o tempo parou para dignificar os antepassados e ele o fará parar quando e se for sepultado na lagoa, o símbolo perpétuo do seu poder sobre ela e que já se adivinha ameaçada pela nova ordem: “Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chega (…). O que me admira é o orgulho daqueles peixes (…) saberem que entraram em agonia e puxarem pelo resto das forças para cumprir a última vontade.”
            Tal como o tempo mítico-histórico é simbólico pela lagartixa, a referência constante aos peixes e à lagoa remete para o tempo mitológico absoluto, aquele em que a casa da lagoa e a respetiva comarca constituíam marcos da presença e do poder dos ungidos Palma Bravo: “(…) se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei de ser eu quem a vai perder.”
            Por outro lado, o Regedor e o narrador simbolizam o tempo da mudança. O Regedor lidera a lagoa e o grupo dos Noventa e Oito, passa licenças e olha em frente do fundo da sua loja, sempre atento a todos os movimentos e a todas as mudanças. Relativamente à personagem-narrador, observa o largo e a muralha a partir da sua janela, que forma o seu posto de vigia, e reflete criticamente sobre os acontecimentos que decorreram no tempo em que esteve ausente.
            Durante uma longa noite de insónia, que antecede a caçada, revive o convívio do ano anterior com os Palma Bravo, relê a Monografia, cedida pela estalajadeira, analisa todas as informações que o Velho-Dum-Só-Dente, o Regedor, o Batedor e a estalajadeira lhe deram. O narrador formula os seus próprios juízos sobre os acontecimentos, mas questionando-os sempre.
            Seja como for, o foco da sua atenção é, claramente, a agitação da lagartixa e dos camponeses-operários: é sobre eles que tece os comentários mais subversivos, é a partir deles que as suas divagações se aprofundam, são as suas ações que desnudam as mudanças que se deram durante o tempo em que este fora da Gafeira.

O tempo histórico em O Delfim


             Em O Delfim, o Tempo transmite a ideia de mudança, operada nas estruturas e revolução económico-social. Deste modo, temos o retrato fiel de uma época e da sua atmosfera conturbada.
            As personagens da obra refletem estas posições: de um lado estão o Engenheiro e Maria das Mercês, que fazem parte da elite que dominara até então e cuja história se perdera no tempo e cujos antepassados, todos de nome Tomás Manuel (este facto atesta a circularidade do tempo, isto é, a história que se repete de geração em geração), tinham um denominador comum: o poder. Do outro lado encontram-se os camponeses-operários que vão passar a usufruir das riquezas da lagoa, algo que já faziam, embora de forma clandestina, o que é exemplificado pelo festim das enguias. Note-se ainda que quanto mais ganham consciência da mudança mais se embrenham na clandestinidade, uma característica da década de 60 do século XX, e mais anseiam pela sua chegada, o que se reflete numa grande consciencialização, a qual se transmite por saberem que, juntos, conseguirão manter a posse da lagoa, dominando os seus destinos.
            Deste modo, poderemos concluir que O Delfim constitui a metáfora da situação que se vivia em Portugal na época (anos 50 e 60), visto que a Gafeira se multiplica pelo país fora, e o desejo premente de mudança. Esta noção só está, porém, ao alcance dos “bons portugueses”, dos que sabem jogar constantemente ao “olho vivo”, com a vida e com o Sr. Escritor (o tratamento de “senhor” é uma autoironia a propósito da condição de um indivíduo que é menosprezado por uma sociedade anticultural), dos que sabem ler nas entrelinhas o texto e a História. Por outro lado, não é uma casualidade a narrativa situar-se numa zona rural e que o camponês é associado ao operariado. De facto, é esta associação que vai fazer do camponês-operário alguém com consciência e vontade próprias em termos políticos, que se espera que alastre por toda a Gafeira.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Imagem que vale mais do que mil palavras


    Este senhor, utente de um lar, aguarda, à porta do edifício, a chegada do filho que o vem visitar. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Função sintática do pronome que

O pronome que pode desempenhar diversas funções sintáticas, nomeadamente de sujeito e complemento direto.
Para a maioria dos alunos, é difícil identificar ou distinguir os casos em que desempenha uma ou outra função sintática, no entanto, a tarefa é simples. Basta aplicar o seguinte teste:
• pegamos na frase em que o que está presente e “tapamo-lo”;
• se houver concordância (entre o sujeito e o predicado)
correta, o “que” é sujeito:
- O padre que foi preso era pedófilo.
- O padre foi preso…
incorreta, o “que” é complemento direto:
- O padre que prenderam era pedófilo.
- O padre prenderam…

Estrutura interna de Hamlet

 
Situação inicial: o rei Hamlet morre; Cláudio, seu irmão, assume a coroa e casa-se com a cunhada, Gertrudes.
 
Peripécias:

• Hamlet é visitado pelo fantasma de seu pai.

• Laertes e Polónio alertam Ofélia para ficar longe de Hamlet.

• A peça A Ratoeira é encenada.


Clímax: Hamlet mata Polónio e é banido para a Inglaterra.
 
Resolução: Cláudio e Laertes conspiram para matar Hamlet; Ofélia morre.

Situação final: Gertrudes, Cláudio, Laertes e Hamlet morrem.

Significado de Hamlet


             Os estudiosos consideram Hamlet a única personagem do cânone shakespeariano que melhor exemplifica a capacidade do dramaturgo de expressar a consciência universal da existência humana. Ele personifica o génio de Shakespeare e, em virtude da natureza da sua presença enigmática, captura a imaginação humana melhor do que qualquer outra personagem literária antes ou depois.

            Hamlet possui uma natureza dupla: é sensível, poético, artístico e amoroso, mas também é um criminoso que esfaqueia os seus amigos pelas costas, trata a sua jovem namorada de forma insensível e não mostra qualquer remorso por assassinar um “bom velhinho invisível”. Nenhuma outra personagem é tão citada, imitada e emulada como Hamlet.

            Desde o início, o protagonista possui um imperativo claro para agir no seu feudo medieval sangrento: vingar a morte do pai, assassinando o rei Cláudio. As suas emoções rasgam-no em dois: por um lado, tem a necessidade masculina básica de afirmar a sua masculinidade e corrigir erros graves; por outro, a sua moral cristã diz-lhe que matar constitui um pecado, não importa qual seja a causa.

            Hamlet representa o oposto do seu tio. De facto, Cláudio personifica o vilão maquiavélico: justifica o seu erro, engrandecendo os fins causados pelo seu mal. Ele reconhece o seu próprio mal e reconhece o seu destino de perdição. Saber que será condenado ao Inferno, torna-o não menos ansioso para comer um crime após o outro, o fim de manter os seus despojos conquistados de forma errada. O desejo de resistir a odiá-lo move o público, e o facto de estar familiarizado com a sua incapacidade de procurar a absolvição impede que seja unidimensional. Em vez de o odiar, o espectador torce pela sua conversão, esperando que confesse e mostre arrependimento. Quando não o faz, o público torna-se menos indulgente. Por seu turno, Hamlet é a antítese de Cláudio. Ele sabe que tem uma dívida com o pai e com a velha ordem que dita que deve cometer um ato pecaminoso. No entanto, o seu medo de que a ação seja errada paralisa-o. Embora o fim justifique a própria existência do protagonista, não justificaria o seu desafio ao mandamento contra o assassinato.

            Os críticos argumentam que a incapacidade de Hamlet se decidir torna-o uma figura trágica. Como outros grandes heróis trágicos de Shakespeare, Hamlet deve encontrar uma maneira de transformar as suas ideias – as palavras perseverantes que nunca lhe permitem silêncio – em ação. Em Macbeth, o herói inverte os papéis com a sua esposa; ela, pronta para agir, torna-se vocal, pensadora, enquanto o marido se torna o imprudente, o homem de ação. No Rei Lear, a loucura rouba as palavras ao monarca, forçando-o a ouvir, a reconhecer a realidade para experimentar o seu reconhecimento e o reverso. Porém, em Hamlet, as palavras controlam o herói até ao fim – até que ele saiba que está morto e possa encerrar a discussão e finalmente agir.

            Por outro lado, grande parte do conflito que Hamlet deve superar resulta da sua luta interna, não de obstáculos externos, embora eles também existam. O facto de Cláudio possuir todas as cartas e expor Hamlet, nu, a toda a Dinamarca constitui um conflito completamente externo. O fantasma ordena-lhe que vingue a morte do velho rei, mas nenhuma testemunha atesta o facto de o rei Hamlet não ter morrido de causas naturais. O rei Cláudio é o monarca por direito divino e, ao matá-lo, Hamlet comete uma alta traição e, em simultâneo, despacha um emissário de Deus. Para o mundo que o rodeia, o jovem príncipe parece desafinado: é popular e admirado pelos súbditos dinamarqueses de Cláudio, mas aqueles não têm qualquer razão para acreditar que este seja outra coisa que não o que diz ser: um rei nobre. Se Hamlet sabe que o seu mundo está “fora do lugar”, que as coisas não são o que parecem ser, que há algo “podre no reino da Dinamarca”, a verdade é que não tem provas nem aliados. Cláudio até manipula a própria mãe do príncipe e o namoro com Ofélia. Assim, à exceção de Horácio, Hamlet está sozinho.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Fontes de Hamlet


             O teatro foi sempre uma arte colaborativa. Na época de Shakespeare, uma companhia de reportório não poderia esperar que um dramaturgo escrevesse no vácuo. A natureza da programação na qual uma nova peça poderia ser encomendada semanalmente, exigia a colaboração dos dramaturgos. Os ingleses do final do século XVI e início do XVII emprestavam livremente material uns aos outros e partilhavam críticas e edições. Hamlet, à semelhança das outras grandes obras atribuídas a Shakespeare, representa o seu trabalho, mas também mostra muitas contribuições de atores, diretores, etc., que sabiam que partes de uma peça deveriam deixar ou retirar.

            Como os gregos, o público isabelino e jacobino frequentava o teatro para ver peças que já tinham visto várias vezes ou que se baseavam em histórias tão familiares para ele quanto as histórias das suas próprias famílias. Assim, Shakespeare baseou o seu Hamlet numa popular saga escandinava que existia há mais de cem anos e que atores de toda a Europa haviam representado em anteriores manifestações à década de 1550.

            Em Newington Butts, um antigo vilarejo, The Lord Chamberlain’s Men (uma companhia teatral para a qual Shakespeare escreveu durante a maior parte da sua carreira) representou uma peça anterior cuja temática era a vingança, dirigida por Henslowe, em 9 de junho de 1594. Os estudiosos designam habitualmente este Hamlet e Ur-Hamlet e acreditam que o seu autor seja Thomas Kyd, um brilhante dramaturgo contemporâneo de Shakespeare. Não é conhecida qualquer cópia do Ur-Hamlet nem evidências concretas de que Kyd realmente escreveu a peça, contudo a história de Hamlet apresenta grandes semelhanças com a obra-prima de Kyd, The Spanish Tragedy, que múltiplos críticos acreditam ser uma versão aperfeiçoada do Ur-Hamlet.

            Crê-se, por outro lado, que tanto Kyd como Shakespeare terão lido Historia Danica, da autoria de Saxo Grammaticus por volta de 1200, uma antologia de lendas e mitos de origem nórdica, traduzida e popularizada em língua francesa por Belleforest em 1570. Thomas Pavier publicou uma tradução em inglês da versão de Belleforest da história de Hamlet em 1608, sob o título The Hystorie of Hamlet.

            No reconto de Belleforest da velha história, que tem lugar nos dias anteriores à chegada do Cristianismo à Dinamarca ou à Inglaterra, o público conhece o assassinato do rei Hamlet e o novo monarca afirma que o matou enquanto agia em defesa da rainha. Hamlet é um jovem que só pode fingir cuidar de si mesmo. Embora admire a verdade, não consegue ver além do seu espírito vingativo e exibe uma crueldade extrema. Nessa versão, Hamlet vai para a Grã-Bretanha, onde se casa e vive com a sua esposa, a filha do rei inglês, durante um ano. A notícia da morte de Hamlet chega ao rei da Dinamarca, que dá uma festa para comemorar, porém ele aparece quando a festividade começa, embebeda a corte e incendeia o palácio, matando imediatamente o rei.

            A peça em que Shakespeare baseou Hamlet era um conto sangrento pleno de som e de fúria com conotações cruas e selvagens. Embora o derramamento de sangue permaneça na peça do autor de Romeu e Julieta, a realidade é que ele refinou o texto, tornando-o poético e cheio de reflexões sobre o significado da vida, da morte, da eternidade, dos relacionamentos, da hipocrisia, da verdade, da existência de Deus e quase tudo o que diz respeito à humanidade. No entanto, o facto de a personagem do Hamlet de Shakespeare ser mais refinada cria um problema para quem fosse representar a peça.

            Shakespeare escreveu a peça de vingança “standard”, mas de uma forma totalmente nova. A tragédia de vingança era muito popular na época do dramaturgo e girava em torno de um herói que estava destinado a vingar um erro. Tal como os seus modelos da tragédia romana de Séneca, os heróis e vilões eram dramaticamente loucos, melancólicos e violentos. As peças eram gráficas e sangrentas. Shakespeare, sendo um pensador original, refinou a sua obra, criando novas tensões e redimensionando algumas das velhas questões.

            Se a obra fosse uma verdadeira peça de vingança, Hamlet teria agido mais cedo, ou seja, teria liquidado o rei no início, com o resto da peça elaborando sobre o que aconteceu após a morte de Cláudio. Ao não agir com mais celeridade, Hamlet leva-nos a refletir sobre a sua verdadeira motivação. Ele tem todas as oportunidades de matar o rei desprotegido, mas Cláudio vive. Os obstáculos que impedem o homicídio não são físicos, o que constitui um problema para os críticos e intérpretes. Eles dependem largamente da cultura de onde o intérprete provém; obstáculos que parecem óbvios para os leitores/públicos modernos nunca ocorreram aos do século XVI.

            O dramaturgo escreveu para um público que tanto assistia às suas peças como a lutas de ursos ou a execuções públicas. Não se tratava de um público intelectual; apenas desejava observar um protagonista a agonizar com palavras bonitas e insinuações sexuais sobre o dilema humano.

Fixação do texto de Hamlet


             Os estudiosos baseiam as edições modernas de Hamlet nas três versões da peça publicadas em 1623, duas das quais surgiram ainda em vida do autor e a terceira, sete anos após a sua morte.

            O First Quarto (assim chamado porque a peça foi impressa em papel que foi dobrado em quatro partes) é de difícil leitura. Ele contém mais 240 linhas do que a versão seguinte (o Primeiro Fólio), mas é importante, pois constitui a primeira publicação da atual versão da peça.

            Nalguns passos, a escrita de First Quarto é tão pouco polida e amadora que faz os especialistas acreditarem que esta edição é muito pobre e repleta de erros, concebida como um roteiro de representação corrigido e editado por um ator.

            A edição do Second Quarto de Hamlet, publicada em 1604, usou uma edição mais afinada como base: John Heminge e Henry Condell, membros da companhia de Shakespeare, compilaram o Primeiro Fólio combinando o texto do Second Quarto com notas atualizadas do gerente de palco.

            Assim, os estudiosos baseiam os textos modernos em grande parte – ainda que indiretamente – no texto de Second Quarto.

Primeira edição e representação de Hamlet


             A primeira referência clara àquilo que conhecemos como Hamlet, a célebre obra de Shakespeare, surge no “Stationers’Register” (um livro de registos da Stationers’Company de Londres, uma empresa que regulamentava as várias profissões associadas à indústria editorial, e que se tornou essencial para o estudo da literatura inglesa de final do século XVI e do século XVII), de 26 de julho de 1602, como uma peça chamada The Revenge of Hamlet Prince [of] Denmark. Nesse artigo, o autor afirma que a peça tinha sido recentemente encenada por Lord Chamberlain.

            Na sua lista de peças representadas em Londres, publicada em 1598, Francis Meres não faz qualquer referência a uma peça intitulada Hamlet, mas uma nota presente na edição de Gabriel Harvey da obra Chaucer – Chaucer foi considerado o “pai” da literatura inglesa – menciona o Hamlet. Vários estudiosos questionam a data em que essa noite foi escrita, porém a maioria concorda que Shakespeare publicou a peça depois de 1601 e antes de 1603. The First Folio, a primeira edição impressa das obras do escritor, publicada em 1623, classificou as peças como Comédias, Histórias e Tragédias.

            William Shakespeare escreveu as suas grandes tragédias – excluindo Romeu e Julieta, que não é, estritamente, uma verdadeira tragédia – entre 1601 e 1606 e, aparentemente, Hamlet foi escrita primeiro. Seguiu-se-lhe Otelo (1604), Rei Lear (1605/6) e Macbeth (1606).

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Análise da Cena 3 do Ato II de Frei Luís de Sousa

 
Nesta cena, Manuel de Sousa, logo na sua primeira fala, desafia o Destino: “Mas vamos: não dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há de ser destas paredes, é unção da casa: que isto é quasi um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Estas palavras despretensiosas e risonhas cortam o tom solene, quase de sermão, com que Manuel de Sousa, momentos antes, interpretara a “grande propensão (da filha) para achar maravilhas e mistérios nas coisas mais naturais e singelas”, e lhe dera uma interpretação teológica sobre os segredos inefáveis de Deus. Estas palavras possuem, contudo, um sentido oculto, talvez até de trágica ironia: com elas, mais uma vez Manuel de Sousa desafia o Destino. E este pega-lhe nas palavras tão imprudentemente proferidas: Manuel de Sousa terá de renunciar a tudo e vestir o hábito de S. Domingos.
 
Na primeira fala, Manuel de Sousa procura persuadir Maria de que não faz sentido acreditar em presságios, dizendo-lhe que a única coisa que não se pode explicar é a Fé; tudo o resto deve ser analisado à luz da razão.
 
Prossegue nesta cena o conflito de Manuel de Sousa com D. João. Ele louva as nobres qualidades de alma deste, a sua grandeza e valentia, a força de vontade, serena, mas indomável, que  nunca foi vista mudar, mas a realidade é que Manuel entrou naquela casa, está no ambiente em que D. João vivera com D. Madalena, aparentemente como senhor da casa, na ambígua situação de usurpador, de intruso.
 
De seguida, Manuel de Sousa realça a reação de D. Madalena (“estremece”) sempre que ouve falar no primeiro marido. Ele atribui esta atitude ao respeito que ela teria pela memória de D. João, não se apercebendo de que, na verdade, “estremece” por causa dos seus receios relativamente ao destino de D. João de Portugal.
 
Presságios

As palavras de Manuel de Sousa a propósito de parecer um frade constituem um novo indício de fatalidade: “Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito…”. Sem saber, Manuel de Sousa antecipa, simbolicamente, o desfecho da peça, altura em que D. Madalena e ele ingressarão em conventos da Ordem de S. Domingos.
 
A comparação irónica de Manuel de Sousa a um pregador – “(…) não dirão que sou da Ordem dos Pregadores?” – indicia a tomada do hábito.
 
A referência à capela: “Ainda não viste daqui a igreja? É uma devota capela desta. E todo o tempo tão grave! Dá consolação vê-la.”. Será nela que Manuel e Madalena tomarão o hábito.
 
A resposta de Manuel à fala de Maria, que afirma ter pena de D. João ter morrido na batalha de Alcácer Quibir: o pai lembra-lhe que, se ele estivesse vivo, ela não existiria e a família seria destruída, o que deixa Maria angustiada: “Manuel – Mas se ele vivesse… não existias tu agora, não te tinha eu aqui nos meus braços. / Maria (escondendo a cabeça no seio do pai) – Ai, meu pai!”. Isto indicia o desfecho trágico: a alusão ao facto de a vida de D. João implicar a não existência de Maria. Se, no passado, o regresso do cavaleiro inviabilizaria o seu nascimento, no presente, acarretará a sua morte, ou seja, ela sofrerá a vergonha de ser filha ilegítima.
 
A comparação do palácio de D. João a um convento – “isto é quase um convento aqui” – e a fala “a morte – e a vida que vem depois dela tão diante dos olhos sempre “ - antecipam uma mudança na vida da família e antecipam o desfecho da obra: é ali que Manuel e Madalena vão professar e tomar o hábito.

Análise da Cena 2 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Assunto: Manuel de Sousa Coutinho revela a Maria a identidade do retratado (D. João de Portugal) e aconselha a filha a dedicar-se mais a atividades próprias da sua idade.
 
Esta cena é uma continuidade da anterior: Maria tinha questionado Telmo sobre o retrato de D. João; Telmo é evasivo e não a elucida; Manuel de Sousa entra em cena e é ele que lhe responde, sem subterfúgios.
 
De facto, Manuel de Sousa Coutinho entra em cena e revela a Maria a identidade do cavaleiro do retrato (“Aquele era D. João de Portugal, um honrado fidalgo e um valente cavaleiro.”), confirmando as dúvidas da filha: “Bem mo dizia o coração!” Esta exclamação confirma as premonições de Maria, visto que, sem ninguém lho afirmar, já sabia que o retrato era de D. João de Portugal.

O fidalgo refere-se a D. João de forma semelhante à que fizera na cena 8 do Ato I: elogia e admira as suas qualidades e não tem quaisquer ciúmes (afinal, morto ou não, tinha sido o primeiro marido de D. Madalena).

Este comportamento contrasta com o de D. Madalena, que receia o passado e sente uma culpa de que não consegue libertar-se. Pelo contrário, Manuel de Sousa não tem nada que o faço sentir-se culpado e para si o passado é apenas isso – o passado. Admira-o, respeita-o, mas não o receia.

 
Maria não reconhece o pai pela voz, apenas quando o vê, porque se encontrava obcecada pela imagem de D. João.
 
Manuel de Sousa veio a casa de dia, embora encoberto com uma capa e um chapéu. Anda escondido para escapar à perseguição dos governadores. A afronta dos incêndios leva a que tenha de ir a sua casa disfarçado e de forma oculta. Perante a preocupação e a inquietação da filha (“Mas de dia!... Não tendes receio, não há perigo já?”), Telmo tranquiliza-a, dizendo-lhe que o maior perigo de represálias por parte dos governadores castelhanos já tinha passado: “(…) sei pelo senhor Frei Jorge que está, se pode dizer, tudo concluído.”
 
Mais uma vez, Maria revela ser uma jovem marcada pela doença: as mãos quentes e a testa a escaldar (hipérbole) de febre são sintomas de tuberculose. Tal como sucede noutros passos da obra, o pai pede-lhe que não pense tanto, que se divirta. De facto, os progenitores consideravam que a reflexão em excesso e o estudo a debilitavam ainda mais. Na realidade, Maria dedicava-se imenso aos estudos, lia muito, questionava tudo, o que era invulgar para a sua idade. Por outro lado, era uma jovem doente e a falta de distrações, de brincadeiras adequadas à sua idade acentuam a sua debilidade. Além disso, os estudos eram ocupação de homens, não de mulheres, mesmo aristocratas, que apenas deviam saber o necessário para a sua condição na época: bordar, tocar harpa, organizar o trabalho dos serviçais.
 
Retrato de Maria
 
            Maria confirma nesta cena e na anterior que é uma criança curiosa, precoce e perspicaz, com uma intuição apurada: “(…) é que eu sabia de um saber cá de dentro; ninguém mo tinha dito, e eu queria ficar certa.” Note-se, por exemplo, que ela não sabia de quem era o retrato, mas parecia saber que pertencia a D. João de Portugal, o dono da casa, como se tivesse o dom da adivinhação, daí que o pai lhe chame «feiticeira» depois de a ouvir dizer que “sabia de um saber cá de dentro”.
 
Em determinado momento da cena, Manuel de Sousa deixa de tratar a filha por tu e dirige-se-lhe por você (“Ah! você sabia e estava fingindo?”). Esta mudança de tratamento constitui uma repreensão carinhosa, visto que Maria questionou Telmo insistentemente para saber quem era a figura retratada, colocando-a até numa posição desconfortável, mas, logo de seguida, confessou que já sabia de quem era o retrato.
 
Retrato de Manuel de Sousa
 
            Manuel mostra ser bom pai, atento (“esta testa”, “Escalda!”), preocupado com a filha e o resto da família. Por outro lado, demonstra ser franco e honesto, pois não esconde a identidade do retratado no quadro, falando dele abertamente. Além disso, é uma pessoa culta, como o reconhece Maria (“Manuel – Poetas e trovadores padecem todos da cabeça…” / “Maria – E então pata que fazeis vós como eles? Eu bem sei que fazeis.”), e revela uma profunda fé (“Valha-te Deus, Maria!”).

Características trágicas da cena

Agón: o conflito de D. João com Maria, que se manifesta nesta cena (tal como na anterior) nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que esta perscruta as palavras e as meias palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato.

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