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domingo, 2 de dezembro de 2012

Os maias, 'Os Maias' e o fim do mundo

Por Ferreira Fernandes
     DIZ-SE dos tolos que, quando se aponta a Lua, eles olham para o dedo. Os maias tinham a reação inversa. Ótimos astrónomos, enquanto apontavam para o alinhamento dos planetas não viram chegar os espanhóis que deram cabo deles. De que lhes serviu serem uma civilização superior? Pois esses notórios incapazes de preverem o desastre próprio ganharam agora fama por anunciarem o fim dos outros: um antigo calendário maia marcou o fim do mundo para o próximo 21 de dezembro. Tolice acreditada por meio mundo - a Internet pôs-se nervosa, anunciaram-se suicídios - a ponto de, ontem, um cientista da NASA ter de desmentir. O choque de planetas, a tempestade solar e outros apocalipses antes do Natal, tudo aldrabices. 
     Acredito, e aconselho a leitura não do fatídico calendário dos maias, mas de Os Maias. No fim do romance de Eça, os amigos Carlos da Maia e João da Ega dedicam-se a conversa dramática: "Não a vale a pena viver...", diz um. O outro concorda. E ambos chegam à conclusão de a única certeza ser o pó que nos espera. Porquê correr, pois, por alguma coisa?... Aí, Carlos olha para o relógio e vê que estavam atrasados para o jantar no Hotel Bragança. E deitam-se os dois a correr atrás da carruagem que os levará ao "paio com ervilhas"... 
     Assim acaba Os Maias, e é uma mensagem que merece mais Internet do que a outra, dos maias. 
     Leitor, quando lhe apontarem o fim do Mundo, a 21, olhe para o bacalhau e a couve tronchuda, dias depois. 
Diário de Notícias, 1 de dezembro de 2012

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Corrupção na Educação

Coisas (mais ou menos) do «facebook»


"O deus Pã não morreu"

            Antes de iniciar a análise propriamente dita do texto convém esclarecer quem são as entidades mitológicas nele referidas.
            Assim, era o deus dos pastores da região da Arcádia (região central do Peloponeso) e representava o poder e a fecundidade da natureza selvagem, com fortes implicações sexuais. Era representado com orelhas, chifres e pernas de bode. Além disso, como era amante da música, transportava consigo sempre uma flauta. Por sua vez, os Romanos identificaram-no como o deus itálico Fauno. Uma lenda conta que, no reinado do imperador romano Tibério (século I d. C.), o piloto de um navio ouviu uma voz que lhe ordenou que anunciasse a seguinte mensagem: «o Grande Pã está morto». Quando o marinheiro obedeceu, toda a natureza começou a gemer. Frequentemente, é associado à palavra grega “pan”, que significa “tudo”, uma associação errada, no entanto deu origem à ideia de que Pã simbolizava «o Grande Todo», ou seja, o poder universal da vida.
            Por seu turno, Apolo era o deus do sol e da música, irmão gémeo de Artemis, deusa da lua e da caça, filho de Zeus e da ninfa Leto. Por outro lado, Apolo amava a música, tendo sido presenteado com uma lira por parte de Hermes, feita a partir da carapaça de uma tartaruga e de tripas de gado.
            Quanto a Ceres, era, entre os romanos, a deusa das colheiras e do cereal, o equivalente a Deméter entre os gregos.

            O deus Pã simboliza o neoplatonismo para os neoplatónicos e para os cristãos, daí a sua «adoção» por parte de Ricardo Reis, em cuja filosofia existencial – a do paganismo da decadência ‑ se inscreve a ideia da sobrevivência dos deuses pagãos (“O deus Pã não morreu” – v. 1), bem como no programa do neopaganismo (de Fernando Pessoa ele mesmo e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e António Mora).
            O neopaganismo sustentava o reatar da alma grega na arte, na religião e nas instituições políticas, ao considerar que nada, depois dos gregos clássicos, pode igualar a sua civilização. Neste sentido, o cristianismo é visto como um retrocesso, um atraso civilizacional.
            Neste poema, Cristo é apresentado num plano de igualdade com os deuses pagãos referidos. Ele não “matou outros deuses”, é apenas “um deus a mais, / Talvez um que faltava”, o que indicia que é um deus dispensável, pois é “apenas mais um”. Assim, a noção do Cristianismo segundo a qual Cristo seria o único e verdadeiro deus é implicitamente rejeitada, afirmando-se, pelo contrário, que todos os deuses pagãos antigos permanecem. Cristo, de facto, “não matou outros deuses”, é apenas “ Quanto ao ser humano, falta-lhe reconhecer essa permanência dos deuses pagãos.
            A relação entre o ser humano e os deuses carateriza-se pela distância e pela indiferença, dado que estes estão “Cheios de eternidade / E desprezo por nós” (vv- 18 e 19).
            O perfil dos deuses é traçado com clareza: são “claros e calmos” (v. 17), eternos / imortais, regem o mundo (“Trazendo dia e a noite / E as colheitas douradas”), mas não por causa dos seres humanos (“Sem ser para nos dar / O dia e a noite e o trigo”, antes por razões que não estão ao alcance da compreensão humana e alheias à sua vontade (“por outro e divino / Propósito casual” – vv. 24-25).

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"A pequena angústia"

O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses emigrassem...
- Pé de gazela
na lua.
Um desejo adusto fora d'uso.
Um lírio.

Seria livre.
Ilimitado,
como nuvem humilde
quando se dissolve.

O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses regressassem...

A pergunta tenta como osso
debaixo da carne.

                                                           Ruy Cinatti (1969)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

"Sim, sei bem"

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
    Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
    Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
    Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
    Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
    Deixem-me me crer
O que nunca poderei ser.

                    8-7-1931
                    Odes de Ricardo Reis

Linguagem e estilo de Ricardo Reis

  • Aspetos fónicos:
  • composição preferida: a ode horaciana, com estrofes regulares em verso decassilábico, alternado ou não com o hexassílabo;
  • eufonia;
  • verso branco / solto;
  • irregularidade métrica (por vezes);
  • recurso frequente à assonância, à aliteração e à rima interior. 
  • Aspetos morfossintáticos e semânticos:
  • subsmissão da expressão ao conteúdo: a uma ideia perfeita corresponde uma expressão perfeita;
  • sintaxe alatinada:
  • ordem inesperada das palavras; 
  • anteposição do complemento direto ao verbo («As rosas amo...» em lugar da ordem tradicional da língua portuguesa: «Amo as rosas...»);
  • uso de latinismos: "astro", "ledo", "ínfero", "vila", "vólucres", "inscientes", etc.;
  • uso frequente da inversão (hipérbato e eanástrofe) e da elipse;
  • uso frequente do imperativo (de acordo com a feição moralista das odes) ou do conjuntivo com valor de imperativo;
  • uso do gerúndio;
  • perífrases (remetem para um contexto religioso e mitológico grego ou latino);
  • eufemismos (traduzem / suavizam a ideia de morte, que Ricardo Reis, afinal, teme);
  • estilo denso e rigorosamente elaborado, construído, pensado, nos antípodas, por exemplo, de Alberto Caeiro;
  • seleção cuidada de fonemas ou vocábulos sugestivos das ideias que pretende exprimir (a elevação, a nobreza, o classicismo da linguagem).

Temas da poesia de Ricardo Reis

  • Epicurismo:
  • busca da felicidade relativa;
  • moderação dos prazeres / busca de um prazer relativo;
  • fuga ao sofrimento e à dor (aponia); 
  • ataraxia (tranquilidade ou indiferença capaz de evitar a perturbação, a dor e o sofrimento).
  • Estoicismo:
  • aceitação das leis do Destino / Fado, entidade inexorável que oprime deuses e homens;
  • indiferença face às paixões e aos males (moderação).
  • abdicação de lutar;
  • autodisciplina, autodomínio.
  • Paganismo:
  • crença nos deuses;
  • crença na civilização romana;
  • sente-se um "estrangeiro" fora da sua pátria, a Grécia
  • Horácio (horacianismo):
  • carpe diem: fruição do momento presente ("Colhe o dia / Porque és ele");
  • aurea mediocritas: a felicidade possível no sossego do campo (proximidade de Alberto Caeiro);
  • símbolos clássicos do sorriso, do vinho, das flores: tentativa de iludir o sofrimento resultante da consciência aguda da efemeridade da vida, do fluir contínuo do tempo e da fatalidade da morte.
  • Intelectualização das emoções (o oposto de Alberto Caeiro).
  • O culto do Belo como forma de superar a brevidade e a transitoriedade dos bens terrenos e da vida.
  • A intemporalidade das suas preocupações:
  • a angústia humana perante a brevidade da vida e a certeza da morte;
  • a busca de soluções tendentes a limitar o sofrimento que carateriza a vida humana. 
  • Outros temas clássicos:
  • a miséria da condição humana;
  • a efemeridade da vida;
  • a velhice e o medo da morte;
  • a fatalidade da morte;
  • a aceitação calma e serena das coisas;
  • o equilíbrio interior pela busca de um prazer relativo.

Caeiro e as ovelhas


* * * * * * * * * *



     Observe os dois cartunes apresentados.

     Elabore um pequeno texto de apreciação crítica sobre uma das imagens.

     Se selecionar o primeiro, relacione-o com a poética de Alberto Caeiro.

     Se optar pela crítica do segundo, relacione-o com a ode de Ricardo Reis «Vem sentar-te comigo, Lídia...".


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Branca de Neve procura emprego

Por Alberto Gonçalves
     É PROVÁVEL que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre os dispensaram.
     Até agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente rumo ao index dos eurodeputados.
     O index será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn, criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma, corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
     Por sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os "estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a "auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações, escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que confunde a fantasia com o quotidiano.
     Não tenho opinião sobre os modelos imaginários que devem orientar as criancinhas. Em compensação, parecem-me evidentes os modelos palpáveis de que as criancinhas devem ser protegidas a todo o custo - a menos, claro, que os pais lhes desejem um emprego em Bruxelas, a incomodar o próximo para entreter o ócio e realizar uma vocação. 
DN, 25 de novembro de 2012

Linguagem e estilo de Alberto Caeiro

  • Linguagem simples, familiar e objetiva.
  • Pobreza lexical.
  • Verso livre, geralmente longo.
  • Irregularidade / liberdade estrófica e métrica.
  • Despreocupação a nível fónico.
  • Adjetivação pobre e objetiva.
  • Pontuação lógica.
  • Predomínio do presente do indicativo, modo do real.
  • Frases simples.
  • Predomínio da coordenação.
  • Aproximação à prosa.
  • Metáforas e comparações originais, relacionadas com elementos naturais: "Minha alma é como um pastor", "Pensar incomoda como andar à chuva", "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento".
  • Marcas de oralidade.

domingo, 25 de novembro de 2012

"Vem sentar-te comigo, Lídia..."

            No início do poema, o sujeito poético, situado num espaço bucólico, através da apóstrofe presente no primeiro verso (que, juntamente com o recurso ao modo imperativo e ao presente do conjuntivo, remete para a existência de um interlocutor a quem o discurso é dirigido e cuja elaboração desvanece o individualismo de Ricardo Reis, que, assim, procura ultrapassar o negativismo do ortónimo, fechado em si mesmo), convida Lídia a sentar-se consigo e a contemplar o rio e a sua corrente como metáforas da brevidade e transitoriedade da vida e do fluir do tempo (“fitemos o seu curso”, v. 2), numa atitude de observação, passividade e de não intervenção. A vida é, assim, apresentada como uma viagem que flui como um rio e cujo fim é inevitável e inexorável. De facto, esse convite transforma-se, logo de seguida, num exercício intelectual (“aprendamos” – v. 2; “pensemos” – v. 5) – a razão deverá predominar sobre a emoção. Assim, a partir da observação e interação com a Natureza, comandada pela razão (“aprendamos”), ele convida-a a aprender uma lição: tal como o rio, a vida passa e não volta (recorde-se, a este propósito, Heraclito, que afirmou que ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio, símbolo, portanto, da constante mudança do indivíduo e do seu percurso a caminho do fim). Esta é, em suma, a lição de vida que o «eu» pretende transmitir a Lídia.
            Essa constatação da brevidade da vida é aceite de modo sereno e conduz ao desejo de fruir o momento e assumir compromissos. Note-se, a propósito, os parêntesis do verso 4, que funcionam como uma espécie de aparte, uma hipótese transitória: o raciocínio do sujeito poético é, momentaneamente, quebrado pelo impulso amoroso de “entrelaçar as mãos”, expressando o desejo de fruir o momento presente, único bem que nos é dado possuir. Esta atitude é compreensível em quem (re)toma consciência da brevidade da vida, no entanto é um mero instante de “distração”, uma mera hipótese que jamais se concretiza. Porém, rapidamente o sujeito poético conclui pela rejeição de qualquer compromisso com Lídia. Da constatação de que “não estamos de mãos enlaçadas” (v. 3), parte para a possibilidade de “Enlacemos as mãos” (v. 4), que seria uma hipótese possível de relacionamento amoroso, mas que, analisada a situação, se afigura inconsequente. Daí a afirmação do verso 9. Em suma, este enlaçar de mãos (v. 4), a simbolizar o compromisso, o adotar atitudes e decisões, o «fabricar» qualquer coisa que fique, não é, portanto, mais do que uma hipótese, cuja concretização de nada valeria.
            No início da segunda estrofe, o sujeito poético reforça o apelo à racionalidade (“pensemos”). De seguida, o paradoxo “crianças adultas”, em forma de modificador do nome apositivo, destaca a Natureza paradoxal dos amantes que, apesar de possuírem a ingenuidade das “crianças”, aludida na primeira estrofe, são, afinal, adultas, por isso sujeitas ao pensamento, que as obriga a reconhecer a passagem do tempo, a efemeridade da vida, a qual não depende do sujeito, e a morte, representada pela imagem eufemística do “mar muito longe” (v. 7), onde todos os rios (todas as coisas humanas) vão desaguar. O sujeito poético e Lídia têm uma consciência “adulta” de que a passagem do tempo é inexorável e de que a vida é efémera. Por isso, adotam uma postura de rejeição estoica ao desenvolvimento amoroso, mantendo uma ligação pura e sem paixão, como se fossem crianças. De facto, na hierarquia do comando da vida humana, a posição mais alta cabe ao Fado / Destino, entidade a quem até os deuses obedecem, ideia expressa pela comparação dos versos 7 e 8. Recorde-se, a este propósito, a passagem da Ilíada em que Zeus, podendo salvar o seu filho Sarpédon, não o fez, porque sabia ser vontade do Destino que ele morresse.
            Dito de outra forma: porque a vida é fugaz e eles não estão de mãos dadas (não estabeleceram laços, não se comprometeram, nada produziram que dure), talvez fosse oportuno enlaçarem as mãos. Porém, refletindo melhor (possuidores da racionalidade do adulto e, simultaneamente, da ingenuidade das crianças), a fugacidade da vida é tão desconcertante (notar o paralelismo de construção “a vida passa e não acaba” – pleonasmo – e “nada deixa e nunca regressa”) que definitivamente o sujeito poético se decide pela não assunção de qualquer compromisso afetivo.
            A terceira estrofe inicia-se com a afirmação do refrear do impulso amoroso por parte do sujeito poético (“Desenlacemos as mãos” – v. 9) e que se prolonga pelo resto da composição (vv. 17, 19-20 e 21-22), que vai num crescendo de passividade que culmina numa atitude de quase indiferença. Ou seja, em consequência da reflexão que desenvolve sobre a vida, o sujeito poético decide desenlaçar as mãos das de Lídia, por considerar que se trata de um dos “desassossegos grandes” (v. 12), isto é, compromissos ou emoções / sentimentos extremos (“amores” – v. 13; “ódios” – v. 13; “paixões” – v. 13, “invejas” – v. 14 – enumeração gradativa sindética) e as preocupações que lhes são inerentes (“cuidados” – v. 15), que podem impedir que viva “silenciosamente” (v. 11), ou seja, em tranquilidade, sem agitação. Ao evitar esses “desassossegos”, o sujeito poético atinge a ataraxia desejada, pois não vale a pena qualquer esforço, dado que, “quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio” (v. 10). Dito de outra forma, o sujeito poético tem consciência de que o que quer que façamos (ou não façamos) não vai ter qualquer influência na nossa vida que, implacável e inexoravelmente, seguirá o seu curso em direção à morte. Assim, dada a efemeridade da vida, ele justifica o desenlace das mãos com a inutilidade do cansaço que esse gesto implica, isto é, as ligações, os afetos e os compromissos não valem o esforço.
            Esta filosofia de vida é clara e consiste na abdicação voluntária e consciente face aos sentimentos e prazeres da existência. Se o curso desta é irreversível e “passamos como o rio” (comparação ‑ v. 10), “não vale a pena cansarmo-nos” (v. 9) com sentimentos que perturbem essa passagem. Estilisticamente, aquela é sugerida pela repetição da preposição “sem” (vv. 12-13) e da conjunção coordenativa copulativa “nem” (vv. 13-15), que concorrem para intensificar a ideia de recusa, introduzindo a enumeração dos sentimentos e das ações que se rejeitam, em prol da tranquilidade desejada.
            Na quinta estrofe, o sujeito poético «sugere» a Lídia que se amem tranquilamente (v. 17), ou seja, sem os excessos decorrentes do envolvimento físico ou de sentimentos intensos. Note-se como esta atitude de passividade e de quase indiferença é de caráter voluntário (“podíamos / se quiséssemos”), dado que existe a possibilidade de um envolvimento físico e emocional intenso: “trocar beijos e abraços e carícias” (v. 18) – notar a enumeração e o polissíndeto ‑, e está dependente da sua vontade, determinada pela constatação racional da inexorabilidade da vida. Por essa razão, opta por uma existência caracterizada pela ataraxia, traduzida pelos advérbios “tranquilamente” (v. 17) e “sossegadamente” (v. 23). Assim, o sujeito poético e Lídia ficarão sentados, lado a lado, ouvindo e vendo correr o rio, isto é, assistindo à passagem da vida, apenas como mais um elemento natural, como as flores e o rio, enquanto “Pagãos inocentes da decadência” (v. 24), metáfora que aponta para o paganismo de Reis: dois pagãos despreocupados com a passagem do tempo, com o declínio e a degeneração que aquela acarreta (“não cremos em nada” – v. 23).
            Ora, esta decisão do sujeito poético tem como finalidade evitar as sensações extremas e as perturbações que implicam. Por outro lado, trata-se de uma forma de integrar o curso regular e inevitável do mundo (traços epicuristas). Além disso, é evidente a preocupação com a aceitação das forças superiores do universo (os deuses, o fado), através da adoção de um estado de apatia conseguido por meio da recusa das paixões e da imitação da Natureza. Assim, conjugando os princípios epicuristas e estoicos, o sujeito poético atinge o estado que permite não recear a morte, o destino, etc.
            Ao longo das estrofes, a mensagem / a lição moral do sujeito poético assenta no uso de frases de tipo imperativo com os verbos no modo imperativo (“pega”) e no presente do conjuntivo (“Desenlacemos”, “Amemo-nos”) com a utilização de advérbios de modo (“silenciosamente”, “tranquilamente”, “sossegadamente”).
            As duas estrofes finais constituem a conclusão do poema, a justificação da recusa aos fugazes prazeres da vida: é a única forma de evitar o sofrimento causado pela antevisão da morte. A ausência de perturbação e de emoções fortes durante a vida evita o sofrimento quando chegar a morte. No momento inevitável da separação, quando a morte chegar, o sofrimento não será tão penoso. Neste contexto, o tempo verbal utilizado é o futuro (do indicativo e do conjuntivo: “lembrar-te-ás”, “terei”, “for”) que indicam factos posteriores ao momento da enunciação e têm um efeito de antecipação.
            O sujeito poético propõe a Lídia uma relação tranquila, contida, sem envolvimento nem paixão, nem sequer emoção, como única forma de evitar o sofrimento provocado pela separação que a morte de um deles acarreta. Esse medo é tão grande que a morte não é nomeada senão através de eufemismos (vv. 25 e 29).
            Os eufemismos utilizados para referir a morte contribuem para a sua apresentação como algo leve e natural que corresponde ao curso indeclinável da Natureza e da vida. De acordo com os princípios estoicos e epicuristas, a morte não trará sofrimento se a vivência não fizer “sofrer” (v. 30).
            Os seres humanos devem procurar uma existência semelhante à dos elementos naturais. Assim, aceitando-se efémeros, reconhecem-se nas “flores” (v. 21) transitórias e no “rio” (vv. 1, 10, 15 e 20) que segue de forma irreversível o seu curso, tal como os humanos devem aceitar o destino que lhes coube.

sábado, 24 de novembro de 2012

"Cada um cumpre o destino que lhe coube"

            Esta ode refere-se a um tema central da poesia de Ricardo Reis: o Destino.
            De acordo com os dois versos iniciais do poema, cada ser humano cumpre um destino (“cumpre o destino”) que lhe está de antemão reservado (“que lhe cumpre”). O ser humano não cumpre o que deseja, isto é, não alcança o que deseja, nem deseja o que cumpre, visto que é o Destino que decide por ele, que se limita a cumprir a sua (do Destino) vontade. Atente-se no jogo de palavras em torno do vocábulo homónimo “cumpre”. A primeira forma verbal tem o significado de “executar”, “desempenhar”, “completar”, enquanto a segunda significa “caber”, “pertencer”.
            Nos versos 3 e 4, há a destacar a presença do quiasmo, que destaca o facto de o destino que o ser humano “cumpre” nem sempre ser o que ambiciona, daí resultando uma natural insatisfação. O «eu» defende, pois, a inerte aceitação do Destino, dado que nada podemos contra ele – o que devemos fazer é aceitar as leias da vida em vez de tentar modifica-la.
            Por sua vez, a comparação dos versos 5 e 6 entre o ser humano e “as pedras na orla dos canteiros” acentua a imobilidade e a impossibilidade de resistir e contrariar o destino. Essa comparação é explicada (“que” – conjunção subordinativa causal) nos dois versos seguintes: a “Sorte” / o Destino coloca onde quer ou onde deve cada um de nós, sem que haja (tal como sucede com as pedras) a possibilidade de mudar de posição.
            Nos últimos quatro versos, o sujeito poético evidencia a sua resignação ao aceitar o poder do Destino. Assim, cada ser humano deve desistir de ter “melhor conhecimento” do que lhe calhou em sorte na vida e deve limitar-se a consentir o que lhe coube. A procura de desejos frívolos é encarada como a principal barreira para se poder atingir o conhecimento: “Não tenhamos melhor conhecimento / Do que nos coube que de que nos coube”.
            Os dois versos finais (duas frases declarativas) confirmam a abdicação do sujeito poético e a sua anuência voluntária ao Destino, pois este é inexorável, na permite e é impossível resistir-lhe.

            Note-se como, ao longo do poema, a pessoa verbal evolui da terceira do singular (“cumpre”) para a primeira do plural, a partir do verso 6, um «nós» que reflete sobre o destino comum e a condição análoga de todos os humanos sujeitos à ditadura do Destino.

            O sujeito poético defende, em suma, uma filosofia de vida que assenta na aceitação voluntária e tranquila do Destino, sem o tentar combater ou fugir-lhe, pois todos esses esforços serão inúteis. Deste modo, o «eu» revela o seu conformismo face ao Destino, numa atitude estoica de nada desejar e de aceitar com dignidade o que lhe é imposto. De facto, de acordo com o Estoicismo, o homem não deve lutar contra o Destino, antes cumpri-lo sem o questionar ou se lhe opor.
            A conceção de vida segundo Reis é marcada por uma profunda simplicidade, por uma intensa serenidade na aceitação da relatividade das coisas.
            Contrariamente a Alberto Caeiro, Ricardo Reis, prosseguindo na esteira do Estoicismo, “prefere” a prevalência da cognição face às emoções.
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