Português: Carlos da Maia

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Carlos da Maia

     Carlos da Maia surge no romance a propósito da remodelação do Ramalhete, tendo sido o responsável pela escolha de um arquiteto inglês para executar a obra. Através do processo de caracterização indireta, encontramos aqui os primeiros traços definidores do caráter da personagem: o requinte, a sofisticação, o bom gosto, o diletantismo, o gosto pelo luxo e pelos ambientes sofisticados e elegantes.

     No início do cap. III, somos confrontados com a descrição da educação a que a personagem é sujeita, contrastante com a de seu pai e de Eusebiozinho e que se carateriza pelos seguintes traços:
  • rigor nos princípios, tolerância nas ideias: «O Carlos necessita ter um regime. De madrugada já está na quinta: almoça às sete e janta à uma hora.»; «... tinha sido educado com uma vara de ferro!»; «Não tinha a criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria, às vezes a gear lá fora (...). E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas coisas...»;
  • rigor, método, ordem, disciplina;
  • contacto com a Natureza;
  • exercício físico: ginástica, ar livre, remo, trapézio;
  • aprendizagem de línguas vivas: inglês;
  • aprendizagem de coisas práticas e das ciências experimentais: «... saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come...»; «A instrução (...) É saber factos, noções, coisas úteis, coisas práticas...»;
  • educação agnóstica: «E Vilaça, que tinha crenças religiosas, não gostou de ver Carlos, sem se importar com as graças...»; «... e pediu-lhe que lhe disse o Ato de Contrição. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar!»; «... não soubesse a sua doutrina.»;
  • valorização da criatividade e do juízo crítico: «Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o Reino do Céu...» - esta noção contrasta com a conceção que a avó e o pai de carlos tinham da religião e da forma de agir, isto é, estamos perante o contraste entre a ideia de agir por acreditar que é a forma correta de o fazer e o agir por medo (de um castigo divino, por exemplo);
  • submissão da vontade ao dever;
  • convivência com as crianças da aldeia.
     E assim, na esteira do equilíbrio clássico, se procurava construir uma alma são num corpo são.

     O capítulo IV começa pela informação acerca da iminente formatura de Carlos em Medicina, logo seguida de uma analepse que retrospetiva as circunstâncias do despertar da sua vocação. Essa analepse sugere uma fuga de Eça às diretrizes naturalistas em termos de caraterização de personagens. De facto, com Carlos da Maia «não dispomos (...) de um retrato integral debruçado sobre as suas facetas psicológicas, sociais e morais; do mesmo modo, o narrador não adota (como fez com Pedro) uma atitude de transcendência que lhe permite dissecar exaustivamente e num fragmento concentrado do discurso a influência do meio sobre a personagem, o programa educativo a que é submetido, etc.». Assim, a vocação de Carlos para a Medicina não é explicada pelo narrador em função de uma qualquer causa hereditária ou ambiencial; ela percebe-se quando nos é revelada a sua súbita atração pelas estampas anatómicas descobertas no sótão.
     Observemos, esquematicamente, o conteúdo da analepse:
  • em criança:
  • a descoberta de um rolo antigo de estampas anatómicas;
  • os recortes das mesmas  a sua afixação nas paredes do quarto;
  • o escandalizar das Silveiras com a imagem de um feto;
  • o apoio de Afonso («Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser útil ao seu país...»;
  • em Coimbra, no Liceu, Carlos abandona os compêndios de lógica e retórica e troca-os pela anatomia;
  • em Santa Olávia, faz diagnósticos aos criados doentes;
  • em Coimbra, na Universidade, Carlos revela-se um estudante brioso e entusiasta, embora com tendência para o diletantismo.
     Em Coimbra, já estudante universitário, Carlos mantém o entusiasmo inicial e a atração pela Medicina, pela «vida "a sério", prática e útil» («atraíam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciência.»). No entanto, aos poucos outras ocupações vão-no «distraindo» dos seus deveres enquanto estudante. Leva uma vida de luxo, torna-se leitor de Proudhon, Comte, Spencer (autores que marcaram a Geração de 70), considera o país uma «choldra ignóbil», factos que lhe granjeiam a simpatia dos «mais rígidos revolucionários». Relaciona-se, entretanto, com dândis e filósofos, fidalgotes e revolucionários; faz ginástica científica, esgrima e whist sério. Nos serões que patrocina, lê-se o Figaro, o Times e as revistas de Paris e Londres, toca-se ao piano Chopin e Mozart; «... havia ruidosos e ardentes cavacos» em que amigos de diferentes tendências discutiam Arte, Literatura, Democracia, o Positivismo, o Realismo, Metafísica.
     Revela, pois, Carlos os primeiros traços de diletantismo e dandismo. Repare-se: o interesse pela medicina esmorece («... não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina.»); interessa-se por diferentes formas de arte: publica sonetos no «Instituto» e um artigo sobre o Parténon, tentou a pintura a óleo, «compôs contos arqueológicos», anda a cavalo; a iminência de uma reprovação fá-lo moderar os hábitos de dispersão cultural; vive duas aventuras sentimentais, uma com Hermengarda, a mulher de um empregado do Governo Civil (que abandona por sentir compaixão do marido e do filho), e outra com uma prostituta espanhola, a quem monta casa.



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