Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, não possui refrão), em
coblas singulares (ou seja, com estrofes com o mesmo esquema rimático), da
autoria de Fernando Esquio, trovador provavelmente ativo entre o final do
século XIII e início do XIV, compreende uma sátira, em termos bastante crus, a
um frade que se dizia impotente, mas engravidava todas as mulheres que lhe
passavam por perto, tendo três delas dado à luz no mesmo dia. Assim sendo,
desde já, podemos concluir que a afirmação da impotência por parte do frade
serve para esconder as suas aventuras sexuais.
A
cantiga aborda questão da libertinagem na sexualidade, a partir da referência à
virilidade sexual de um frade, que se fazia passar por aleijado ou impotente:
“A um frade dizem escaralhado, / e faz pecado quem lho vai dizer”. Ou seja,
quem espalha esse rumor sobre o frade comete um pecado, isto é, comete um erro.
A razão é simples: “ca, pois el sabe arreitar de foder, quer dizer, possui
potência, virilidade, para praticar o sexo, o que o deixa feliz (de acordo com
o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, “gai” – alegre – é um termo provençal que,
tradicionalmente, era lido por vários estudiosos como “que gaj’é” – que é um
gajo –, todavia o termo “gajo” só começou a ser atestada em português em meados
do século XIX, pelo que a sua utilização nesta cantiga não parece verosímil;
eventualmente, podemos também associar o vocábulo ao sentido de “promíscuo”). O
calão “de piss’arreitado” reforça a promiscuidade do religioso e o desrespeito
pelas normas da religião que professava, nomeadamente a do celibato. Por aqui
passa a crítica do trovador à quebra desse voto por parte do clero.
Resumidamente,
o trovador fala de um frade que dizem ser impotente (“escaralhado” significa
“desprovido de membro viril”), boato que o próprio religioso teria confirmado.
Na verdade, não só seria dotado de pénis, como este funcionava muito bem – como
se depreender da expressão “saba arreitar de foder”, que indicia a sua potência
sexual – e tem ótima disposição para o sexo, de modo que, como se verá,
engravidou várias mulheres, por isso, ao invés de “escaralhado”, é um homem
“bem encaralhado”.
O
escárnio e a sátira acentuam-se com a referência ao facto de o frade engravidar
todas as mulheres com quem se deita (hipérbole), gerando diversos filhos e
filhas, o que prova que é “bem encaralhado”, ou seja, que é bem potente
sexualmente, ao contrário da fama de impotente que possui. De facto, o
religioso não peca de forma isolada, antes continuada e profícua. O uso
recorrente do calão expõe-no como um símbolo de corrupção e desrespeito pelos
preceitos religiosos. Em simultâneo, se conectarmos a mensagem da cantiga à
atualidade, poderemos considerar que a crítica se vira para a própria
instituição Igreja, por forçar os seus membros a adotar comportamentos
anti-natureza, como o celibato, isto é, a inibição do sexo.
A
ironia acentua-se na segunda estrofe: o sujeito poético afirma, ironicamente,
que nunca usaria o termo “escaralhado” para designar o frade e fá-lo como se
fosse uma espécie de concessão: “Escaralhado nunca eu diria”. Exemplificativo
do seu vigor sexual é o facto de trazer o membro viril: “mais que traje ante
caralho ou veite” (termo provençal que significa «verga», «pau», ou seja, em
sentido figurado, pénis. Mais esclarecedora é a afirmação segundo a qual tem
várias mulheres de leite, quer dizer, a amamentar filhos seus. Estes versos
(“ao que tantas molheres de leite / tem”) tem duas leituras possíveis: a
primeira sugere que o frade mantém relações sexuais com mulheres lactantes; a
outra que o religioso se torna para as mulheres um deleite sexual, pelo seu
“caralho arreitado”. A sátira atinge o zénite com a hipérbole “ca lhe parirom
três em um dia”, isto é, três mulheres deram à luz, engravidadas por ele, no
mesmo dia. Além disso, como se não bastassem já os factos apresentados para
desmentir a sua pretensa impotência sexual, ficamos a saber que o frade possui
muitas outras mulheres grávidas: “e outras muitas prenhadas que tem”. Em suma,
o religioso tem mulheres engravidadas por si a amamentar; três deram à luz na
mesma data; muitas outras estão grávidas. O que se pode concluir de todas estas
provas? O frade seria muito “encaralhado” por isto. A ironia é clara: o
indivíduo é o oposto de “escaralhado”, de impotente; pelo contrário, é
particularmente dedicado ao sexo e fértil, como o comprovam as inúmeras
mulheres com quem manteve relações sexuais e que engravidou
O
trovador, ao longo do poema, enfatiza sistematicamente a quantidade exagerada
de mulheres com as quais se relacionam sexualmente. Na terceira estrofe, são
apresentados outros exemplos: o da famosa soldadeira Marinha e de uma
pastorinha prenhe, além de “muitas molheres que fode”. Deste modo, o «eu»
lírico afirma, logo no primeiro verso, que tal homem “Escaralhado nom pode
ser”. A conclusão, óbvia, surge nos dois versos finais da cantiga: um frade
assim, por tudo isto, tem que ser muito viril (“e atal frade bem cuid’ eu que
pode / encaralhado per esto seer”. Observe-se que o termo «arreitado» ainda é
usado na Baía. No Brasil, nas formas “arretado” e “retado”, com o sentido de
alguém muito masculino e também de pessoa ágil e firme. Os dois sentidos acabam
por se ligar, dado que a ideia de firmeza sempre se associou à sexualidade.
Em
suma, o trovador enfatiza as habilidades do frade, referenciando-as cinco vezes
(vv. 3, 4, 5-6, 7 e 9). O frade teria tantas parceiras sexuais que, em
determinada ocasião, teriam nascido, no mesmo dia, três crianças de três
mulheres engravidadas pelo frade. O trovador chega, inclusive, a citar o nome
de uma das mulheres com quem o religioso se relacionava: chamava-se Marinha e
seria mãe de vários filhos dele. O «eu» poético fala de uma «pastorinha», termo
que significava uma mulher jovem, indiciando que o frade tinha engravidado
também uma jovem de pouca idade, além de diversas outras mulheres.
Estilisticamente,
além do uso da ironia (“A um frade dizem encaralhado, / e faz pecado em que lho
vai dizer”; “e atal frade cuid’eu que mui bem / encaralhado per esto seria”) e
do calão cru, há que destacar o jogo com as palavras «escaralhado», que designa
alguém impotente, e «encaralhado», que apontam para alguém constrangido, que se
encontra em situação difícil ou de embaraço. Assim sendo, o primeiro vocábulo
associa a figura do frade a uma pessoa que possui uma reputação indesejável, a
de ser incapaz de manter relações sexuais, o que, em termos práticos, até se
poderia considerar benéfico, pois, deste modo, mesmo que contra a sua (eventual)
vontade, ele respeitaria o voto de castidade. Por sua vez, a segunda palavra
remete para uma reputação conotada com a virilidade, a masculinidade, mas
também à devassidão e à luxúria.
A anáfora,
presente no uso repetido da conjunção coordenativa copulativa «e», serve o
propósito de intensificar o caráter devasso e a virilidade do frade, visto que
serve a enumeração dos factos que o atestam [o caráter]: “e pois emprenha estas
com que jaz / e faze filhos e filhas assaz”; “ca lhe parirom três em um dia, /
e outras muitas prenhadas que tem; / e atal frade…”. O diminutivo «pastorinha»,
equivalente a «mocinha» / «jovenzinha», carrega em si as ideias de pureza e
simplicidade, bem como de juventude, logo de inocência, em tese, da figura
feminina (em tese, porque, na prática, mantém relações sexuais com o frade),
que contrastam com a do frade, devasso e experiente, pelo que não lhe seria
difícil seduzir uma jovem. A aliteração em «f» (“e faze filhos e filhas assaz”)
enfatiza a consequência da devassidão do frade e da sua atividade sexual
repetitiva e sem contenção: o gerar de uma quantidade grande de filhos. A
hipérbole (“tantas molheres de leite tem, / ca lhe parirom três em um dia”) dá
nota do número elevado de mulheres com quem o frade manteve relações sexuais e,
consequentemente, engravidou, indiciando o comportamento devasso e
descontrolado, completamente alheio ao dever de castidade. O religioso é, de
facto, um homem extremamente fértil e com uma vida sexual bem ativa, em suma,
um femeeiro contumaz.
Nesta
cantiga, a impotência é apresentada como estratégia de conquista do frade, que
age de modo a sugerir que sofre de impotência (de estar escaralhado – versos 1,
8 e 15), em que muitos acreditavam. Deste modo, não se trata efetivamente de
impotência do religioso, mas, pelo contrário, de uma forma de encobrir, aos
olhos das demais pessoas, a sua intensa atividade sexual e desrespeito pelo
voto de castidade.
De
forma genérica, o trovador denuncia que um frade, que todos creem impotente, na
verdade não o era, bem pelo contrário. O adjetivo qualificativo «escaralhado»
significa, ao pé da letra, “aquele que não tem o seu membro viril”. O sentido
de não o ter desse modo procura sugerir a ideia de que não servia para tal fim,
ou seja, era impotente. No entanto, o trovador atesta que “el sabe arreitar de
foder” (v. 3), o que significa que o pénis funciona em pleno, como o atesta o
facto de engravidar as mulheres com quem se relaciona (v. 5). Os versos finais
de cada estrofe apresentam outro qualificativo – «encaralhado» (vv. 7, 14 e 21)
–, que significa o oposto de «escaralhado», isto é, quer dizer “portador de
membro viril”.
O uso
desses vocábulos confirma a existência de um mecanismo característico da
cantiga de amor: o dobre. Este recurso consiste num processo através do qual se
repetem palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes (ou
seja, exemplificando: se na primeira estrofe se repete a mesma palavra em dois
pontos, nas seguintes deverá repetir-se uma palavra na mesma posição). O
primeiro dobre, focado nos versos iniciais das estrofes, refere-se à palavra
«escaralhado», ou seja, impotente. O segundo dobre é o qualificativo
«encaralhado», presente nos derradeiros versos das estrofes, e indicia que o
frade, afinal, não é impotente, pelo contrário, é um expert em matéria
de sexo.
Esta
cantiga, em suma, denuncia a prática recorrente na época: a manutenção de
concubinas por parte de membros do clero, o que contraria as recomendações
saídas do IV Concílio de Latrão, que teve lugar em 1215. A questão é que o
trovador insinua que o frade pratica sexo de forma ostensiva, inclusive com mulheres
que amamentam (porque geraram filhos seus).
De
acordo com Hugo Gonçalves [in Prática Sexual e Humor nas Construções
Identitárias da Nobreza Portuguesa na Corte Dionisina (1279-1325), Goiás,
2014), “A manutenção de relações sexuais por parte de clérigos era uma
preocupação não só da igreja. De uma maneira ou de outra, o poder secular se
envolveu nestas questões, visando restringir esse tipo de envolvimento. Ao
clérigo que se casasse com mulheres virgens, era-lhe reservada a justiça
secular: fosse através de um processo, fosse pela cítola. Em uma lei datada de
1305, Dom Dinis reivindica para o poder secular o direito de julgar os clérigos
que se envolvessem com mulheres virgens. Essa atitude visava proteger as
mulheres – especialmente as pertencentes a qualquer círculo da nobreza, que
seriam as ideais para o casamento – de se envolverem com algum clérigo que não
pudesse dispor de bens para seu favorecimento. Portanto, a petição do monarca é
de que o clérigo que violentasse alguma mulher leiga fosse excomungado como se
tivesse agredido a outro clérigo, e por isso passasse para as mãos da justiça
régia […].
Outra
forma de fazer justiça consistia nas sátiras, pois era uma maneira de se
denunciar práticas vigentes e condenáveis aos olhos daquela sociedade. Através
do humor, do riso e da pilhéria, se criavam situações, hipotéticas ou não, que
certamente traziam certa desconfiança para os adeptos das práticas deletadas.
Seus delatores, bem como a maioria da audiência, certamente se deleitavam em
imaginar os envolvidos, ou ainda certamente acusavam uns e outros de serem os
atores da cena, comentando o clima humorístico envolto nas encenações destas
cantigas.
Portanto,
retorna-se à questão da cultura do insulto, pois essas delações pressupunham
que houvesse certo afastamento deste clérigo das “muitas molheres que fode” (v.
19), já q eu não o poderia. É impossível reconstruir
o ambiente de encenação dessas cantigas, mas ao que tudo indica elas sugerem
uma pessoa, sem dizer nenhum nome, as quais eram motivo de divertidas
especulações momentâneas, em busca da correspondência real da personagem da
sátira. Assim é possível afirmar que essas práticas entre os clérigos eram
comuns.
A
construção identitária da nobreza também se dava nestas ocasiões, afinal,
escarnecer dos clérigos que não podiam manter tais práticas, enquanto os mesmos
nobres a mantinham era uma maneira de se afirmar através do humor. Em última
instância, existe uma sugestão de que o referido clérigo mantinha relações com
uma soldadeira, que era uma categoria de mulheres que acompanhavam os jograis –
músicos que viviam desta atividade, recebendo pelas apresentações que faziam, e
às vezes produziam algumas cantigas – e bailavam nas apresentações dessas composições
poéticas. Estas mulheres tinham diferentes tratamentos nesta sociedade, muitas
vezes sendo confundidas com prostitutas.
Os
estatutos de uma e de outra são diferentes, e as soldadeiras nem sempre eram
prostitutas. Por outro lado, como a cantiga propõe em relação à Marinha, essas
mulheres deveriam manter relacionamentos sazonais nas cidades que mais
frequentavam. Daí pode advir a explicação do facto de o frade ter feito “tantos
filhos em Marinha” (v. 16), por ela ser uma soldadeira com quem tivera várias
oportunidades de se encontrar.
[…]
Fernando
Esquio, por sua vez, tratou a impotência como uma possível estratégia
necessária para um frade disposto a peripécias sexuais, já que mão podia manter
relações deste tipo, e que acreditava que fazer com que as mulheres pensassem
que era impotente o ajudaria a continuar indefinidamente com suas companheiras.”