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domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A vós, Dona abadessa", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor” logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
    O trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”), para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio, / estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
    Ironicamente, o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu» poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios, cada um contendo dois.
    O presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes (“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
    Em primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais? Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de «fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente feminino, tratado entre mulheres.
    Em segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma ironia.
    Em terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19 (“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela mulher e porque esta merece.
    Em quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos” possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente proporcionariam prazer a quem os usasse.
    A cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós), não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
    Por outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for, esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher casasa também o pudesse?

Análise do capítulo XVII de O Cortiço

     Os partidos unem-se, agora, contra um inimigo comum, os membros do outro cortiço. Entretanto, dá-se um novo incêndio e surge também a polícia. Apesar de inimigos, os membros do "Cabeça-de-Gato" afastam-se e deixam que os outros resolvam o seu problema e apaguem o fogo, que devasta quase todo o cortiço. Agora é a luta dos bombeiros contra o fogo, que é aplaudida pelos habitantes do cortiço. Passa-se rapidamente da aflição para a ovação. Isto mostra o cortiço como um organismo vivo, com uma enorme sensibilidade, respondendo a todos os apelos dos sentidos: luta de duas mulheres  luta de dois partidos  luta dos dois cortiços  incêndio  aflição  ovação. Isto mostra como, em pouco espaço de tempo, o cortiço experimenta sensações diferentes.
    O capítulo mostra ainda a capacidade de união, apesar das divergências, quando a situação o exige. A rivalidade que se pode estabelecer entre os grupos marca a união entre cada um. Este é o último grito da união que existia neste cortiço. Sucedem-se as obras e o ambiente modifica-se.

Análise do capítulo XVI de O Cortiço

     O capítulo volta a Piedade, aos seus lamentos e aflições pela ausência do marido, que a levam a partir em sua busca. Mas encontra Rita e o contraste entre ambas é evidente e acabam por lutar. Esta luta de mulheres acaba por se transformar numa luta de facções: os portugueses, que apoiam Piedade, e os brasileiros, que estão do lado de Rita Baiana. Mas a luta é interrompida por um novo acontecimento: a chegada dos habitantes do "Cabeça-de-Gato" para vingarem a morte de Firmo.

Análise do capítulo XV de O Cortiço

     Referência a Florinda, que apenas procura um homem que trate bem dela, que lhe dê comida e vestuário. Quando tal não acontece, muda de homem. Temos a enumeração de factos com um certo grau de sordidez e repugnância.
    Mas o fundamental do capítulo é a vingança encetada por Jerónimo. Firmo é morto e, então, nada já impede a relação de Jerónimo e Rita, que reconhecem o amor e a paixão que os juntava.
    A indicação do caráter da personagem era mais subtil no Realismo, ao contrário do que aqui acontece, onde temos a explicação e apresentação do que provocou a mudança do caráter de ambos. Morto Firmo, unem-se como se estivessem cumprindo um destino; a união é um condicionamento da raça e o clima. O sujeito da mudança é Rita, símbolo dessa raça e desse clima. A relação que se vem a verificar entre ambos ainda é aquela que menos foge à normalidade, ao contrário, por exemplo, da de Pombinha e Léonie.
    O que leva também Rita a aproximar-se de Jerónimo é a procura de uma raça superior: "... e Rita preferiu no europeu o macho da raça superior."

Análise do capítulo XIV de O Cortiço

     A relação de Rita e Firmo começa a desmoronar-se e ele apercebe-se disso. O fim tem o auge quando Rita não comparece a um encontro marcado por ambos. Isto acontece precisamente no dia em que Jerónimo deixa o hospital e a sua principal ambição é vingar-se de Firmo, conseguindo ao mesmo tempo afastá-lo de Rita, o que favorece a sua aproximação.

Análise do capítulo XIII de O Cortiço

     Temos a descrição da evolução do cortiço e o aparecimento de um outro, o "Cabeça-de-Gato", estabelecendo-se entre ambos uma grande rivalidade.
    O afastamento de Rita e Firmo acentua-se, pois, enquanto ela mora no cortiço de J. Romão, ele mudara-se para o cortiço inimigo.
    Porém, o capítulo centra-se nas transformações operadas em João Romão, ao nível do vestuário, dos hábitos e costumes. Mas a modificação é apenas física e exterior; interiormente continua na mesma. Miranda começa a aceitar Romão e o fosse entre este e Bertoleza acentua-se cada vez mais.
    Começa a ganhar relevo a figura de Botelho, personagem muito prática, que vai incrementar o casamento de J. Romão com a filha de Miranda, que não é mais que um negócio.
    Romão é convidado para a casa de Miranda. Fica a ideia de que a sociedade é apenas exterior. A família de Miranda e Romão apenas são diferentes em termos exteriores.
    Bertoleza começa a ser sentida como um obstáculo para os objetivos ambiciosos de J. Romão.

Análise do capítulo XII de O Cortiço

     Também em relação a Pombinha se confirma a hipótese da influência do meio sobre as personagens, tal como já acontecera em relação a Jerónimo e a João Romão.
    Algo vai distinguir Pombinha das outras personagens do cortiço: alcança um grande grau de consciência do que a rodeia e dos seus sentimentos. A mudança é visível a nível físico, mas subtil a nível psicológico e tem como causas a relação com Léonie e o ciclo menstrual, que lhe dá uma nova visão das coisas, e ainda a carta de Bruno para a mulher Leocádia. Apercebe-se da relação entre homem e mulher e tem uma visão irónica e cínica. Isto revela uma certa superioridade e acaba por ser vítima da sua própria inteligência. Prova-se a tese proposta: influência da raça, meio e momento na personalidade. O homem não tem capacidade de resistir ao condicionamento causado pelos três fatores apontados.

Análise do capítulo XI de O Cortiço

     Denuncia-se o autor do incêndio: a bruxa. É importante referir o processo de construção da forma e estrutura do romance: por exemplo, acerca do fogo já nos tinham sido dados indícios nos capítulos interiores (cap. X, por exemplo, na conversa entre a bruxa e Marciana). Criam-se expectativas que depois se realizam. Isto dá orientação e organicidade à narrativa.
    Este processo marca uma diferença em relação à literatura anterior: há uma maior preocupação pela forma e pela estrutura: os indícios obrigam a que a narrativa se oriente num certo sentido.
    Na romagem que fazem à polícia, mais uma vez se evidencia o comportamento de grupo, o espírito coletivo, que se levanta em coro para dar uma resposta na delegacia.
    Mas, neste capítulo, há outros aspetos importantes: Rita rendera-se à atitude atenciosa de Jerónimo, o que provoca cada vez mais a aproximação entre ambos.
    Referência ainda à contínua evolução de João Romão e seu progressivo afastamento de Bertoleza.
    Mas por um maior processo de evolução passa Pombinha. Temos o recurso à analepse para explicar o porquê dessa evolução. Mais uma vez, temos o anúncio de expectativas que se vão concretizar.
    Durante o jantar oferecido por Léonie a D. Isabel e Pombinha, verifica-se que D. Isabel aceita tudo o que vem da prostituta, o que a aproxima do resto do cortiço. Pombinha vai passar uma experiência que vai ter nela importantes repercussões: a homossexualidade, que é uma prática pouco aceite na época.
    A descrição de A. A. é nua e crua: dá conta de todas as reações do corpo aos sentidos e fica uma ideia de animalidade e bestialidade. Pombinha aceita, mas fica cheia de pudor e vergonha. Daí a sua necessidade de ficar só.
    O final do capítulo pauta-se por uma certa individualidade em relação a Pombinha, o que só acontece com as personagens principais e contrasta com a ideia de grupo que fica do resto da obra. O que ela sente é ambíguo: sente arrependimento, mas também surpresa face ao prazer que é possível sentir. O sonho aparece mais como uma alegoria do prazer de ser possuída. Há uma sobreposição do plano onírico e do plano físico. Isto vai provocar grandes transformações em Pombinha, que vão continuar no capítulo seguinte.

Análise da cantiga "Ansur Moniz, mui’houve gram pesar", de Afonso X

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB, satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros, de baixa condição social.
    No verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais – reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado, o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais humilde.
    Na segunda estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros. Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é, Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão, ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência. Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos, <apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros. O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica discursiva da cantiga.
    Outro ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”, provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
    Ao longo da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição, indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento, tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente, tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida deixa de ter amigos.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os níveis, incluindo o sexual).
    De facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida – para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade, o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte, dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
    Partindo do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir / quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
    Por isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou / e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual, pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte da abadessa.
    Na quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que, quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes vós mais fazer / ao comendador entom”.
    Na finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem / de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”, em geral religiosa).
    Ao contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa. Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui para a formação do tom de malícia.
    Nota, por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim” (v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim” (v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
    Esta cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
    A já referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar” referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou de outra mulher que lá morasse também.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC, e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito usadas.
    A cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
    Quem dá início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
    O corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
    Os dois versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os “panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
    O trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza, passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade do que é dito.
    A sátira acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora, esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a própria dignidade.
    Mais uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
    A composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero, um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes – era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim, o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana. Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade. É uma leitura possível, mas pouco provável.
    A primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”). A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito” e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
    A gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
    A segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”), pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
    Este, porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam (hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
    A quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora, esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo atribui a si próprio.
    Em suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido reconhecido por um bispo.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achei Sanch’Eanes encavalgada", de Afonso X

    A presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
    A cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra, um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo, gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
    A comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, / e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”, “en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
    Atente-se no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha” é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar, acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
    Além da hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo, estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010). O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha (“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia (“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada legalmente em várias legislações medievais.
    Por outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social, designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
    A mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda, metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha. Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse, o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
    As duas palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
    Um outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco, incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v. 14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz: «Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário, pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”. Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada (“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina, vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
    Em suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente com uma mulher.
    Outras interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava, bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Análise do 10.° parágrafo do conto "A Aia"

    1. Vários homens / inimigos chegam à porta da câmara onde os bebés dormem, destacando-se um dentre todos. Trata-se de um indivíduo «enorme» (adjetivo que dá conta da sua grande envergadura), de «face flamejante» (adjetivo que destaca o tom do rosto do homem, agitado pela luta travada até chegar ali, ou sugere uma aparência demoníaca), envergando “um manto negro sobre a malha de cota”. O adjetivo «negro», que qualifica o manto, associa mais uma vez a personagem ao Mal, enquanto a cota de malha simboliza a proteção e a prontidão para a batalha. O contraste / antítese entre o negro e a face flamejante intensifica a ideia de que a figura em questão transporta consigo uma ameaça. Simbolicamente, o homem, com o seu manto negro, representa o mal, a destruição e a morte.


    2. A ação do homem, provavelmente o próprio tio bastardo, é marcada pela rapidez e pela violência. Desde logo, a sua chegada é qualificada, através do advérbio «bruscamente», como brusca e repentina. O facto de se fazer referência a outros homens que o acompanham indicia que não está e não age sozinho.


    3. Ao entrar, olhou em direção aos berços, o que revela o seu objetivo: o principezinho. A sequência de ações que se seguem e o modo direto e cru como são descritos evidenciam a urgência e a agressividade da personagem. Assim, ela correu para o berço de marfim, “arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro” (esta comparação acentua, por um lado, a violência e a brusquidão do rapto do bebé e, por outro, a sua motivação; além disso, ao comparar a criança a uma bolsa de ouro, o narrador sugere que aquela é vista como um objeto de grande valor, não como um ser humano).
    Por último, o homem abafa os gritos da criança, gesto que reforça a brutalidade do rapto e a tentativa de a silenciar, de modo que ninguém se aperceba e o persiga, e abala furiosamente. O manto negro que é usado para abafar o bebé pode ser analisado como uma metáfora da supressão da sua vida.
    Atente-se na expressividade das formas verbais, todas de ação (“olhou”, “correu”, “arrancou” e “abalou”), as quais revelam a violência e a rapidez com que o rapto é consumado.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Críticas à obra de Verney

Crítica à obra de Verney:
        . algumas ideias são desastrosas e exageradas (ex.: a literatura não se pode ver como
           passível de crítica científica);
        . em rigor, nem sempre terá havido da sua parte uma atenta reflexão pedagógica, mas
           sim uma preocupação de divulgar as ideias vigentes;
        . as suas ideias não são sempre originais, limitavam-se a transmitir as ideias que vigo-
           ravam na Europa e/ou em outros casos adapta essas ideias ao ensino em Portugal.
    Não se pode falar em orifinalidade total. É uma síntese de ideias que permitiu a chegada do Iluminismo até nós. Ele entendia que a cultura em Portugal estava voltada de costas para a evolução científica da Europa e, por isso, havia falta de progresso e a sociedade e mentalidade portuguesas eram atrasadas.
    Ele propunha o que de mais avançado se produzia na Europa, sobretudo no campo dos métodos de investigação. Era uma autêntica reforma no campo do ensino. Por exemplo, nos estudos linguísticos, propunha que o Português devia ser o centro dos estudos linguísticos e não o Latim.
    Em vez da retórica, do ornato, sem finalidade persuasiva, entendia que se devia optar pela apresentação de um discurso elaborado segundo a perspetiva da razão. Muitas destas ideias chegaram a Portugal por via dos estrangeirados, entre os quais se destaca a figura de Luís António Verney. As suas ideias foram bem aceites, quer no reinado de D. João V, quer no reinado de D. José. É nesta altura que D. João dá grande importância à cultura, nomeadamente aos livros publicados nos outros países e foi ainda criada a Real Academia Portuguesa da História, que contribuiu para a renovação dos métodos de investigação histórica. Por isto se vê a importância que este rei dedicou à cultura. Segue-se D. José, que escolheu novo governo e teve como seu colaborador direto o Marquês de Pombal, que não foi muito bem aceite pela nobreza tradicional. Em 1759, é promovido a Conde Oeiras e, em 1770, a Marquês de Pombal.
    A grande renovação cultural dá-se neste reinado por ação do Marquês de Pombal,que vai assumir o papel do déspota iluminado. As transformações introduzidas assemelham-se aos efeitos que o terramoto produziu em 1755.
    Foi de tal maneira significativa a ação do Marquês de Pombal que é difícil não haver controvérsias em relação às suas decisões. D. José socorreuse deste homem para modificar o clima cultural do país, nomeadamente a reforma do ensino. Devido ainda à ação do Marquês, terminaram os autos de fé e acabou a perseguição aos cristãos-novos. Mas a sua principal ação foi a expulsão dos jesuítas. Isto é importante sobretudo porque o ensino lhes estava entregue.Confisca os bens da Companhia e tenta influenciar o papa Clemente XIV para que extinga a Companhia. Para isso contribui a sua acusação anti-jesuíta, chamada Dedução Cronológica, na qual pretende justificar que todo o mal que aconteceu ao país foi culpa dos jesuítas e que a única forma de trazer a felicidade ao povo era a sua expuslão. A Companhia foi extinta em 1773 e só foi restaurada em 1814. O Marquês teve assim tempo para fazer as reformas.
    O final do século XVIII foi um período de estabilidade política; até a Igreja começou a ser obediente, temendo represálias. O Marquês chegou  pensar numa remodelação danobreza tradicional
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