Português

quinta-feira, 4 de março de 2021

Análise de "Amor é um fogo que arde sem se ver"

 
Tema: o amor.
 

Assunto: o amor é definido como um sentimento contraditório, mas, ainda assim, procurado pelos corações humanos.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (11 versos iniciais) – Onze tentativas de definir o amor, assentes no paralelismo, na anáfora (“é”) e na frase declarativa afirmativa.
 
verso 1:
Amor é um fogo que arde
um sentimento intenso
(a intensidade da paixão)

 

sem se ver
mas invisível
  
verso 2:
é ferida que dói
causa sofrimento / dor

 

e não se sente
mas insensível
(é impercetível aos sentidos)
 
verso 3:
é um contentamento
alegria, satisfação, felicidade

 

descontente
e infelicidade
 
verso 4:
é dor que desatina
dor intensa, que perturba ou faz perder a razão

 

sem doer
mas insensível, não se sente
[o desatino aplaca a dor, por conter em si o impulso vital, ou por iludir a consciência]
 
verso 5:
É um não querer mais

 

e que bem querer
anulação dos desejos daquele que ama
 
Se o amor não se concretizar, a insatisfação mantém-se, perpetuando o sentimento.
Em contrapartida, a concretização do desejo pode levar à diminuição ou até à extinção do sentimento amoroso.
 
verso 6:
é um andar solitário
isolamento e solidão

 

entre a gente
no meio da gente
 
Aquele que ama anda de tal modo absorvido pelos seus pensamentos que, mesmo quando se encontra no meio da gente, fica concentrado nas suas vivências interiores, como se estivesse só.
 
verso 7:
é nunca contentar-se
insatisfação constante

 

de contente
e satisfação / contentamento
 
Aquele que ama sente-se contente por amar, mas, por mais contente que se sinta, mostra-se insatisfeito, pois aspira sempre a aumentar a sua satisfação / o seu contentamento.
 
verso 8:
é um cuidar que ganha
ilusão (vitória)

 

em se perder
e frustração (derrota)
 
O verso remete para as vantagens e desvantagens do amor. O proveito liga-se à posse do objeto amado, enquanto que a perda traduz o falhanço dessa posse ou os danos que daí resultam ao nível moral, psicológico e religioso.
 
verso 9:
É querer estar preso
dependência/sujeição/privação de liberdade

 

por vontade
voluntária
 
verso 10:
é servir a quem vence

 

o vencedor

é serviço amoroso à pessoa amada

 
O vencedor serve, paradoxalmente, quem ele próprio venceu. Esta metáfora [do amor como servidão] exprime a submissão absoluta ao objeto de amor. Reenvia para a poesia occitânica e para o conceito de amor como serviço, que encontramos, entre nós, nas cantigas de amor.
 
verso 11:
é ter com quem nos mata
morrer de amor

 

lealdade
e ser / continuar leal/fiel
 
Amar alguém implica fidelidade absoluta, apesar de o amor não ser correspondido pelo outro.
Este tópico da morte de amor encontra-se também na cantiga de amor. Aquele que ama sente lealdade pelo objeto do seu amor, apesar de este o fazer sofrer.

Conclusões:
1.ª) o amor é um sentimento indefinível (cf. uso do artigo indefinido);
2.ª) o amor é um sentimento contraditório (cf. antíteses, oximoros/paradoxos, metáforas e bipartição dos versos).
 
2.ª parte (2.º terceto) – Chave de ouro: o amoré um sentimento contraditório, mas procurado pelos corações humanos.
 
▪ O sujeito poético interroga-se como pode o ser humano aceitar de bom grado o amor, se sabe que experimentará as contradições e tensões violentas desse sentimento.
 
▪ Apesar de produzir efeitos contrários, o amor continua a ser perseguido, procurado, pelos seres humanos.
 
Conjunção coordenativa adversativa «mas»: marca a oposição entre o caráter contraditório do amor e o facto de, mesmo assim, ser procurado pelos seres humanos.
 
Interrogação retórica:
. traduz a perplexidade do «eu» face ao facto de o Homem procurar e se entregar ao amor, apesar de este ser um sentimento contraditório;
. apresenta a contradição como a verdadeira característica do amor.
 
   

terça-feira, 2 de março de 2021

Análise de "Se Helena apartar"


 
Assunto: o sujeito lírico descreve a beleza dos olhos de Helena, cuja magia e beldade é comprovada pelo efeito que provocam: tornam belos todos os elementos da Natureza, cativam os corações e a alma e o próprio amor lhes presta vassalagem.
 
 
Tema: o poder transformador de Helena / a beleza da mulher.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (mote) – Introdução: se Helena afastar os seus olhos do campo, nascerão abrolhos – a beleza da Natureza depende dos olhos de Helena.
 
2.ª parte (vv. 4-12) – Os efeitos / o poder dos olhos de Helena na Natureza:
▪ a verdura dos campos;
▪ acalma os ventos;
▪ transforma espinhos em flores;
▪ faz as ferras floridas;
▪ faz límpidas as fontes (isto é, purifica-as).
*     Os campos são verdes, porque Helena está presente e os seus olhos também possuem essa cor.
*     Os gados beneficiam indiretamente da cor dos olhos de Helena, pois o seu alimento é a verdura dos campos, que existe graças àquela.
*     Os versos 4 a 7 apresentam um discurso de 2.ª pessoa (“pasceis”, “sabei”), enquanto os restantes contêm um discurso de 3.ª pessoa. Além disso, no verso 5 está presente uma apóstrofe aos gados, que apascenta nos campos (eles são verdes devido à presença de Helena e à cor dos seus olhos), notando-se como a ação da mulher é muito abrangente, dado que têm influência direta na verdura e indireta nos animais que dela dependem.
*     Além disso, tornam a beleza bela e trazem-lhe paz e sossego.
 
3.ª parte (vv. 13-21) – Os efeitos dos olhos de Helena nas pessoas:
▪ trazem as vidas suspendidas – ou seja, causam admiração e fascínio;
▪ prendem os corações – isto é, seduzem (fazem com que os homens se apaixonem);
▪ uma alma pende cada pestana – sentido equivalente ao verso 18.
*     Helena é uma figura graciosa, inatingível, espiritualizada, divinizada (“Com graça inumana”), pertencente a outro mundo. O amor que inspira é um amor espiritualizado, inefável.
 
4.ª parte (vv. 22-24) – Os efeitos dos olhos de Helena no Amor (Cupido), que se ajoelha, rendido à magia do olhar:
▪ rendição (v. 22);
▪ êxtase e espanto / surpresa (v. 24).
*     Helena é tão bela que o próprio Amor (Cupido) tem para com ela uma atitude de vassalagem, ajoelhando-se na sua frente.
 
Uma outra possível divisão do texto passará por considerar que é constituído por duas partes: a primeira, situada entre os versos 1 e 13 e constituída pelos efeitos dos olhos de Helena na Natureza, e a segunda, entre os versos 14 e 24, compreendendo os efeitos nos seres humanos.
 
 
Caracterização dos olhos de Helena
▪ verdes: “A verdura […] deveis / aos olhos de Helena”;
▪ serenos: “Os ventos serena”;
▪ belos: “faz flores d’abrolhos”; “Faz serras floridas”;
▪ claros: “Faz claras as fontes”;
▪ luminosos: “na luz dos seus olhos”;
▪ meigos e sedutores: “Os corações prende”;
▪ graciosos e divinos: “Com graça inumana”
▪ amorosos: “Amor se lhe rende”.
 
 
Retrato da Natureza
 
• A imagem que nos é apresentada no poema corresponde ao locus amoenus clássico, isto é, uma paisagem idealizada, uma espécie de paraíso terrestre, constituído por elementos como o campo verdejante, um arvoredo vasto, flores coloridas e fontes claras (águas límpidas e transparentes).
 
• Esta natureza mágica propicia o amor, o encantamento sensorial e espiritual do Homem.
 
 
Relação entre Helena e a Natureza
 
• Os olhos / a beleza de Helena influencia(m) grandemente a Natureza: os seus olhos verdes e belos tornam a terra verde e florida, que depois serve de alimento para o gado; a paz do seu olhar serena os ventos, transforma os espinhos em flores e clareia a água das fontes.
 
• Por outro lado, estas características prendem os corações, isto é, fazem o Amor render-se, numa espécie de vassalagem amorosa (personificação do Amor – vv. 22 a 24).
 
• Em suma, a beleza da Natureza fica a dever-se à beleza de Helena, que tem o poder de transformar o que se situa em seu redor.
 
 
Análise formal
 
Classificação: vilancete constituído por um mote de 3 versos (terceto) e três voltas de 7 versos (sétimas).
 
Métrica: versos de 5 sílabas métricas – redondilha menor (medida velha).
 
Rima:
» esquema rimático: abb / cddccbb
» o 1.º verso do mote é branco
» rima emparelhada e interpolada
» aguda (vv. 1, 5 e 6) e grave (os restantes)
» consoante (todo o poema)
» pobre (“olhos” e “abrolhos”) e rica (“amena” e “Helena”)
» imperfeita (“giolhos” e “olhos”)
 
 
Recursos expressivos
 
Reiteração do nome «olhos» (5 vezes): enfatiza a importância, os efeitos e o seu poder transformador.
 
Adjetivos: realçam a beleza de Helena, dos seus olhos e respetivo poder.
 
Verbos:
Presente do indicativo: torna mais viva a presença dos olhos de Helena.
Futuro do indicativo: exprime os efeitos desastrosos do eventual afastamento dos olhos de Helena (v. 13).
 
Sinédoque: “seus olhos” (v. 2) – o sujeito poético atribui à mulher as maiores qualidades físicas e morais, referindo-se-lhe através de uma das partes do corpo mais importantes e expressivas – os olhos (são o espelho da alma).
 
Apóstrofe (v. 5): identifica o interlocutor do sujeito poético, que inconscientemente beneficia dos efeitos transformadores dos olhos de Helena, para lhe dar conta do seu extraordinário poder, capazes de colorir a verdura.
 
Hipérbato (vv. 8 a 10): o «eu» dá primazia à ação e ao objeto onde esta recaiu ao inverter a ordem natural dos elementos da frase, relegando para o fim o sujeito (“O ar de seus olhos”).
 
Anáfora (vv. 9, 11-12): enfatiza o poder transformador dos olhos de Helena sobre a Natureza.
 
Enumeração + Assíndeto (vv. 8 a 12): o sujeito poético enumera os elementos da Natureza afetados e transformados pelos olhos de Helena.
 
Interrogação retórica: salienta o poder dos olhos de Helena, que transita da Natureza para as vidas humanas; leva-nos a refletir sobre os efeitos dos olhos nos seres humanos (se eles conseguem ter todo aquele poder na Natureza, o que conseguirão fazer à vida das pessoas?).
 
Comparação (vv. 15-17): destaca a quantidade de vidas que Helena traz apaixonadas pela luz dos seus olhos; deste modo, reforça-se o efeito provocado por eles, equiparando um molho de ervas ao conjunto de vidas presas pelo fascínio de Helena.
 
Personificação (v. 22): traduz a atitude de vassalagem do Amor face aos olhos de Helena.
 
Sinédoque + Metáfora + Hipérbole (“De cada pestana / Uma alma lhe pende” – vv. 20-21): reforço do poder de Helena através da referência às pestanas enquanto agentes de sedução e magia (as pessoas ficam suspensas da beleza do seu olhar). As pestanas representam os olhos e estes simbolizam a própria Helena.
 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

É possível atacar um avião através do wifi

Análise de "Ulisses"

    Análise do poema aqui: Ulisses.

Classificação de Mensagem

          A Mensagem não se presta a uma classificação unívoca; pelo contrário, é possível detectar na obra marcas de diferentes tipologias.

          Desde logo, é possível referenciá-la como uma obra lírica (sobretudo na terceira parte):
               » é um livro de poemas;
               » a forma é fragmentária (ao contrário, por exemplo, de Os Lusíadas);
               » o sujeito lírico evidencia uma atitude introspectiva;
               » o sujeito lírico exprime os seus sentimentos, sonhos, desejos, crenças
                  (relativamente ao presente, ou ao futuro da Pátria);
               » há uma postura de interiorização e de contemplação da alma humana;
               » o simbolismo;
               » a inquietação, a ânsia, o constante interrogar-se («'Screvo meu livro à beira-
                  mágoa»);
               » o presente de sofrimento e mágoa;
               » o tom menor;
               » a visão subjectiva do enunciador.

          Contudo, especialmente na segunda parte, a obra é também de carácter épico:
               » os poemas, juntos, formam um todo integrado;
               » os heróis portugueses do passado possuem um valor simbólico e mitológico;
               » há um apelo à glorificação lusíada no século XX e demais;
               » o heroísmo:
                    . os heróis (os marinheiros que percorreram os mares e se imortalizaram)
                      agem pelo instinto, sem terem a visão do sentido e alcance dos seus actos

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Título: Mensagem

     A explicação em torno do título dado por Pessoa à sua única obra em língua portuguesa publicada em vida não é consensual, daí que não seja de estranhar que existam diversas teorias acerca do tema.

. Título inicial: Portugal:
  • foi alterado, a conselho do seu amigo Cunha Dias;
  • razão: o nome da pátria estava muito associado a textos publicitários, que promoviam, por exemplo, marcas de sapatos e marcas de hotéis;
  • exemplo de um slogan da época: «Portugalize os seus pés».

. 1.ª explicação:
  • o título é constituído por 8 letras:
  • 8 é o número do equilíbrio cósmico que simboliza a palavra criadora;
  • 8 é o símbolo da ressurreição, da mudança e do anúncio de um novo tempo.

. 2.ª explicação:
  • mensagem = comunicação, missiva;
  • o vocábulo pressupõe a existência de um emissor e de um recetor, desde logo sugeridos na epígrafe da obra - «Benedictus Dominus Deus Noster qui dedit nobis Signum» («Bendito Deus Nosso Senhor que nos deu o Sinal»);
  • emissor da mensagem: Deus;
  • recetor: o Poeta, que, pelo seu génio, foi eleito por Deus, para dar conhecimento da mensagem à tribo de que será guia e profeta, transformando-se também, em emissor.

. 3.ª explicação:
  • o título Mensagem teria tido origem na afirmação feita por Anquises, personagem da Eneida, quando explica a Eneias, descido aos Infernos, o sistema do Universo - Mens agitat molem = a mente move a matéria;
  • Mensagem será, assim, um anagrama da afirmação mens + ag(itat mol) + em;
  • o objetivo da obra seria mover as «moles» (a matéria) humanas através da poesia;
  • simbologia da descida aos Infernos:
  • poder associado às ideias de decadência e subsequente renascimento, sendo esse o processo cíclico apontado como condição necessária ao ressurgimento da pátria num estado ideal;
  • aceitando a morte do passado, o poder fecundador do mito trará um futuro perfeito.

. 4.ª explicação:
  • o título poderá ainda estar ligado à expressão «ens gemma», isto é, ente em gema, ovo;
  • tal significaria Portugal em essência, gema;
  • associação à ideia de encantamento, de magia: para os alquimistas, o ovo filosófico é o embrião da vida espiritual, do qual eclodirá a sabedoria;
  • no ovo, concentram-se todas as possibilidades de criar, recriar, renovar e ressurgir. Ele é a prova e o recetáculo de todas as transmutações e metamorfoses.

. 5.ª explicação:
  • a palavra mensagem pode ser «recortada» e construir as expressões mea gens ou gens mea, isto é, «minha gente» ou «gente minha», remetendo para a raça de heróis nomeados ao longo da obra;
  • outra hipótese remete para mensa gemmarum, isto é, o altar ou mesa onde repousam as gemas portuguesas - Portugal é onde se procede ao sacrifício necessário à realização do sagrado;
  • Portugal seria, assim, o altar onde os sacrifícios em nome do divino foram realizados.

Enquadramento cultural de Mensagem

● Em ruptura com a tradição, os artistas optam por uma abordagem mais irónica e provocatória;

● Na Literatura, os protagonistas passam de heróis a seres vulgares;

● Enaltecido pelas correntes literárias anteriores, o indivíduo perde a sua identidade e unidade, criando «outros eus» (fragmentação do «eu»);

● Maior liberdade na linguagem, atribuindo sentidos metafóricos novos às palavras;

● Reinventam-se as formas, usam-se técnicas novas e experimentam-se caminhos desconhecidos;

● Movimentos:
          ► Modernismo: diversidade e pluralidade, caminho pessoal de questionação e reinvenção
               dos valores;
          ► Futurismo: movimento, velocidade, energia explosiva e máquinas como demonstração
               da força do indivíduo;
          ► Cubismo: fraccionamento da realidade;
          ► Abstraccionismo: recusa de representação do real;
          ► Surrealismo: apelo à imaginação, ao sonho e à loucura; escrita automática.

Circunstâncias de produção de Mensagem

● Influenciado pela poética saudosista e pelos ideais lusitanistas do poeta Teixeira de Pascoaes, que intuíra e profetizara uma futura civilização lusitana, Fernando Pessoa publica uma série de artigos na revista A Águia (em Abril de 1912), em que exprime o seu entusiasmo e o forte sentimento de patriotismo, o desejo de regeneração nacional e visiona um movimento poético (e um consequente movimento social e civilizacional) grandioso e exaltante.

● A Mensagem terá tido origem no projecto de um livro cujo título seria Gládio, do qual resultou apenas um poema com esse nome, integrado na obra, surgido em 1913.

● A ideia de um livro de poemas de inspiração nacional terá surgido, pela primeira vez, por volta de 1917-1918, na época em que governou Sidónio Pais.

● O intervalo de elaboração dos poemas vai de 21 de Julho de 1913 a 26 de Março de 1934.

● Em 1922, foi publicado um conjunto de poemas, sob o título de «Mar Português», que acabaria por constituir a segunda parte de Mensagem.

● O trabalho de produção dos poemas é acompanhado de um trabalho exaustivo de leitura, de investigação e de estudo de temática patriótica presente em vários textos da sua autoria.

● A estrutura definitiva da Mensagem é concebida entre Janeiro e Março de 1934, tendo alguns poemas sido reescritos.

● A obra é publicada (a única em língua portuguesa em vida do poeta), propositadamente, em 1 de Dezembro de 1934, um ano após Salazar ter assumido a chefia do governo do país, instaurando o Estado Novo. A data foi escolhida em razão da carga simbólica que encerra, dado tratar-se do dia da Restauração. De facto, Pessoa pretendia, com este gesto, dar nota das intenções patrióticas que o dominavam.

● A publicação da Mensagem suscitou algumas reservas no poeta, «acusado» de contribuir, com ela, para reforçar a ideologia fascista do Estado Novo.

● Registe-se, a título de curiosidade, que Fernando Pessoa colaborou com o regime salazarista entre 1933 e 1934, no entanto esta situação foi sol de pouca dura, visto que o poeta, que não suportava a ausência de liberdade e a opressão, se tornou opositor do regime.

● A obra foi proposta para o Prémio Antero de Quental, que se destinava a distinguir "poesia nacionalista", mas tal acabou por não acontecer por não possuir o número de páginas estipulado (100). António Ferro, amigo de Pessoa dos tempos da revista Orpheu e responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional, improvisou um prémio de segunda categoria para distinguir Mensagem.

● A obra integra-se na corrente modernista, transmitindo uma visão épico-lírica do destino português, nela se salientando um conjunto vasto de símbolos e de mitos, como, por exemplo, o Sebastianismo, o Quinto Império, as Idades, etc.

● De acordo com o próprio Pessoa (Páginas Íntimas), a obra é um livro «abundantemente embebido em simbolismo templário e rosacruciano», ao mesmo tempo marcado por tonalidades épicas e messiânicas.

● Na Mensagem, Pessoa assume-se como o cantor do fim do império português (Camões foi o cantor do seu início e auge). De facto, a Pátria, no tempo do poeta, encontrava-se num estado de decadência e desagregação, circunstância que faz despertar nela a ânsia de renovação e regeneração que procura plasmar na sua obra. Ele acreditava que, através dos seus textos, poderia despertar as consciências e fazê-las acreditar e desejar a grandeza de outrora. Por isso, as duas partes iniciais de Mensagem assinalam o passado histórico e grandioso de Portugal, enquanto a terceira descreve o presente decadente e anuncia a vinda do Encoberto, representado na figura mítica de D. Sebastião, o pilar do Quinto Império.

● O projecto de Fernando Pessoa relaciona-se, em parte, com o ideal da Renascença Portuguesa, antevendo o «ressurgimento assombroso de Portugal, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido, em que a alma portuguesa encerraria a alma recém-nascida da futura civilização europeia, que será uma civilização lusitana.»

● Pessoa preconizava para Portugal a construção de um novo império, já não de carácter material, como o fora o dos descobrimentos, mas de natureza espiritual, capaz de elevar os Portugueses ao lugar de destaque que outrora tinham ocupado a nível mundial. Seria, assim, um império da língua e da cultura portuguesas, um império do modo de ser português, do culto da liberdade e da solidariedade, da capacidade de adaptação às situações mais imprevistas.

● Em várias ocasiões, o poeta designou esse seu desígnio de «nova Índia», uma «Índia que não há» ("E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal anterremedo, realizar-se-á..." - in A Nova Poesia Portuguesa) e que seria projectada / cantada por um Super-Poeta, um Super-Camões (provavelmente, o próprio Pessoa), que cantará a genialidade do seu povo e a espalhará por todo o mundo. No fundo, considera-se investido no cargo de anunciador do tal novo império (na sequência dos textos do Padre António Vieira), o Português.

● O conteúdo enaltecedor da maioria dos poemas contrasta com o contexto em que foram produzidos:
          » acompanham alguns dos factos principais da História de Portugal;
          » retratam as suas figuras centrais;
          » recuperam os seus símbolos, as suas lendas e o essencial da sua mitologia;
          » criam o destino de uma super-nação mítica que faltaria cumprir.

● Intencionalidade comunicativa da obra:
          » regenerar o orgulho português;
          » cantar o passado histórico glorioso de Portugal de uma forma emblemática e simbólica,
             transformando-a num mito, a partir do qual seja possível reinventar o futuro;
          » anunciar o renascer de uma pátria grandiosa, um novo império civilizacional, uma
             Super-Nação mítica.

Enquadramento histórico de Mensagem

● Início do século XX;

● Período de ressaca da questão do Mapa Cor-de-Rosa e do «Ultimatum» inglês, que provocou um sentimento de humilhação no povo português;

● Período de avanços tecnológicos e científicos, contrastando com as más condições de trabalho dos operários;

● I Guerra Mundial (1914-1918);

● Revolução russa (1917);

● Necessidade de repensar a sociedade e o próprio Homem:
          ► Nietzsche põe em causa os fundamentos de então e sugere uma reavaliação dos
               valores para viver a vida na sua plenitude;
          ► Freud demonstra a complexidade do Homem e o seu lado inconsciente;
          ► Einstein põe em causa grande parte do conhecimento científico.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Análise de "Aquela cativa"


Assunto: o sujeito lírico exalta a beleza exótica de Bárbara, uma escrava cativa que o cativara, apresentando um retrato mais psicológico do que físico que se desenvolve mediante vários contrastes: cativa/cativadora; pretidão/brancura da neve; Bárbara/delicada.
 
 
Tema: exaltação da beleza feminina de Bárbara, através do seu retrato.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (v. 1-vv. 4) – Apresentação de Bárbara.
 
2.ª parte (vv. 5-28) – Retrato físico de Bárbara.
 
3.ª parte (vv. 29-36) – Retrato psicológico de Bárbara.
 
4.ª parte (vv. 37-40) – Retoma da apresentação de Bárbara, mais próxima emocionalmente.
 
 
Retrato de Bárbara

 

 
Retrato do sujeito poético
 
            O sujeito poético está apaixonado por Bárbara, como se pode constatar ao longo da composição poética, pela hiperbolização das qualidades da mulher amada: ela é a mais virtuosa, a mais bela, é única/não tem par. De igual modo, os versos iniciais deixam claro o amor do «eu» pela figura feminina: “Aquela cativa / que me tem cativo”. Este trocadilho explica-se da seguinte forma: Bárbara é «cativa» porque é escrava; ele é «cativo» porque se encontra aprisionado pelo seu amor. Apesar de, socialmente, o «eu» ser superior, em termos amorosos, ela subjuga-o.
            Por outro lado, a mulher exerce efeitos no «eu»: amor (vv. 1-4); fascínio (vv. 5-8); tranquilidade (v. 14); refreio da dor (vv. 33-36). A metáfora do verso 34 («tormenta») sugere que Bárbara lhe dá felicidade, faz com que seja feliz e com que se esqueça de penas e sofrimentos.
 
 
NOTAS
 
1. Constata-se, a partir do retrato elaborado, que Camões não é escravo de nenhuma "moda" literária e que a sua vivência afetiva irrompe, de forma exuberante e doce, na sua produção poética. Fisicamente, apresenta-nos uma mulher caracterizada pela singularidade, pela estranheza e pelo exotismo.
 
2. Tal como noutras poemas de Camões (por exemplo, “Pastora da serra”), a mulher exerce uma grande influência no ambiente circundante: “tão doce a figura, que a neve lhe jura / que trocara a cor”, “Presença serena / que a tormenta amansa”.
 
3. Em síntese, podemos afirmar que da imagem de Bárbara se desprende um quadro de serenidade e doçura, conseguido através da sua caracterização física e psicológica:

® a suavidade da sua beleza (vv. 5-8);

® a singularidade do rosto e o sossego do olhar (vv. 13-16);

® a sua doce figura que suscita na neve o desejo de mudar de cor (vv. 25-28);

® a mansidão, a alegria e a sensatez (vv. 29-30);

® a serenidade da sua presença bonançosa que refreia a dor e tranquiliza o sujeito.

 
4. Trata-se de um amor insólito que torna o sujeito poético cativo de uma mulher cativa por uma lei social.
 
5. O retrato, que trabalha características físicas como os olhos, o rosto, os cabelos, a figura, e psicológicas, evidencia a beleza da mulher através de várias analogias: é a rosa, são as flores e as estrelas.
 
6. Os quatro versos iniciais e os quatro últimos são praticamente idênticos, evidenciando a construção em círculo do poema e o carácter obsessivo da relação amorosa que se estabelece entre o sujeito poético e Bárbara.
 
 
Tipo de mulher retratada no poema
 
            O retrato físico de Bárbara é escasso: bela como a rosa, como as flores, como as estrelas; "rosto singular" (exótico), "olhos e cabelos pretos". Mais acentuado, embora também impreciso, é o retrato moral/espiritual: "olhos sossegados" (notar como os olhos a caracterizam física e moralmente) e "cansados mas não de matar" (ou seja, não se tratada de uma mulher fatal), "uma graça viva" (notar o determinante indefinido a sugerir a subtileza dessa graça), "senhora" (em contraste com cativa), "doce figura, leda mansidão que o siso acompanha", "estranha, / Mas bárbara não" (ou seja, exótica, mas não de costumes bárbaros – notar o uso do adjetivo bárbara, jogando com o nome próprio Bárbara), "presença serena", "cativa" que aqui tem sobretudo valor de adjetivo, o que se nota no trocadilho: "Esta é a cativa" – "que me tem cativo").

            Esta figura de mulher oriental, exótica, indefinida, quase inefável, surge-nos assim num retrato em que todo o sortilégio vem de qualidades espirituais: "doce figura", "presença serena", "leda mansidão". Note-se que estas qualidades sugerem um porte senhorial, em oposição à sua condição de escrava ("parece estranha, mas bárbara não").

            Não obstante o retrato de Bárbara, marcadamente espiritual, se revista de qualidades que se enquadram dentro do tipo da mulher petrarquista, no entanto, a cor dos olhos e dos cabelos (preta) está longe de pertencer ao tipo da mulher petrarquista – Laura. Na verdade, contra as convenções do petrarquismo, que via na mulher loira a formosura ideal, Camões canta uma beleza oriental, indígena, atribuindo-lhe, todavia, um porte senhorial, o que a distancia menos da mulher cantada por Petrarca (Laura).

            Bárbara aparece como mulher clássica, perfeita, inacessível, mulher deusa: "Ua graça viva / que neles lhes mora, / mera ser senhora / de que é cativa".

 
 
Linguagem e recursos estilísticos

 
            Relativamente ao nível fónico, estamos na presença de um poema constituído por cinco oitavas em versos de redondilha menor, com rima interpolada e emparelhada (ABBACDDC), consoante ("cativo" / "vivo"), grave ("cativa" / "viva") e aguda ("singular" / "matar"), rica ("cativa" / "viva") e pobre ("molhos" / "olhos"). O ritmo é ligeiro, próprio da redondilha menor. Há vários casos de transporte, como, por exemplo, do verso 1 para o 2, do 3 para o 4, do 5 para o 6, etc. Refira-se também a aliteração em v (“cativa”, “cativo”, “vivo” e “viva”), que intensifica a ideia de que a vida do sujeito poético depende da mulher (“cativa”) por quem se apaixonou.
 
            Quanto aos aspetos morfossintáticos, o poeta usa o trocadilho e os jogos de palavras (cativa / cativo e vivo / viva, na 1.ª e na última estrofes) para salientar a atração exercida por Bárbara sobre o sujeito poético e, por outro lado, para sugerir que Bárbara é, socialmente, uma escrava de um senhor que, por sua vez, é cativo/escravo de amor por ela.

            A adjetivação caracterizante do rosto ("rosto singular") e dos olhos ("olhos sossegados, pretos e cansados") apresenta Bárbara como uma mulher exótica, de olhos moderadamente românticos, mas sem serem fatais ("... mas não de matar"). A adjetivação em geral realça as características físicas e psicológicas de Bárbara: os seus traços psicológicos são típicos da mulher petrarquista, mas fisicamente afasta-se desse modelo.

            O retrato psicológico é também conseguido pela enumeração de nomes abstratos.

            O determinante indefinido "ua" realça a graça indefinível e misteriosa desta mulher, graça essa vincada pela forma verbal mora, de aspeto durativo. A mudança do determinante demonstrativos aquela (v. 1) para esta (v. 37) traduz uma ideia de aproximação sentimental entre o sujeito poético e a mulher amada.

            O aumentativo Pretidão exprime a intensidade da cor e, simultaneamente, intensifica o afeto que liga o sujeito à escrava.

 
            Ao nível semântico, são vários os recursos que exaltam a beleza de Bárbara. É o caso da comparação: o sujeito poético compara a mulher com a Natureza (rosa, flores, estrelas), ou seja, a sua beleza supera a dos elementos naturais (hipérbole). O paradoxo "senhora de quem é cativa" salienta que, através da sedução, Bárbara se tornou senhora / dona do seu senhor, ideia confirmada no trocadilho: "Esta é a cativa / Que me tem cativo".

            A antítese (versos 19 e 20) entre a posição de dependência (cativa) e a superioridade na relação amorosa – senhora  ¹  cativa – aponta para a relação feudal da cantiga de amor. Por outro lado, destaca o facto de, sendo escrava, se comportar como uma senhora. Outras antíteses se encontram no poema para realçar a beleza de Bárbara: a beleza dos cabelos pretos suplanta a dos louros; a sua pretidão é mais bela que a brancura da neve; parece estranha (= exótica) mas não bárbara (= não civilizada, selvagem – trocadilho entre este adjetivo bárbara e o nome próprio Bárbara); a sua presença serena acalma a tormenta e o sofrimento (pena) do sujeito.

            Outras figuras de estilo que realçam a beleza singular da mulher são a personificação ("que a neve lhe jura / Que trocara a cor"); as metáforas ("Eu nunca vi rosa"; "Nem no campo flores / Nem no céu estrelas"; "Presença serena / Que a tormenta amansa"; "tão doce a figura") e a hipérbole ("que a neve lhe jura / Que trocara a cor"; "Presença serena / Que a tormenta amansa").

            Referência por último para as construções negativas: "Eu nunca vi rosa / Nem no campo flores, / Nem no céu estrelas".

 
 
Influências
 
Petrarca:

-» idealização da mulher amada, valorizando a sua beleza espiritual, psicológico- moral, e exprimindo o seu fascínio;

-» as características psicológicas e morais da mulher.

 
Vivência pessoal: apresentação de um retrato físico de uma mulher exótica, oriental.
 
Cantiga de amor:

- atitude de vassalagem amorosa do sujeito face à mulher;

- o amor platónico;

- a imagem da mulher ideal, perfeita e divinizada.

 
 
Desenvolvimento: endecha ® composição poética de fundo melancólico, constituída por quadras ou oitavas, utilizando versos de 5 ou 6 sílabas, proveniente do Cancioneiro Geral.
 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Análise do poema "Aniversário"

          Poema lido em aula mais por recreação do que por razões de leccionação...
          Nas duas estrofes iniciais, o sujeito poético caracteriza o seu passado da infância como um tempo feliz, de alegria partilhada pela família e de inocência e despreocupação. De facto, nesse período dourado que foi a infância, simbolizada pelo seu aniversário («No tempo em que festejavam o dia dos meus anos»), ele era feliz, inocente ("a saúde de não perceber coisa nenhuma" - v. 6) e inconsciente ("não ter as esperanças que os outros tinham por mim" - v. 8), era admirado pelos que o rodeavam ("De ser inteligente para entre a família" - v. 7) e que depositavam na sua pessoa grandes esperanças (v. 8). Era, ainda, amado ("O que fui de amarem-me..." - v. 14) e, no dia do seu aniversário, era especialmente bem tratado pela família, que se reunia para o celebrar (vv. 32 a 34). Em suma, as razões dessa felicidade passam pelo facto de se encontrar rodeado de toda a família, de conviver com rotinas que lhe davam segurança e certezas e de todos estarem alegres. De notar que o tempo verbal predominante nestas estrofes é o pretérito imperfeito do modo indicativo ("festejavam", "era", "tinha", etc.), que remete para um tempo passado duradouro - a infância.

          A terceira estrofe levanta a questão: o que foi o sujeito poético? E a resposta não se faz esperar: foi aquilo que ele mesmo supunha ser e foi amado (vv. 11 a 14). O verso 5 desta estrofe revela-nos um «eu» aflito e espantado: "O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui..." (v. 15). Ou seja, na infância era feliz, mas não sabia que o era; só agora, no presente, em que já não possui a inocência e a inconsciência desse tempo, sabe que foi (feliz). Neste passo, já não é o pretério imperfeito que domina, mas o pretérito perfeito, que revela uma época passada concluída.

          Na quarta estrofe, «saltamos» para o presente, tempo em que a felicidade foi substituída pela dor ("e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas" - v. 21). Mais: presentemente, o «eu» sente-se abandonado, tal como sucedeu à casa da sua infância, que foi vendida e surge abandonada, cheia de humidade nas paredes, ideias transmitidas pela comparação do verso 19 e pelas metáforas que se lhe seguem. A metáfora do verso 24 traduz a frieza que caracteriza o sujeito poético na actualidade, o tempo que já passou e não regressa. Em síntese, o presente é um tempo de dor, de abandono, de ausência, de solidão, de perda, de não retorno.

          Perante a constatação do seu presente amargo e doloroso, na 5.ª estrofe o sujeito exprime um desejo: o de regressar à infância ("Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez" - v. 27), de a recuperar, ou seja, de recuperar a alegria e a felicidade então experimentadas, de forma ansiosa e voraz ("Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!" - v. 30 - realce para a comparação e a metáfora). Porém, esse desejo é impossível de concretizar.

          Esse desejo de regressar é tão forte que, na estrofe seguinte, a memória que o sujeito poético tem do passado acaba por se sobrepor ao presente (a expressão "Vejo tudo outra vez com uma nitidez..." - v. 31 - traduz, exactamente, essa presentificação do passado da infância). E ele (re)vê os objectos, as pessoas e as circunstâncias que o representam e à felicidade: a mesa posta, os objectos do aparador, a família, a sua centralidade nesse tempo ("e tudo era por minha causa" - v. 34).

          No entanto, a partir do verso 36 o «eu» retoma o seu presente rogando ao coração (apóstrofe e metonímia de si próprio) que pare, que deixe de pensar. É o retorno da dor de pensar que tanto atormentara o ortónimo, a dor de ser inconsciente e incapaz de sentir ("Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça." - vv. 36-37). Ou seja, ele toma consciência de que é impossível recuperar a infância, que se encontra irremediavelmente perdida, e de apenas lhe resta o presente de abandono, solidão e vazio. O pensamento põe, assim, fim ao desejo de regressar à infância, sonho que viveu por instantes mas logo foi interrompido pela sua racionalidade. Daí a tripla invocação à figura de Deus, plena de dramatismo e desespero, ao constatar essa impossibilidade de retorno: "Hoje já não faço anos." (v. 39).
          Qual será, então, o seu futuro? O seu futuro será a velhice ("Serei velho quando o for." - v. 42). Até lá, restam-lhe o tédio e a abulia traduzidos pelas formas verbais "duro" e "somam-se-me", que destacam a forma como o «eu» desistiu de viver, limitando-se a a existir, vendo os dias passar. Por tudo isto, de facto, já não faz qualquer sentido festejar o seu aniversário. E a penúltima estrofe encerra com nova metáfora ("Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!..." - v. 44) que confirma que o desejo de recuperar o tempo da infância ou de a presentificar / trazer para o presente é impossível de concretizar. Por outro lado, como tantas vezes nos acontece na vida, o sujeito poético só toma consciência do valor do que perdeu quando já é tarde demais: "Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. / Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida."  - vv. 9-10; "... o que só hoje seu que fui..." - v. 15. É, afinal, um sentimento de impotência, de raiva incontida que brota nesse instante em que toma consciência da perda definitiva.

          A última estrofe do poema - um monóstico exclamativo - coloca-nos perante um sujeito poético marcado pela nostalgia, pela saudade e pela tristeza, em forma de lamento pela perda. Por outro lado, é possível identificar uma circularidade no poema, que abre e finaliza com versos muito semelhantes, que marca o desejo de reviver o passado.

Alguma curiosidades sobre aviação e aviões

O episódio do avião da Germanwings

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