Estamos
na presença de uma cantiga de escárnio e maldizer que aborda o conflito
sucessório entre D. Dinis e seu filho, D. Afonso IV, constituída por três sétimas
e uma finda de quatro versos, em cobras singulares. É, além disso, uma cantiga
de mestria (isto é, não tem refrão) e atafinda, em versos decassílabos e com rima
emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCA. As cantigas que
aludem ao assunto mencionado foram produzidas maioritariamente após a morte de
D. Dinis, na corte do seu filho bastardo, D. Pedro Afonso, o conde de Barcelos,
o que significa que constituem dos últimos testemunhos da lírica
galego-portuguesa. Além disso, convém ter sempre presente que os trovadores se
posicionaram apenas de um lado: o do rei-poeta.
O ciclo
a que nos estamos a referir conta com cinco cantigas de autoria de importantes
trovadores, como João de Gaia, Estêvão da Guarda e do próprio conde de
Barcelos. Os visados são pessoas que teriam tirado proveito do conflito e,
dessa forma, conseguido lugar de destaque na corte de D. Afonso IV, como é o
caso de Miguel Vivas, bispo eleito de Viseu, um clérigo provavelmente oriundo
de Lisboa e confessor da rainha D. Isabel de Aragão, tornando-se depois uma
importante figura da corte, a quem já acompanhava enquanto infante. Em 1325,
Miguel Vivas já desempenhava o cargo de clérigo; além disso, foi primeiro vedor
da chancelaria real, ocupando depois o cargo de chanceler, posições que ocupou
entre 1325 e 1338. As suas ligações privilegiadas com o monarca são atestadas
ainda pelo facto de o rei o ter escolhido para padrinho da sua filha, a infanta
Leonor. Paralelamente, foi acumulando um vasto número de canonicatos em várias
dioceses do reino, ascendendo depois ao cargo de bispo de Viseu em 1329 ou
1330, situações que provavelmente nunca se viu confirmada pelo papa, uma vez
que Miguel Vivas surge sempre designado como «eleito» de Viseu. Já antes de
subir a esta cátedra, tinha estado envolvido na questão da sucessão da diocese
do Porto, sendo o candidato preferido por Afonso IV, porém a sua candidatura
acabou por ser preterida pelo papa em favor de D. Vasco Martins em 1327. O
último ato público que dele é conhecido data de 1338, pelo que é possível que tenha
falecido pouco tempo depois. Na composição, Estêvão da Guarda retrata Miguel
Vivas como um bajulador do rei, sem qualidades virtuosas para realmente gozar
da sua privança.
Em
suma, o bispo Miguel Vivas oi confessor da rainha D. Isabel e manteve relações
estreitas com D. Afonso IV, quando este ainda era infante. Esses laços
aprofundaram-se durante os primeiros anos do reinado, tendo o clérigo passado a
ter uma série de privilégios de benefícios. Posteriormente e graças a essa
relação próxima, foi indicado para bispo de Viseu, embora não tenha assumido a
dignidade, pois o Papa João XII sustentava outro candidato, D. Vasco Mariz,
escolhido em 1327. São estes acontecimentos que justificam o tratamento que
Estêvão da Guarda lhe dá nesta cantiga: “eleito de Viseu”. Além disso, o
trovador faz assentar os eu texto na ironia e no duplo sentido entre a privança
de que o bispo gozava junto do rei e o facto de ter sido privado do benefício
(de ser bispo). Note-se, por outro lado, que o trovador não condena a privança
em si, pois ele mesmo ocupou um lugar de prestígio junto de D. Dinis, de quem
dizia ser “vassalo e criado”, uma proximidade que muito o beneficiou, pois
levou-o a ser um dos nobres mais importantes do reino. Após se ter posicionado
a favor do monarca no conflito sucessório, ao assumir o trono, D. Afonso IV
manteve-o como conselheiro para assuntos externos. Assim sendo, o ato de o rei
indicar um privado para uma dignidade de destaque, como uma diocese, não
configurava desvio só por si. A crítica de Estêvão da Guarda incide,
justamente, no caráter de Miguel Vivas que, se não fosse privado do rei, não
teria o «talam» para essa posição.
A
cantiga não apresenta refrão – cantiga de mestria – e é caracterizada pelo
recurso à “atehuda ata a finda”, em que as pausas sintáticas não são as mesmas
das pausas estruturadas pelas estrofes, prolongando a leitura do verso final de
uma estrofe para o primeiro da seguinte (enjambement) até o final da
cantiga. Isto permite ao trovador jogar com a ambiguidade do terno «privado»,
usando-o ora como nome, ora como particípio passado, prevalecendo este último.
Na
primeira estrofe, o trovador expõe a situação: agradece a Deus a «privança»
(confiança, intimidade) com o rei de que Miguel Vivas beneficia. Conhecendo o
seu caráter (“porque eu do vosso talam sei”), deseja que seja privado dessas benesses
e de tudo o mais (“e porque eu do vosso talam [caráter] sei / qual prol
[vantagem, proveito] da vossa privança terrei / rogo eu a Deus que sejades
privado / do [pre]bendo e de quant’ al havedes:”). Repare-se que, através do
recurso à atafinda, a mensagem da primeira estrofe prossegue na segunda, como
se pode constatar pela citação acima feita, que engloba o seu primeiro verso. O
«prebendo» era a renda do bispado. O trovador prossegue com a sua ironia: não
foi a honra pro altos feitos ou a sabedoria do bispo que o alçaram, tampouco a
fidelidade, mas o seu caráter bajulador, exemplificado pelo facto de fazer “sempre
quant’a ‘l-rei prouguer” (v. 9).
Os versos
subsequentes da segunda estrofe prosseguem a sátira dirigida ao bispo de Viseu,
que o rei deseja para seu privado: “pois que vos el por privad’assi quer”. De
seguida e depois de ironizar os altos feitos e a sabedoria de Miguel Vivas (“e
pois que vós altos feitos sabedes” – v. 11), o trovador afirma o seguinte: “e
quant’em sis’e em conselho jaz, / Varom, senhor, pois desto al rei praz” (vv.
12-13). Nestes versos, há uma repetição semântica na sequência “varão / senhor”,
que, se pensada como duplo vocativo, não oferece qualquer acréscimo sintático.
No entanto, se o nome «senhor» for apenas um vocativo, o nome «varão» pode
apontar para uma suposta inocência do rei por confiar na sensatez e nos
conselhos do clérigo.
Na
transição da segunda para a terceira estrofe, voltamos a encontrar a atafinda:
o trovador confia que o Papa o privará da nomeação, quando souber que o rei
confia mais nele do que noutro varão qualquer: “fio per Deus que privado seredes
/ per este Papa, quem duvidaria / que nom tiredes gram prol e gram bem / quand’
el souber que, pelo vosso sem, / el-rei de vós mais doutro varom fia”. Nestes versos,
por outro lado, o trovador enfatiza a falta de bom senso e a imaturidade do rei
ao confiar no bispo. Além disso, a terceira cobla continua a assentar no equívoco,
relativamente ao termo «privado», entre o valor substantivado (“sereis conselheiro”)
e de particípio passado (“sereis despojado”).
O
desfecho da cantiga, na finda, é taxativo: o trovador afirma que o bispo será
privado dos seus benefícios e da sua dignidade, tendo que pagar a “contia”
(quantia pré-estipulada paga aos funcionários nobres). O clímax da cantiga é
atingido, portanto, na finda, voltada para a realização da justiça: o bispo
deve pagar pela sua farsa, uma vez que o seu lugar de «privado» do rei é
resulta unicamente da bajulação e os seus conselhos não são ajuizados, visando
apenas o benefício próprio egoísta. A professora Graça Videira Lopes propõe uma
dupla leitura para a finda, a partir da forma verbal “exalcem”. Assim, a
catedrática afirma que os versos finais poderão significar “quem duvidará que
vo-lo elogiem grandemente” ou “quem duvidará que vos subam o pagamento” (devido
a este cargo, o benefício). Por outro lado, sustenta que Estêvão da Guarda
parece, nesta cantiga, felicitar Miguel Vivas pela sua nomeação para o cargo,
acrescentando que a composição joga com os dois sentidos da palavra «privado»
(nome e particípio passado): se lermos as estrofes encadeadas até à finda, é o
segundo sentido da palavra que sobressai.
Por
outro lado, a cantiga não se limita a denunciar o facto de o clérigo se
beneficiar da sua proximidade com o rei, pois também realça os danos que tal
benefício causam a terceiros. Com efeito, as falhas de caráter do bispo e o
desejo pelo poder prejudicam o reino em si ao revelarem a inocência do rei,
mas, na realidade, também prejudicam o trovador.