Português: Análise do poema "As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma", de Manuel Gusmão

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Análise do poema "As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma", de Manuel Gusmão


 
As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma


As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma
oblíqua à espera da surda cabeça da manhã:
– a outra escura como se abrem as folhas do chá.

 
Uma recordação e a sua névoa; um rosto indeciso
entre o sono e o sonho, entre o corpo do brilho
e a cintilação da noite :  as figuras quebradas.

 
A ondulação é mais pressentida que avistada. Pode
ser apenas a circulação do sangue no animal ereto,
a tremulante auréola dos fetos arbóreos. Ou

 
a luz que sobe da mesa onde as mãos esperam, ou
do chão sobre que dançamos a dança. Tomo
irrepetível a curva infinita de uma linha, onde


O teu corpo não cessa de ter nascido. Não cessa


    Este poema de Manuel Gusmão abre com uma imagem das mãos da noite – personificada – postas sobre a mesa, indiciando uma atmosfera de silêncio, espera, contemplação. O que simbolizará a peça de mobiliário? Um local de espera? De encontro? De espera? Uma das palmas é ou está oblíqua, isto é, inclinada desviada, sugerindo uma atitude de espera, enquanto a outra é escura, como as folhas de chá que se abrem na água quente. A comparação que aqui é feita indicia uma atitude de mistério, de profundidade e revelação, a partir da alusão à noite e à escuridão. Por outro lado, associa a mão a um movimento ou abertura subtil (“como se abrem as folhas do chá”), que remete para uma revelação gradual que se vai operando. Recuando ao verso anterior, a mão cuja palma é oblíqua está à espera da “surda cabeça da manhã”, ou seja, à espera do nascer do sol, que sucede sem se ouvir. O amanhecer surge silenciosamente.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético alude à memória, que está envolta em «névoa», isto é, estamos perante uma memória que não é clara, que é vaga ou distante. O “rosto indeciso” representa a indefinição “entre o sono e o sonho”, entre o corpo do brilho e a cintilação da noite, o que pode constituir uma imagem poética que aponta para uma fronteira entre a vigilância e a sonolência.
    O terceiro terceto apresenta-nos uma ondulação apresentada como algo pressentido, não necessariamente visto, isto é, trata-se de um movimento suave e ritmado que é mais sentido do que visto, mais intuído do que percebido. O «eu» poético coloca em questão se essa ondulação pode ser apenas a circulação do sangue no animal ereto, isto é, no ser humano. Pode referir-se também à “tremulante auréola dos fetos arbóreos”, quer dizer, a luz que se reflete nas folhas dos samambaias, plantas antigas e resistentes que simbolizam a vida e a renovação. Pode ainda ser “a luz que sobe da mesa onde as mãos esperam”, ou seja, a claridade que se eleva da mesa onde as mãos descansam, a claridade que brota do local onde a noite está presente. A referência ao “chão sobre que dançamos a dança” (pleonasmo) aponta para uma ligação à terra e para o caráter terreno e ritualístico da vida, uma expressão artística – a dança –, uma celebração da vida. A dança desde sempre constitui uma forma ritualizada de celebração com múltiplos significados, desde ritos de agradecimento ou de celebração dos deuses até formas de sedução do outro. O recurso à conjunção coordenativa disjuntiva «ou» indicia a multiplicidade de interpretações possíveis.
    Os dois últimos versos oferecem diferentes possibilidades de interpretação. A forma verbal «tomo» remete para uma escolha: ele toma irrepetível a curva infinita de uma linha, na qual o “teu corpo não cessa de ter nascido”, isto é, o corpo do «tu» (a pessoa amada? a vida?) está em constante renovação e transformação.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...