As mãos da noite postas sobre a
mesa : uma palma
As mãos da noite postas sobre a
mesa : uma palma
oblíqua à espera da surda cabeça
da manhã:
– a outra escura como se abrem
as folhas do chá.
Uma recordação e a sua névoa; um
rosto indeciso
entre o sono e o sonho, entre o
corpo do brilho
e a cintilação da noite : as figuras quebradas.
A ondulação é mais pressentida
que avistada. Pode
ser apenas a circulação do
sangue no animal ereto,
a tremulante auréola dos fetos
arbóreos. Ou
a luz que sobe da mesa onde as
mãos esperam, ou
do chão sobre que dançamos a
dança. Tomo
irrepetível a curva infinita de
uma linha, onde
O teu corpo não cessa de ter
nascido. Não cessa
Este poema
de Manuel Gusmão abre com uma imagem das mãos da noite – personificada – postas
sobre a mesa, indiciando uma atmosfera de silêncio, espera, contemplação. O que
simbolizará a peça de mobiliário? Um local de espera? De encontro? De espera?
Uma das palmas é ou está oblíqua, isto é, inclinada desviada, sugerindo uma
atitude de espera, enquanto a outra é escura, como as folhas de chá que se
abrem na água quente. A comparação que aqui é feita indicia uma atitude de
mistério, de profundidade e revelação, a partir da alusão à noite e à
escuridão. Por outro lado, associa a mão a um movimento ou abertura subtil (“como
se abrem as folhas do chá”), que remete para uma revelação gradual que se vai
operando. Recuando ao verso anterior, a mão cuja palma é oblíqua está à espera
da “surda cabeça da manhã”, ou seja, à espera do nascer do sol, que sucede sem
se ouvir. O amanhecer surge silenciosamente.
Na
segunda estrofe, o sujeito poético alude à memória, que está envolta em «névoa»,
isto é, estamos perante uma memória que não é clara, que é vaga ou distante. O “rosto
indeciso” representa a indefinição “entre o sono e o sonho”, entre o corpo do
brilho e a cintilação da noite, o que pode constituir uma imagem poética que
aponta para uma fronteira entre a vigilância e a sonolência.
O
terceiro terceto apresenta-nos uma ondulação apresentada como algo pressentido,
não necessariamente visto, isto é, trata-se de um movimento suave e ritmado que
é mais sentido do que visto, mais intuído do que percebido. O «eu» poético
coloca em questão se essa ondulação pode ser apenas a circulação do sangue no
animal ereto, isto é, no ser humano. Pode referir-se também à “tremulante
auréola dos fetos arbóreos”, quer dizer, a luz que se reflete nas folhas dos
samambaias, plantas antigas e resistentes que simbolizam a vida e a renovação.
Pode ainda ser “a luz que sobe da mesa onde as mãos esperam”, ou seja, a
claridade que se eleva da mesa onde as mãos descansam, a claridade que brota do
local onde a noite está presente. A referência ao “chão sobre que dançamos a
dança” (pleonasmo) aponta para uma ligação à terra e para o caráter terreno e ritualístico
da vida, uma expressão artística – a dança –, uma celebração da vida. A dança
desde sempre constitui uma forma ritualizada de celebração com múltiplos
significados, desde ritos de agradecimento ou de celebração dos deuses até
formas de sedução do outro. O recurso à conjunção coordenativa disjuntiva «ou»
indicia a multiplicidade de interpretações possíveis.
Os dois
últimos versos oferecem diferentes possibilidades de interpretação. A forma
verbal «tomo» remete para uma escolha: ele toma irrepetível a curva infinita de
uma linha, na qual o “teu corpo não cessa de ter nascido”, isto é, o corpo do
«tu» (a pessoa amada? a vida?) está em constante renovação e transformação.
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