É a ideia de «olhar com olhos livres» que vamos encontrar nesta obra, não só ao nível do assunto, de caráter quotidiano, mas também no uso de palavras simples; as palavras eruditas têm um uso ridículo.
Esta convivência do bacharelismo é que vai dar a ideia de herói «sem caráter», o que não significa mau caráter; «sem caráter» tem o sentido de incaracterístico: não é índio, europeu ou negro, não é bacharel nem iletrado, mas a confluência de tudo isto.
Tudo começa no nome: Macunaíma não é um nome propriamente brasileiro, mas sul-americano.
Nesta obra, já não se nota a influência futurista, como nos textos de Oswald de Andrade: foi escrita em 1928, quando já tinham corrido seis anos após a realização da Semana de Arte Moderna. Já tinha decorrido também, em 1926, o Encontro Regionalista do Recife, que pretendia afirmar a brasilidade.
Mário de Andrade escreve este texto como uma espécie de rapsódia, uma mistura de vários elementos, o que vem reforçar a ideia de herói sem caráter; é uma rapsódia de várias lendas brasileiras ou não.
Na base da composição do romance está o fragmento, que se nota em dois níveis: ao nível temático e ao nível da descontinuidade narrativa. Em Macunaíma, não há uma sequência na ação, embora haja um fio condutor: a busca da Muiraquitã. O herói varia de espaço com incrível facilidade; ora quer uma coisa, ora quer outra; ora luta, ora deixa de lutar; ora "brinca", ora sente preguiça, etc. Isto ajuda a conceber Macunaíma igualmente como ser fragmentário: ora é corajoso, ora é covarde; ora é trabalhador, ora preguiçoso. Não tem um caráter definido, nem a nível moral, nem a nível físico (nasce preto, torna-se branco, mas tem características de índio).
Em suma, é um herói incaracterístico e neste aspeto vamos encontrar um lado muito nacional e muito universal.
Algumas características universais de Macunaíma são as seguintes:
a) Tal como Galaaz, Macunaíma revela uma grande capacidade de deslocação rápida. É a característica do maravilhoso universal que se encontra também nas lendas (ex.: "Gato das Botas").
b) Outra característica de Macunaíma, que é comum às narrativas de cavalaria, é a reversibilidade, capacidade de transformação.
c) Outra característica partilhada por Galaaz e Macunaíma é a excecionalidade, a sobre-humanidade.
d) O anacronismo é outra característica, também da lenda: não se subscreve a um tempo.
e) Outro aspeto que caracteriza Macunaíma é o facto de ser um herói do povo, ser o ídolo das massas e não de uma elite (universalidade).
O romance também tem características sul-americanas:
a) O nome: Macunaíma.
b) Certas lendas.
A obra manifesta ainda dados de brasilidade:
a) O caráter de miscelânea da obra faz-se sentir no próprio aspeto físico do herói: nasce preto, torna-se branco e tem características de índio.
b) É raquítico, situação típica de fome, tão abundante no Brasil na época.
c) Miscigenação cultural e religiosa: a religião de Macunaíma é uma religião de fachada, feita por imitação. Aqui faz-se uma crítica não só à literatura, mas à própria maneira de ser brasileira, que imita as coisas sem as interiorizar.
d) É típico do brasileiro viver ao sabor do acaso, a sua falta de persistência.
e) A luxúria: Macunaíma vive para "brincar".
f) Caracterização típica do brasileiro: Macunaíma, por exemplo, quer trabalhar mas não sozinho, não tem persistência.
g) Individualismo: é típico do brasileiro fazer o que quer sem pensar nas consequências sociais. Nota-se a falta de espírito coletivo.
h) Macunaíma não se preocupa com os outros e faz o que lhe apetece, mesmo no momento mais inoportuno.
Apesar de ser um livro «muito brasileiro», contém uma caricatura, uma crítica à maneira de ser brasileira. Não analisa o brasileiro do ponto de vista europeu, mas brasileiro. A obra contém uma forte crítica ao falso brilho: as personagens, quando se cansam, transformam-se em estrelas e o brilho alcançado é falso, alcançado sem esforço. É uma censura aos estilos anteriores, uma crítica ao artista ornamental (ex.: parnasiano); uma censura aos exageros sexuais e à linguagem balofa).
Macunaíma nasce "no fundo do mato virgem", o que faz supor que era índio; mas, pelo contrário, era "preto retinto". Podia ser filho de índio, mas ter saído preto: caráter mestiço de Macunaíma.
Ele é caracterizado como herói lendário (nasceu num momento de silêncio); é dotado de excecionalidade ("Já na meninice fez coisas de sarapantar"), mas também de uma grande preguiça, que vai caracterizar o povo brasileiro.
No romance, temos um nítido dado do Modernismo brasileiro: o herói não é o índio como em Alencar, nem o negro como em Castro Alves, nem o branco, mas o herói mestiço. Tempos, por isso, uma linguagem igualmente mestiça: termos de origem tupi não para enfeitar, mas para afirmar a brasilidade; convivência do tupi com o português ("dandava para ganhar vintém"). Além de preguiçoso, Macunaíma gostava muito de "brincar".
O facto de o herói respeitar os velhos e frequentar as danças religiosas da tribo caracterizam-no como índio. À dança vão-se juntando outros aspetos que corroboram o facto de ele gostar do ornamental. Ele gosta do brilho inútil que critica nas "cartas pra icamiabas". Ele é o símbolo do brasileiro na sua complexidade paradoxal. As suas contradições são resultado da mestiçagem.
Até aos seis anos, Macunaíma não falou; depois passou a falar de repente e por um facto excecional. Outro tópico do Modernismo é o uso de uma linguagem do dia a dia, onde convivem o português literário com o popular ou vulgar. Está dentro daquilo que o Manifesto Pau Brasil chama "convivência de todos os erros".
A natureza em Macunaíma não é idealizada como em Iracema, mas também participa dos sentimentos do herói como a jandaia. É uma natureza brejeira, que gosta de brincadeira. Há apenas a constatação de uma beleza natural.
A nível linguístico, notamos um certo conservadorismo, mais comum no português do Brasil que no português de Portugal (ex.: "avoando").
Desde pequeno, Macunaíma é visto como luxurioso, como tendo a capacidade de se transformar. Este facto vai repetir-se algumas vezes ao longo do capítulo, mas a repetição dos factos faz parte da estruturação lendária de Macunaíma; a repetição tem uma função fática na lenda.
Temos um outro tipo de transformação em relação aos pássaros, que se transformam em pedra com o berreiro do herói.
No capítulo II, temos o aproveitamento de várias lendas indígenas.
Convém ainda referir o facto de ele matar a mãe e nada lhe acontecer (lenda americana), indício da falta de padrão, dado da brasilidade, o que não quer dizer falta de moral. Macunaíma vai ter um padrão de branco, pois aprecia as coisas da civilização, o que mostra uma colagem de elementos da selva e elementos da civilização.
A transformação não é apenas apanágio de Macunaíma, mas no fim acontece com todas as personagens da história, ele é o "herói da nossa gente". Isto está bem patente na cena da lagoa, onde a personagem fica branca, ao contrário dos irmãos.
Há uma tentativa de procurar um herói índio e nisto existe uma espécie de aceitação do olhar do branco sobre o negro, que sempre valorizou o índio. O padre António Vieira pedia aos negros que trabalhassem, pois os índios eram muito fraquinhos.
A "Carta pras Icamiabas" é um elemento importante do romance. Se toda a obra realiza as propostas da Semana de Arte Moderna, valorizando o que há de brasileiro em termos temáticos e linguísticos, esta carta pode considerar-se uma espécie de antimanifesto; uma manifesto do que não se quer que aconteça. Toda a carta é uma grande paródia, não só da linguagem parnasiana, mas de toda a literatura anterior.
Ao contrário de toda a obra, onde temos um discurso na 3.ª pessoa, aqui é Macunaíma que tem voz. O narrador do romance usa sempre uma linguagem moderna, em que convivem todos os erros; Macunaíma, que é o protótipo do herói brasileiro, vai usar uma linguagem que critica no resto do romance.
Logo no início, "As mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas", critica o caráter de imitação do brasileiro, porque, ao invés de olhar para as icamiabas como icamiabas que são, as vê como as amazonas do mito clássico, marca claramente parnasiana. Usa a ironia para desmascarar a realidade brasileira.
Macunaíma critica ainda abertamente as reflexões filosóficas de fim de século, quando fala da muiraquitã, palavra de origem indígena e que os sábios discutem por causa da grafia. O absurdo está em discutir a grafia de uma palavra que não se destinava a ser grafada. Tudo o que Macunaíma faz é colocar a ridículo a situação urbana, numa constante oposição entre floresta e escola.
Ao usar expressões latinas como "sub tegmine faci", tece mais uma crítica ao Parnasianismo e, neste caso, a Bilac, que tem um poema em torno desta expressão. A correspondente brasileira é "ficar à sombra da bananeira". Macunaíma usa o brilho inútil da linguagem parnasiana.
Ao dizer "Assim a palavra miraquitã, que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador..." mostra que já está imbuído de elementos da civilização. O Frei Luís de Sousa aqui referido não é a personagem da peça de Garrett, mas a personalidade verdadeiramente existente, um classicista do século XVI. Aqui é apontado como exemplo da linguagem clássica. Rui Barbosa foi não só um defensor da pátria, mas também um sábio que falava todas as línguas, como diz a lenda. Era um clássico da língua portuguesa, um cultor do português, que segue os padrões de Portugal e não do português importado, onde convivem "todos os erros", como querem os modernistas. É o símbolo do conservadorismo de valores culturais e nacionais. O seu conservadorismo está bem patente na crítica à citação, exemplo do brilho inútil.
Ao falar de Freud, brinca com o saber de fim de século das descobertas psicanalistas. Mas será que está a aludir ao cientificismo do fim de século ou por aqui passa uma alusão já presente no Manifesto Pau Brasil em relação aos estilos de época anteriores? No Manifesto, afirma-se que quadro que não tivesse carneiro com lã virgem não prestava, uma clara crítica ao Realismo/Naturalismo, estilos vigentes na prosa, quando na poesia tínhamos o Parnasianismo.
Por outro lado, tece uma crítica feroz à ancestralidade, pretendida nobre, das famílias brasileiras, à semelhança do que fizera Gregório de Matos em relação aos Caramurus da Baía. Aqui, Macunaíma critica os Cavalcantis de Pernambuco, que advogam ser descendentes de italianos (florentinos).
Em vez de muiraquitã, usa agora uma palavra clássica, "velocino roubado", a que se referem a Medeia e os Argonautas. Toda a paródia se estrutura na linguagem clássica. Usa expressões clássicas para criticar não só o Parnasianismo, mas toda a importação de poesia que foi feita no Brasil até ao Modernismo. A paródia resulta ainda do uso da segunda pessoa do plural, que no Brasil é algo absurdo, bem como do uso da inversão ("Imperator vosso").
A "Carta pras Icamiabas" mostra Macunaíma como um ser mestiço, biológica e culturalmente. É a junção de um comportamento civilizado com um selvagem.
Na parte XVII, "Ursa Maior", Macunaíma, agora cansado e doente, vive sozinho, só acompanhado pelos papagaios, que se transformavam em periquitos para irem roubar o milho aos ingleses.
Temos ainda uma postura de Macunaíma, que é uma postura típica do brasileiro: gosto pelo brilho inútil, como comportamento importado (pelo Parnasianismo), mas também assumido por ele. Até ao Modernismo, toda a literatura brasileira fora de importação: começou no Barroco e foi até ao Parnasianismo. O grande símbolo do brilho inútil será a última transformação de Macunaíma, que, não tendo conseguido os seus intentos, se transforma em estrela.
Este capítulo tem ainda outra recusa do que é importado: troca-se o saber do cientista alemão pelo saber popular. A ideia do cientista dizer que a Ursa Maior tem relação com o saci mostra o engano da investigação de quem é de fora. Mas o facto de se referir a Ursa Maior, que tem uma configuração que lembra o Brasil, mostra que Macunaíma é o símbolo do brasileiro.
Além da junção de elementos da civilização com elementos da selva ("com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revolver relógio numa constelação"), que mostra o perfil de Macunaíma, temos também a recuperação de lendas nacionais com uso de uma linguagem popular. Macunaíma aponta para muitas ideias do Manifesto Pau Brasil: "Bárbaro e nosso"; "contribuição de todos os erros".
Como elementos modernistas temos:
👉 crítica à importação: ninguém mais conhece as lendas pátrias;
👉 recurso ao lendário nacional, aos elementos da selva, à linguagem universal.
O caráter de inverosimilhança do romance tem um objetivo: não é dar-lhe um tom mítico, porque o mito é algo que não aceita discussão, mas um tom mitológico, porque gira em torno de lendas. Só é um mito na medida em que explica as lendas, mas afasta-se dele por causa da crítica ao brasileiro e à importação.
Macunaíma é um herói doente, que vive rodeado de saúva; é o símbolo que usa a feitiçaria, que vive rodeado, mas não pensa nela. É um herói que tanto usa as coisas da civilização, como as renega. As atitudes paradoxais da personagem têm, no romance, um sentido crítico.
O romance, embora difícil de entender, insere-se perfeitamente no ideário do Modernismo; embora pareça desestruturado, tem uma estrutura lógica interna: impossibilidade de ver o Brasil com olhos de fora.