Português: A moralidade do conto "A Aia"

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A moralidade do conto "A Aia"


 
O conto exemplifica a eterna luta entre o Bem e o Mal. A aia, a rainha e a população do reino, por exemplo, representam o Bem: a aia é leal, sente ternura pelo príncipe e comporta-se de forma admirável; a rainha tem amor pelo escravozinho, sente-se “desventurosa” por o reino estar em perigo e “ditosa” pela salvação do filho; o reino tinha “casais e aldeias felizes” e a população era “fiel” e recompensava quem praticava boas ações. Por seu turno, o bastardo e a sua «horda» representam o Mal: o irmão do rei é caracterizado como “bastardo cruel”, “homem depravado e bravio”, “um homem de rapina”, que, com a sua horda, executa a matança.

 
Por outro lado, Eça pretendeu criticar a sociedade do seu tempo, o século XIX, nomeadamente a escravidão e a inferioridade do negro. Apesar de o herói ser uma mulher, escrava e negra, essa ascensão da aia só vem acentuar as diferenças sociais.

 
Eça tem em mira o pensamento dogmático e conservador que estipula a soberania do rei sobre o súbdito, do nobre sobre o plebeu, do rico sobre o pobre; em suma, do senhor sobre o servo que, ao reconhecer essa suposta soberania, é impelido ao sacrifício extremo.

 
Alegoricamente, o tio representa as fissuras da ordem colonialista. Deste modo, Portugal, na sua dimensão intercontinental, apresenta-se como serva possuidora de um filho de pele escura que é capaz de sacrificar em defesa do “status quo”, particularmente das suas relações com a Inglaterra.

 
O conto condena a ambição desmesurada e exalta a fé, a lealdade e a fidelidade, socorrendo-se de um tempo passado, longínquo, mas que porta consigo uma certa autenticidade, na esteira das narrativas tradicionais, como a fábula e a lenda, que são portadoras de uma verdade que ratifica valores coletivos. Ao retomar essa tradição narrativa de base oral, Eça, através da figura da aia, apresenta ao leitor valores como a lealdade, a fidelidade e a fé. Disseminados pelo poder e, uma vez assimilados pelos dominados, esses valores perpetuam a dominação.

 
Publicado em 1893, o conto surge pouco depois do Ultimatum inglês, que colocou Portugal numa situação de submissão e humilhação face à Inglaterra, nomeadamente no que diz respeito à posse das colónias africanas de Chire e das regiões habitadas pelos Macalocos e os Machonas, sob a ameaça de rompimento diplomático (que implicaria perdas económicas incalculáveis) e a invasão da esquadra britânica em Gibraltar. Assim, Portugal passaria da condição de poderoso colonizador com posição de destaque no cenário europeu desde o século XVI, à posição de nação serva e subjugada ao poderio inglês. Tal episódio representa a decadência gradativa do país. O facto de a ação se localizar na Índia, território que Portugal sempre quis atingir, remete para o poderio do império marítimo português, que teve como uma das suas principais conquistas a rota para as Índias em 1492, e tal poderio sucumbia às mãos das imposições inglesas. Assim, Eça pretenderia, com este conto, abordar simbolicamente a situação histórica vivida pro Portugal naquela época.

 
Numa leitura alegórica, a morte do rei – além de ecoar, por similitude – o desaparecimento de D. Sebastião – parece aludir à perda dos ideais colonialistas nostalgicamente evocados através da referência à longínqua Índia, com todos os seus tesouros: “pedrarias, galas e céus sumptuosos”.


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