Português: 12/01/2025 - 01/01/2026

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Na aula (LVII): Veneza é uma mulher

     Sophia escreveu O Cavaleiro da Dinamarca e colocou Veneza no caminho do protagonista.

     Na aula de Português, fala-se dessa passagem. O professor pergunta sobre a cidade. Um par de alunos sabe o que é e onde se situa. Beleza!

     Eis, porém, que a Ana Clara solta em voz audível do outro lado da avenida:

     - Veneza é uma cidade? Ah, eu pensei que era uma mulher...

     Adenda: Os alunos já tinham lido um excerto que reza(va) o seguinte: "Veneza, construída à beira do mar Adriático sobre pequenas ilhas e sobre estacas, era nesse tempo uma das cidades mais poderosas do mundo."

Análise do poema "Ofício", de Gastão Cruz

 Ofício
 
Ofício

 
Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

 
Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

 
Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

 
    Este poema, da autoria de Gastão da Cruz, poeta, crítico literário, escritor, encenador e tradutor português, nascido em 1941, em Faro, e falecido em 2022, em Lisboa, aborda a questão da criação poética.

    O título – “Ofício” – remete para a ideia de trabalho, profissão, rotina. Deste modo, escrever poesia é apresentado no texto como um trabalho, um ofício, e não uma mera atividade criativa. Por outro lado, trata-se de um ato ligado ao viver, ao sentir e à procura de sentido entre corpo e alma. O «eu» poético não perceciona a escrita como «simples» passatempo, mas antes como um “ofício vital”, que exige sacrifício e entrega. Ou seja, o título valoriza a poesia como tarefa de vida, como luta constante entre expressão e introspeção, entre matéria e espírito.

    O primeiro dos três tercetos alude aos poemas que o sujeito lírico não escreveu, justificando o facto com uma necessidade que era mais premente: espiritualizar o corpo, dando-lhe “uma espécie de alma”, o que aponta para a ideia de que possuir essa alma é mais importante do que aquilo que a poesia lhe pode proporcionar. Neste sentido, esta é apresentada como insuficiente, pois não pode dar ao corpo do poeta aquilo que o seu corpo necessita: uma alma mais visceral, mais viva, “aquela espécie de alma / que não pôde a poesia nunca dar-lhe”. A repetição do verso 1 sugere precisamente a tentativa de justificar a ausência der criação poética – ele estava ocupado com algo mais importante, mais essencial.

    O segundo terceto, ao contrário mas em paralelo com o segundo, refere-se aos poemas que o sujeito poético escreveu e apresenta, igualmente, a justificação para tal. De facto, nesta estrofge, há uma inversão lógica da anterior: desta vez, ele escreve, ele cria poesia porque necessita de algo. Igualmente em contraste com a estrofe precedente, agora é o corpo quem necessita de alma, e o «eu» procura-a através da poesia: “Os poemas que fiz só os fiz porque estava / pedindo ao corpo aquela espécie de alma / que somente a poesia pode dar-lhe”. A alma, que antes o corpo recebia fora da poesia, agora é procurada dentro dela. Assim, a poesia aparece como o único meio de transmitir ao corpo uma certa essência espiritual ou transcendente.

    A partir das duas estrofes iniciais podemos concluir que a composição poética reflete sobre a tensão entre corpo e alma, mostrando que ora um dá sentido ao outro, ora se afasta dele, havendo uma espécie de duas formas de «alma» evocadas: uma, que o corpo recebe e é exterior à poesia, e a outra, que o corpo só pode receber através da poesia. Assim, o corpo é simultaneamente recipiente e agente dessa busca espiritual. Quando o «eu» poético está em busca de dar alma ao corpo (primeira estrofe), não escreve. Por seu turno, quando o corpo carece de alma, é a poesia que pode supri-la (segunda estrofe). Deste modo, a relação que existe entre corpo e alma é uma relação de interdependência, dado que ambas as dimensões coexistem em tensão e se alimentam mutuamente.

    Por outro lado, nas duas estrofes iniciais existe um paralelismo entre “Os poemas que não fiz” e “Os poemas que fiz” que dá origem a uma estrutura especular, que serve vários propósitos. Em primeiro lugar, mostra o equilíbrio instável entre criação e experiência: há momentos em que o viver impede o escrever e outros em que a escrita é a forma essencial de viver. Em segundo lugar, possibilita contrastar a procura de alma e a ausência de escrita e a necessidade de escrever para recuperar sentido ou alma. Por último, reforça a circularidade do processo poético: viver e escrever poesia são duas faces da mesma moeda, ou seja, uma não existe sem a outra, mas não coexistem plenamente em simultâneo.

    O terceiro terceto tem um caráter conclusivo ou demonstrativo, como o mostra o uso inicial de «Assim». Há um ciclo: o corpo, que deu ou recebeu algo da poesia, posteriormente devolve. A poesia é comparada ao “duro sopro”, algo essencial, vital, mas difícil, que funciona como uma metáfora da própria vida e do processo de criação poética. O nome «sopro» remete para a respiração, sinal de vida, mas o adjetivo que o qualifica («duro») associa-se às ideias de esforço, resistência, trabalho. Mas que sopro duro é esse? A tarefa da criação poética, de traduzir por palavras a existência? Viver e escrever são atos de resistência, que implicam esforço, sacrifício, trabalho aturado. O verso final é profundamente paradoxal: estar vivo sem respirar sugere um sofrimento silencioso, uma existência angustiada, sem paz e alívio.

    Curiosamente, no poema, a poesia possui um papel ambivalente, mas crucial. Por um lado, é limitada, dado que não pode dar ao corpo uma determinada alma, que apenas a experiência vivida permite. Por outro lado, é indispensável, já que é o único meio de o corpo obter outra «espécie» de alma. Assim, a poesia funciona como uma espécie de mediadora entre corpo e espírito, entre o mundo real e o mundo interior. A poesia é o «sopro» necessário à vida, mesmo que aquele seja difícil, árduo, duro – como o de quem vive sem fôlego. A arte poética configura uma forma de respirar quando a existência se torna sufocante.

    Em suma, o presente poema de Gastão Cruz reflete sobre o ato de criação poética, apresentando-o como uma relação entre corpo e alma, entre vida e arte. A escrita é um processo dinâmico e aturado, um ofício vital, por vezes doloroso, como o “duro sopro de quem está vivo e às vezes não respira”, em que o corpo ora busca uma alma que a poesia não fornece, ora clama por uma alma que só a poesia pode oferecer. Poesia e existência alimentam-se mutuamente – ambas são indispensáveis, ambas são incompletas sozinhas.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Análise do conto "Desenredo", de Guimarães Rosa

GR

Análise do conto "Barra da Vaca", de Guimarães Rosa

I

II

Análise do conto "Arroio-das-Antas"

Arroi-das-Antas
3

Análise de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

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    Continuação da análise aqui: »»».

Análise do poema Cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto

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Análise do poema "A lição de poesia", de João Cabral de Melo Neto

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Análise do poema "A Viagem", de João Cabral de Melo Neto

    A partir da obra Os três mal amados (1943), a poesia de J. Cabral pauta-se pela:
        =- construção
        =- racionalidade
        =- objetividade

    Estes elementos estão presentes em obras como O Engenheiro (1945) e Psicologia da Composição (1947).
    Em Pedra de Sono, o domínio do Surrealismo pode verificar-se em duas vertentes:
        =- alucinatória, pois o Surrealismo dá total liberdade à mente, às imagens tal como elas vão surgindo;
        =- construtivistas: nesta vertente, o rigor da construção sobrepõe-se ao domínio onírico.
    Estas duas vertentes já aparecem em Pedra de Sono, mas aqui a vertente alucinatória sobrepõe-se à construtivista, mas não com o relevo que vai ter nos livros que se seguiram.
    No Engenheiro, verifica-se ainda o embate das duas venturas; o problema não foram ainda resolvido, mas o projeto construtivista começa a ganhar espaço e relevo na construção dos poemas. Mas mantém-se ainda o clima surrealista, evidente na abundância de palavras ligadas ao domínio onírico: sonho, sono, noite, morte.
    Nesta obra, temos que distinguir dois tipos de poemas:
        . os poemas que são escritos segundo o ritmo da expansão onírica;
        . os poemas que, embora mantendo as palavras derivadas da expansão onírica, já estão sujeitos a um projeto de construção. Assumem, assim, uma forma mais racional e objetiva.

    Este poema é um exemplo vido do primado da expansão onírica; continuamos a ter presentes os três temas comuns, que são a noite, o sonho e a morte e uma sucessão de imagens oníricas.    
    No poema “Poesia”, a interrogação mostrava uma clara tentativa de racionalização; aqui esta função de objetivar as coisas não é tão evidente.
    Outra característica do poema é o domínio da subjetividade. Mas esta característica está igualmente presente na vertente construtivista. O poeta aparece à deriva entre as sugestões com que se depara e relaciona-se com elas de forma diferente: umas vezes, tenta separar-se e outras funde-se com elas.

Análise do poema "O Poeta", de Gracialiano Ramos

Este poema é uma sucessão de imagens oníricas tal como elas surgem ao poeta, tal como dizia o Surrealismo.

    O poeta termina com uma tentativa de racionalização, concretizada por alguns vocábulos ou expressões:
        - “acenderam”: ver algo que estava no escuro; é o primeiro indício da racionalização;
        - “duas flores secas” representam um tipo de poesia objetiva, concreta, sem lágrimas. Por isso, há uma certa racionalidade e tentativa do poeta se libertar do mundo onírico.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Análise do poema "Poesia", de João Cabral de Melo Neto

    O discurso é interrogativo e está ligado a um clima de mistério e também de racionalização. O discurso parece ser o único elemento que permite chegar à racionalização e nunca o conteúdo, apesar de haver palavras que só por si são racionais, claras e objetivas: sol, luz, saúde (são palavras que fogem ao domínio da noite, do escuro e do sonho). Mas toda a “luz” e “saúde” são subordinadas a um mistério maior. Por isso, toda a tentativa de racionalização pelo uso de certas palavras desaparece, ficando apenas o discurso interrogativo.
    A conquista de um território diurno esbarra com um território em que se produz a poesia. Há uma desistência do real enquanto instância passível de organização pela consciência. Apesar do poeta procurar ordenar o real, pela sua consciência acaba rendido à evidência de o não conseguir. A poesia surge como ato de criação, onde é valorizada a mente onírica, do sonho, da evasão do criador, que não consegue ter uma atitude crítica perante o que cria.
    Como conclusão, poderemos dizer que a poesia é o resultado da mente do criador e, como dizia o Surrealismo, é um conjunto de expansões oníricas. A interrogação surge ao poeta como única forma de colocar em causa o que foi dito.

Análise do poema "Nocturno", de João Cabral de Melo Neto

    Neste poema, temos uma reivindicação do imaginário, que passa por uma reinvenção sintática, que tem a ver com a associação de palavras com sentidos totalmente diferentes: “O mar soprava sinos”, “Os sinos secavam as flores”.
    Nesta reinvenção sintática, tem grande importância a subjetividade do sujeito criador (ex.: “minha memória”, “meus pensamentos”, “meus pesadelos”).
    Os dois poemas abordados mostram diferentes relações que se estabelecem entre o mundo onírico e o sujeito: no anterior, há uma nítida tentativa de separação; neste, pelo contrário, há uma aproximação: o sujeito procura esse mundo.
    No poema, o “eu” aparece como forma de discurso dominante: na segunda estrofe, o “eu” é agente; na terceira estrofe, o “eu” assume-se como espectador do processo que cria.
    A noite, o sonho e a morte são também ideias presentes no poema e, embora se associem, não há entre eles uma relação necessária: por exemplo, se a noite é propícia ao sonho, contudo a expansão onírica não implica a noite.
    Temos ainda neste poema o que se pode chamar de “poética do deslizamento”, ou seja, preferência pelo que é líquido, inconsistente e incorpóreo (ex.: “... meus pensamentos soltos / voaram como telegramas...”). Daí que J. Cabral ignore a terra e o fogo e apenas se debruce sobre o ar e a águia (vide: “O poema e a água”).

Análise do poema "Composição", de João Cabral de Melo Neto

    O Surrealismo tem como principal característica a expressão de imagens oníricas, que também neste poema são abundantes.

    Ao lado da vertente de organização consciente e objetiva, sobressaem no poema três ideias fundamentais: a ideia de noite, de sonho e de morte. Mas em J. Cabral, estas imagens são submetidas a um processo de racionalização, concretizado no final pelo verbo “digo”, que marca a separação do mundo onírico e a consciência de criação desse mundo pelo “eu” lírico. O sujeito lírico compactua com o onírico, mas não o subscreve, não o “celebra”.

Pedra de Sono, de João Cabral de Melo Neto

    Os poemas reunidos nesta obra foram escritos entre 1939 e 41.
    A obra tem uma epígrafe constituída por um verso de Mallarmé: "Solicitude, récife, etoile",que mostra uma certa influência do Simbolismo. Apesar de não ser simbolista, João Cabral apresenta alguns traços comuns ao Simbolismo:
        - espírito crítico
        - traçar artes poéticas. Este 

Vida e obra de João Cabral de Melo Neto

Motivo e tema de Vidas Secas

    Há determinados motivos centrais e o tema é construído através deles.

    Se este é um romance regionalista, o núcleo do romance deve ser a região e também o modo de vida e de ser das personagens. A paisagem e a seca são elementos omnipresentes em todo o romance e, por isso, é inútil separá-los de todos os outros motivos e temas.

    Os motivos principais são:

            1. Viagem: relacionada com um trânsito de caráter cíclico e toda a vida das personagens tem como polos a viagem. A vida das personagens acaba por ser a própria viagem com um tempo de esperança no meio.
    Como o que leva as figuras a viajar são motivos exteriores, a viagem acaba por ser errância, que se caracteriza pela ausência de um plano e tempo específicos. É como se o destino das personagens as levasse a andarem sempre errantes de lugar para lugar. Se as personagens viajassem por motivos interiores, então seria verdadeiramente viagem; como tal não acontece, é errância, sempre condicionada por questões externas, que se identificam com o destino.
    Logo no capítulo I, temos um contraste entre um presente de desespero e u  futuro que poderá ser de esperança e é isto que os leva continuamente a viajar e a viagem suscita dois estados: desalento e anseio. A viagem tem um sentido místico de procura e esperança. Mas esta ideia não é constante no romance. Se em determinadas alturas, as personagens estabelecem esta dualidade são elas próprias que ganham a consciência de que ela não é constante. Fabiano tem consciência do seu destino de errância; há uma sina que os leva a mudarem constantemente de lugar. Mas no final do romance, Fabiano e Sinhá Vitória sentem necessidade de acreditar num futuro melhor, porque confiam um no outro. Este afinal tem como centro o sertão, núcleo fundamental de mão de obra que envia para a cidade.
    A viagem equivale a uma mudança, que é constante e, assim, aparece uma referência universal nu romance regional. Se a viagem é um motivo provocado pelas características de uma determinada região, ela consegue adquirir uma dimensão universal, através do destino e da fatalidade que rege a vida das personagens.

            2. Problema da linguagem: a linguagem é uma preocupação essencial de Fabiano e, neste campo, há uma referência constante a Tomás da bolandeira. São vários os exemplos disto ao longo do romance: Fabiano tem consciência de que o conhecimento das coisas, a cultura, dão uma certa superioridade ao indivíduo. Elas estão ao serviço de outros elementos, como o poder, a exploração e a revolta, que se tornam efetivos e eficazes pela linguagem. Pela sua dificuldade de comunicação, Fabiano tem consciência da sua inferioridade e incapacidade de exercer um poder; ele sabe que é pelo poder da linguagem que é explorado, e como não a domina nunca será capaz de exercer o poder e explorar. Por outro lado, Fabiano também tem a noção de que a linguagem exige uma certa perícia e domínio da língua que ele não tem. Mas ele coloca em causa a necessidade de conhecer as coisas e o interesse desse conhecimento. Isto acontece quando as crianças o interrogam e ele põe em causa o conhecimento, pois através do domínio do conhecimento, as crianças podiam pôr em causa o seu poder. Também fabiano usa o seu restrito poder para se impor na família. Também Seu Tomás conhecia tudo, mas isso não o impediu de sofrer as vicissitudes da seca.
    A própria revolta acaba por não ter sucesso: o patrão tem a autoridade e ele tem apenas que a acatar. A linguagem e o conhecimento são fontes de poder, nas não valem nada, porque acima de tudo está um poder superior: destino, que submete todas as personagens.
    O problema da linguagem é também sentido pelas crianças; elas sentem a necessidade de nomear as coisas para lhes retirarem o mistério e delas se apoderarem.
    A linguagem também se impõe como problema em Sinhá Vitória. É pela linguagem que estabelece ligação com os outros.
    É ainda pela linguagem que as personagens podem mostrar os seus sonhos; é pela linguagem que surge o desejo e a esperança, dá-lhes a possibilidade de se revoltarem. É pela construção de um discurso de esperança e revolta que Sinhá Vitória leva Fabiano a mudar a sua atitude. A revolta no domínio do sonho e esperança é a única possível.

            Relação entre os 2 motivos: viagem e dificuldade de comunicação. Temos entre os dois motivos uma relação de implicação. A viagem é causada pela fatalidade, mas a linguagem seria um momento de revolta. A fatalidade é o símbolo da viagem e a revolta o símbolo da dificuldade de linguagem e ambos se implicam. Esta revolta que a linguagem podia possibilitar acaba por ser inútil, por causa desse destino imutável que determina a viagem.
    No fundo, as personagens caem num beco sem saída. A viagem e a dificuldade de comunicar são dois motivos essenciais, cujas consequências se cruzam ao longo do romance. Fica a ideia da impossibilidade de mudança. É perante isto que Fabiano aceita o poder do patrão, pois a revolta é impossível. Ele não tem capacidade de argumentar e, por isso, o poder de soldado amarelo aumenta também pela autoridade de que está investido. A única revolta de Fabiano consiste na questionação da legitimidade da opressão exercida. É uma revolta íntima e nunca exteriorizada. Daí o isolamento a que se votam; aceitam o inevitável, não fogem ao destino e apenas se revoltam em sonho.

    No final, Sinhá Vitória constrói um mundo de sonho e Fabiano é aliciado por isso, mas o sonho condu-lo a uma cidade onde vão perder a sua liberdade. Assim, abdicar da região que lhes dava uma certa liberdade é outro motivo.
    Do romance fica a ideia da impossibilidade de mudança, do destino e uma imagem de rudeza e opressão.
    A viagem e suas implicações, todo o destino e fatalidade, a revolta íntima e automática e a impossibilidade de comunicação constituem um tema único e geral: denúncia da opressão, que é uma necessidade do homem universal e não apenas do homem do sertão. É pelo uso de motivos regionais que se alcança um tema universal e é pela conquista deste tema que o romance regional se torna universal.

Foco narrativo em Vidas Secas

    Cada capítulo é dedicado a uma personagem, embora as outras possam estar presentes. O tipo de discurso que temos é quase sempre o discurso indireto livre: o narrador na 3.ª pessoa é substituído pela visão e pensamento das personagens. Mas a distância entre os dois discursos não é fácil de efetuar, de tal modo se sobrepõem. Este processo já era usado por Machado de Assis, embora com objetivos e efeitos diferentes. É um processo presente em todo o romance: muitas vezes, não sabemos se estamos perante a visão das personagens ou do narrador.

    A descrição física é substituída, por vezes, pela descrição do sentimento e o narrador é substituído pelas personagens e isto confere ao romance uma grande dose de objetividade.

    No início de cada capítulo, temos um relato omnisciente, que é quase sempre substituído pelo relato da personagem, o que tem repercussões ao nível do discurso.

    No capítulo referente ao menino mais novo, o vocabulário e a construção utilizados mostram-nos a evolução do pensamento do menino. E é constante a alteração entre a perspetiva do menino e a do narrador, que se sobrepõem, sendo difícil separá-las.

    O processo de substituir perspetivas acaba por ser um facto importante na própria estrutura do romance: se o narrador é substituído pela visão das personagens, ele vai ter a ciência que as personagens lhe permitirem.

    O discurso vai ser condicionado pelo próprio conhecimento que as personagens têm em relação às coisas. O foco narrativo e a ciência do narrador são condicionados por dois aspetos:
            - discurso indireto livre: substituição da voz do narrador pela voz das personagens;
            - recurso ao monólogo.

Tempo em Vidas Secas

    O tempo não é medido; não nos é apresentado segundo uma sequência lógica. O tempo medido é dado apenas pela sequência das estações do ano: verão, inverno. É pela mudança da estação que temos a noção da passagem do tempo.

    Se o tempo não é medido, há a noção de um longo lapso de tempo, de um tempo que se arrasta. Uma vez que não há indicações da sequência dos dias, não há ordenação em relação aos capítulos. Disto resulta um arrastamento do tempo, ao longo do qual se passam muitos eventos. Por vezes, temos sinais que indiciam a passagem do tempo (pág. 18-19), mas não temos a localização dos acontecimentos num tempo concreto.

    Podemos distinguir 2/3 tipos de tempo:
            - Tempo histórico: não aparece concretamente referido; apenas se evidencia pela passagem das estações do ano. Daí a sua ligação a um outro tipo de tempo:
                - Tempo meteorológico: relacionado com as estações do ano, que condicionam as atitudes das personagens.
                - Tempo narrativo: é o tempo do texto e do qual só nos apercebemos pela mudança dos verbos e de certas expressões. No capítulo referente a Fabiano, temos uma alternância entre verbos no perfeito e imperfeito e verbos no mais-que-perfeito. São os verbos que indicam a passagem do tempo: eles já estão na quinta e, então, é através do mais-que-perfeito que se mostra o que acontecera entre a situação atual e o que se passara no capítulo anterior. Não há uma sequência lógica, pois no capítulo I apenas se faz referência a uma quinta e neste já estão instalados. A ligação entre os capítulos não é feita pelo tempo; há uma ambiência mais significativa.
    Por exemplo, no capítulo referente a Sinhá Vitória, temos mais um tempo psicológico que narrativo, que nos é dado através de expressões ou locuções adverbiais. Todo o capítulo é mais o relato do pensamento de uma personagem, onde se cruzam o tempo histórico e o tempo narrativo. É um tempo narrativo longo, pois a personagem é acompanhada em toda a sequência do seu pensamento. Por isso se diz que é mais um tempo psicológico que um tempo histórico; o que interessa são as vivências psicológicas.

Espaço de Vidas Secas

    Se se trata de um romance regionalista, implica que tenha que nos descrever um espaço concreto: sertão. É um espaço importante que devia ocupar todo o romance; no entanto, não temos uma descrição rigorosa do espaço, mas sim alguns elementos descritivos: viagem, seca e um certo tipo de paisagem referente à seca e o inverno. Por exemplo, é-nos apresentado o facto de eles se instalarem numa quinta, mas nunca nos é descrita.

    Também a cidade, nem quando Fabiano é preso, nem na festa, nos é descrita exaustivamente, mas apenas referida como uma cidade.

    Sendo um romance Neorrealista, além de regionalista, era obrigado a fazer uma exposição clara e objetiva do espaço, mas isso não acontece. O espaço físico é, na sua maior parte, substituído pelo espaço psicológico. Assim, não temos uma descrição da cidade, mas apenas uma visão que nos é dada pela personagem. O mesmo se passa em relação à visão que nos é dada da Igreja.

    Quando temos a descrição do espaço físico, ela é feita com a objetividade de um relatório. Temos que reconhecer que, se o espaço tivesse aqui uma centralidade fundamental, o romance seria impossível de ler, porque apenas se falaria da seca e da terra árida. O espaço é monótono, repetitivo e opressivo.

    O espaço físico é, assim, breve, objetivo e preciso. Todos os elementos apresentados são importantes e necessários para a compreensão do espaço e sua influência nas personagens. Toda a descrição seja da viagem, da seca ou do inverno, tem uma função determinada; pauta-se por ser funcional: dá-nos a dimensão da opressão do espaço sobre as personagens e do sofrimento das personagens. A ausência de referências ao espaço físico pode estar ligada ao próprio tipo do narrador. A função do narrador é, por vezes, substituída pelo olhar das personagens sobre os acontecimentos. Se temos a visão das personagens e não do narrador e elas têm dificuldade em nomear as coisas e comunicarem, então as referências a objetos e espaços que elas não conhecem não podem existir. Por isso, temos apenas a descrição de certos elementos que as personagens conhecem. Daí os momentos de descrição serem também repetitivos.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Personagens de Vidas Secas

     Após a morte do papagaio, ficam cinco viventes, cinco "vidas secas": Fabiano, Sinhá Vitória, os dois miúdos e a cadela Baleia.

    Mas há outras personagens importantes:

        => "Seu Tomás da bolandeira", referido por causa da cama que Sinhá Vitória gostava de ter e pela sua capacidade de comunicação. Mas enquanto Fabiano não sabe falar e sobrevive, Tomás, que tão bem sabia falar, não resiste à seca. No fundo, esta personagem é um ideal de identificação.

        => Fazendeiro: principal elemento de oposição, tal como o soldado. Ele explora Fabiano e este, sabendo que precisa dele, não se revolta e tudo suporta.

        => Soldado amarelo: é também um elemento de poder e opressão.

        => Dono da taverna.

        => Sinhá Terta, que irá desencadear uma importante discussão sobre o "inferno"

    Um dos aspetos mais difíceis na relação das personagens é a dificuldade de estabelecerem diálogo, que é substituído por gestos ou interjeições ou, então, não falam. Fabiano não é burro, mas pelo contrário tem consciência da inutilidade de saber muito numa região daquelas. A dificuldade de comunicação passa de pais para filhos (págs. 54-6).

    A linguagem está ao nível da utilização material do signo. O conhecimento e a apropriação de uma coisa passa pela sua nomeação. Daí a sua estranheza na festa, perante tantas coisas para as quais não conhecem os nomes.

    A família é um elemento fundamental e engloba homens e animais. Por exemplo, Baleia tem direito a um capítulo como as outras personagens. A dificuldade de comunicação verbal é substituída por um tipo de comunicação afetiva e instintiva.

Ação de Vidas Secas

    São vários os aspetos principais: viagem, seca e região. O romance começa e termina com uma viagem; as personagens têm medo dela e, no entanto, ela condiciona as suas vidas.
    A seca não é uma ação, mas influencia uma ação, que é a viagem. Esta é a ação mais justificativa e profunda. É ela que justifica a sua razão de sobrevivência. A estadia na quinta corresponde apenas a um período relativo de bem-estar. Temos, assim, no romance, dois polos: viagem e estadia, organizados ciclicamente entre si. A estadia ocupa um espaço maior, mas a viagem tem um sentido mais profundo. Não nos são apresentados os factos do dia a dia, mas apenas se refere a sua estadia na quinta. A única ação possível e fuga ao destino que cai sobre as personagens é a viagem.
    Deixando de lado a viagem, a única ação que resta é a do dia a dia, que se resume à narração de certos episódios de importância relativa, mas essenciais para a caracterização das personagens.
    Esta pouca ação e o caráter fragmentário dão-nos uma sensação de vazio em relação ao que é esperado de um romance. Mas este romance é muito simples e tem ideias básicas, a respeito das quais não nos conseguimos afastar: seca e viagem; opressão e vazio. A viagem é o único modo de tentar ultrapassar esta situação e o facto de ocupar um espaço menor na narração mostra a impossibilidade de mudança.
    Os episódios são importantes pela alteração psicológica que provoca nas personagens. Por exemplo, o episódio da morte de Baleia mostra uma identificação entre bicho e homem. Sinhá Vitória esconde os miúdos debaixo das almofadas para que estes não ouçam os latidos da cadela e ela própria sente pena dela; também Fabiano sente a sua morte. Baleia sempre foi importante no romance pela comunicação que estabelece com as crianças e que nem mesmo Fabiano consegue.
    O próprio Fabiano admite que ele é um bicho e esta consciência faz com que as personagens adquiram dos animais a dureza para sobreviverem num meio tão contrário.
    Também "A Cadeia" é um episódio importante pelas referências sociais e ao poder. Já não bastava a opressão do meio, temos agora a opressão das autoridades, que nem sequer têm capacidade para exercer esse poder. Mas temos dois tipos de poder:
  • o poder do Estado, que é reconhecido por Fabiano;
  • o poder das autoridades, representadas pelo soldado amarelo, que ele não aceita. Fabiano reage, porque não compreende a autoridade do soldado amarelo, não sabe como é que o governo escolhe assim pessoas para exercerem o seu poder.
    Outro episódio importante é o da "festa", que é muito ativo; descreve-se o modo como se vestiam, como decorre a viagem e como se sentem deslocados no ambiente desconhecido da cidade. Temos presente o poder do desconhecido, o desajustamento social e o medo de estabelecer contacto, que são os aspetos fundamentais deste capítulo.

Estrutura de Vidas Secas

Vidas Secas: "Estória"

    É a história de 6 viventes, que ficam reduzidos a 5 com a morte do papagaio e depois 4 com a morte da cadela Baleia. Não há noção de distinção entre homem e bicho.
    O romance abre com uma família em trânsito, em viagem, que nunca é interrompida, pois embora se fixem num certo lugar durante algum tempo, a viagem continuará por causa da seca, motivo nuclear, juntamente com o próprio sistema socioeconómico: exploração do que trabalha pelo patrão. Esta exploração  impedia-os de se estabelecerem, pois nunca conseguiam nada de seu, além de que as condições da terra eram péssimas. O sistema económico baseava-se na exploração e não havia sistemas alternativos.
    A região e a seca passam a ser a substância da personalidade e dos acontecimentos. Tudo o que se passa no romance está subordinado à seca, o próprio sentimento das personagens.

Graciliano Ramos

    Graciliano Ramos nasceu em Alagoas em 1892 e morreu no Rio de Janeiro em 1953. Pertencia a uma classe média de comerciantes e tinha 14 irmãos. Conviveu com muitos escritores nacionais e estrangeiros.

    Em 1933, foi preso por subversão e, em 1945, era já um escritor muito conhecido e lido.

    O romance regionalista Vidas Secas é de 1938 e debruça-se sobre a vida de uma família de agricultores transferida para uma zona do nordeste brasileiro, onde é atingida por uma terrível seca. Este seu romance é o quarto; antes escrevera:
                - Caetés (1933)
                - S. Bernardo (1934)
                - Angústia (1936)

    Depois escreveu Memórias do Cárcere e outros livros de literatura infantil e autobiográfica.

Romance regionalista

        . A cor epocal não é suficiente para que um romance seja regionalista. Mais do que a cor epocal, o romance regionalista implica uma relação muito profunda com o espaço, o tempo e as gentes. Assim, esta relação tem que ser substancial e tem que se adequar a formas de tratamento do tema escolhido à região. Todo o romance tem um tema, mas no caso do romance regional o tema tem que ser a própria região com as suas características. A própria estrutura cíclica do conteúdo está na forma.
    O romance regionalista, opondo-se ao romance urbano, não deixa de ser universal, porque ele não é só a descrição do espaço, mas a vivência profunda desse espaço.

            . Relação do romance regionalista com o Neorrealismo: a década de 30 retoma princípios do Realismo e é essa feição neorrealista que confere as preocupações de natureza social e ideológica.

            . O romance regionalista pode aparecer como forma de luta mais ou menos empenhada, mas mesmo que apareça só a descrição duma região isto já é importante, pois mostra os desejos de mudança. Tanto o Modernismo como o Regionalismo têm princípios diferentes, mas também semelhantes. As características de cada um entram em ligação com as preocupações das regiões onde surgiram. Na década de 30, o Modernismo foi o amadurecimento da "Semana de Arte Moderna", que foi impulsiva e espontânea. Agora, apercebem-se da importância de inovar, mas preservando a tradição.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Regionalismo no Brasil: década de 30

    Em 1930, dá-se no Brasil a Revolução de Outubro, acontecimento histórico que despertou um conjunto de esperanças e oposições, que tiveram grande influência a nível literário.

    Se a "Semana de Arte Moderna" marcou a mudança da literatura, teve, no entanto, algumas limitações:

  • funcionou muito abstratamente sem manifestações concretas
  • estava centrada numa pequena elite, que não pode representar um país como o Brasil
    É na década de 30-40 que os escritores se apercebem de que outras coisas têm que ser importantes: a literatura não funciona em abstrato. A "Semana da Arte Moderna" desprezou também tudo o que a antecedeu; pelo contrário, na década de 30, vai recuperar-se o que vem de trás e tenta-se uma adequação dos factos históricos à estrutura artística.
    Nesta década, não se desprezam todos os princípios que haviam presidido à "Semana de Arte Moderna", mas alguns são abandonados. O Regionalismo é uma corrente que vem na linha do Modernismo, mas por outro lado recupera certos princípios do Modernismo.
    Esta corrente regionalista diz quase sempre respeito a um mesmo espaço, que é o sertão. O núcleo desta vertente há de,  pois, ser as "estórias" do sertão. Esta vertente enquadra-se nos princípios do Modernismo, mas segue princípios próprios, com aspetos históricos, culturais e sociais específicos.
    É nesta altura que surge u autor de nome Gilberto Freire, que vai começar, no Recife, um movimento que tinha como objetivos:
        - Opor-se à hegemonia do Sul
        - Evitar a descaracterização do nordeste, que começava a entrar em decadência. Com efeito, o centro e o sul sempre foram mais desenvolvidos que o norte.
    Agora, algumas cidades do norte, como Olinda, Recife e Bahia, que participavam do esquema económico que entrava em decadência, começam a reagir. Os latifúndios, que eram a base da sua economia, coçam a entrar em decadência. O sul sempre tivera maior capacidade de reestruturação económica. Então, os intelectuais do norte notaram que essa zona estava a degradar-se. A descoberta de ouro em Minas Gerais afastou muita da riqueza que o nordeste podia ter encontrado. Depois desta recessão, conseguiu uma certa recuperação com a comercialização do café, e também com o cultivo da cana de açúcar, mas quando se começa a recorrer a produtos sucedâneos, como a beterraba, o nordeste perde novamente, pois havia investido muito capital na produção da cana. Além disso, estas grandes plantações eram cultivadas por escravos e daí que a abolição da escravatura tenha também contribuído para a decadência da economia nordestina. Já próximo do século XIX, houve a tentativa de industrialização da produção do açúcar, mas não deu resultado por falta de conhecimento da terra por parte dos que possuíam o capital.
    Enquanto o nordeste decai económica e socialmente, no sul dá-se um grande desenvolvimento, particularmente do estado de São Paulo, que se transforma num grande produtor de café. Começa também a ser um grande foco de emigração, que traz muita gente para o trabalho, ao contrário do nordeste, onde a mão de obra escasseia. São Paulo torna-se um misto de culturas e aí surge um novo movimento cultural, que é o Modernismo.
    Temos, assim, o sul em desenvolvimento e o nordeste em decadência. Logo, os movimentos que surgem em cada zona são diferentes:

















    São, assim, duas zonas que têm condições socioculturais e ideológicas diferentes. Se as questões são diferentes, exigem respostas diferentes e mesmo géneros literários diferentes. Logo se compreende que surjam movimentos diferentes com a mesma base: renovação da literatura no Brasil.
    É na poesia que o Modernismo mostra os seus anseios de natureza estética. Esta poesia pauta-se por uma:
            . independência linguística
            . liberdade de forma
    O romance permite apreender mais facilmente uma ideologia do que a poesia; daí ser a forma privilegiada no Regionalismo. O romance regionalista, na década de 30, é especificamente representativo do sertão e aqui vamos encontrar autores importantes como:
            - Graciliano Ramos
            - Jorge Amado
            - José Lins do Rego
            - Erico Veríssimo

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Análise do poema "Os vestidos Elisa revolvia", de Camões


Os vestidos Elisa revolvia
que lh’Eneias deixara por memória;
doces despojos da passada glória,
doces, quando seu Fado o consentia.

 
Entr’eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste história
e, como quem de si tinha a vitória,
falando só com ela, assi dizia:

 
– Fermosa e nova espada, se ficaste
só para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,

 
sabe que tu comigo t’enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja-me a tristeza da partida.

 
    Neste soneto, Camões conta o trágico epílogo da história de amor entre Dido, rainha de Cartago, e Eneias, herói da guerra de Troia, tal como é apresentada por Virgílio no IV canto da Eneida. De facto, o poeta refaz toda a cena descrita nos versos 648 a 652 da epopeia de Virgílio, que precede imediatamente o suicídio da monarca, quando esta vê as “Eliacas Vestes” de Eneias espalhadas pelo leito, símbolo de um amor que acabou, e nele se recosta, pedindo-lhes que acolham a sua alma para a libertarem do sofrimento causado pelo abandono.

    A história de Eneias na Eneida após o final da guerra conta-se rapidamente. O herói foge de Troia, destruída pelos gregos, depois de ter salvo o pai Anquises e o filho Ascânio, e faz uma longa viagem pelo mar. O fado e os deuses fazem-no desembarcar nas costas de Itália, onde deverá dar origem à família imperial romana (gens Iulia) e, por consequência, à grandeza de Roma. A primeira paragem teve lugar em Cartago, onde mora o potente reino fenício governado por Dido. Graças à ação de Vénus (deusa do amor e mãe de Eneias) e de Juno, Dido e Eneias apaixonam-se perdidamente, apesar de a rainha ainda se encontrar de luto pelo marido, Siqueu, ao qual jurara ser sempre fiel. No entanto, para os antigos gregos e romanos, nenhum ser humano podia livrar-se dos ditames do fado e dos deuses. Assim, depois de alguns meses de intensa paixão, Júpiter envia Mercúrio, seu mensageiro, para recordar a Eneias a missão que lhe tinha sido confiada. Deste modo, o herói troiano vê-se forçado a abandonar a amada, repentinamente, mas, antes de partir, protagoniza uma despedida dolorosíssima da rainha. As embarcações troianas deixam o porto de Cartago durante a escuridão da noite, e Dido, quando acorda, encontra a praia deserta e fica desesperada. Pede, então, à irmã que empilhe, numa pira pronta a arder, todos os objetos pertencentes a Eneias, sobre os quais coloca o leito nupcial, símbolo da sua união amorosa, bem como as armas e uma figura em cera do amante traidor, com o objetivo de o esquecer para sempre. No entanto, ao ver as armas de Eneias, Dido decide suicidar-se, pois é incapaz de viver sem aquele homem que amou tão intensamente e pelo qual traiu a memória do falecido marido e a sua própria honra. Assim, pega numa espada e mata-se.

    Camões escolhe a forma do soneto para contar o desfecho trágico do amor de Eneias e Dido, isto é, o momento em que ela toma a decisão de se suicidar com a espada do amado. No que diz respeito à estrutura interna do texto, nas duas quadras, descreve-se Dido, abandonada, revolvendo as roupas deixadas por Eneias em Cartago antes de partir, entre as quais encontra a espada do herói, enquanto, nos dois tercetos, é relatada em discurso direto a invocação da rainha a essa espada, de acordo com o procedimento da sermocinatio, através do qual o poeta coloca o seu discurso na (continua aqui »»»).

Análise da cantiga "Bem viu Dona Maria"

    Esta composição poética, da autoria de João Vasques de Talaveira, é extremamente curta, dado ser constituída por dois tercetos (dístico seguido de refrão), e é mais uma dirigida a Maria Leve e que parece seguir imediatamente a que a precede no manuscrito do trovador e que tem como alvo Maria Pérez, a Balteira (“O que veer quiser, ai cavaleiro”). Ainda que a diferença no nome não permita saber com segurança se se trata efetivamente da mesma soldadeira, tal hipótese terá de ser tida em conta, dado que Leve (que significava «ligeira», mas também «tonta») poderia ser uma alcunha de Maria Balteira. A esta Maria Leve, o trovador dirige outras três cantigas de escárnio e maldizer. Por último, dada a sua exiguidade, há a considerar que talvez o poema esteja incompleto.

    Na primeira cobla, o trovador afirma que D. Maria estava ciente de que ele não possuía na sua «emboleira», isto é, na bolsa das esmolas, o que indicia a sua extrema pobreza, que o leva a pedir esmola. A segunda estrofe repete a ideia da anterior, adicionando um pormenor: a mulher estava a insultá-lo. E a cantiga não vai mais além, o que parece confirmar que não está completa. Seja como for, parece que estamos perante uma composição poética que nos coloca perante uma mulher, uma soldadeira, que insulta o trovador por ele não ter posses, daí que não lhe possa pagar os seus serviços (por exemplo, de bailarina).

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Na aula (LVI): resposta de ETAR

    Professor: Como se chamam as cantigas de amigo que fazem referência ao rio, ao mar, etc.?

    Samuel Amador: ETAR.

sábado, 6 de dezembro de 2025

Origem e significado do nome Abelardo

    A sua origem não é clara. Seja como for, estamos perante a forma portuguesa e espanhola de um nome de origem germânica (Adalhard ou Adellard), constituído pelas formas «adal» (nobre) e «hard» (forte, resistente, corajoso), associando-se, assim, ao significado «nobre», «nobremente corajoso», «firmeza de caráter».

    Este nome ganhou relevância histórica graças a Pierre Abélard (c. 1079-1142), filósofo e teólogo francês cujo trágico caso amoroso com uma mulher de nome Heloísa acabou por se tornar uma história conhecida ao longo dos tempos.

Origem e significado do nome Abel

    O nome próprio Abel tem origem hebraica: provém de «ablu» ("filho") ou «hevel» ("vapor" ou "sopro").

    Na Bíblia, Abel era o segundo filho de Adão e Eva, tendo sido assassinado pelo seu próprio irmão, Caim, de acordo com o Génesis.

    Por outro lado, a origem etimológica hebraica sugere uma conotação de fragilidade ou transitoriedade, refletindo a brevidade da vida humana, uma noção reforçada pela narrativa da sua morte prematura.

    Já de acordo com a tradição judaico-cristã, Abel constitui uma figura representativa da inocência e da justiça, que o assassinou por ciúmes. A disputa entre ambos tem sido vista, ao longo dos tempos, como o símbolo da luta entre o Bem e o Mal.

Análise do poema "Chorosos versos meus desentoados", de Bocage

 
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:
 
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.
 
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.
 
Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.
 
    Estamos perante um código óptico-grafemático que nos conduz para um texto poético. Há, no entanto, a interação de vários códigos que vão configurar o texto literário.

a) Análise temática
    O poeta dirige-se aos seus versos num tom desiludido, reconhecendo a sua pouca valia, mas desculpando-os ao mesmo tempo, quando afirma “Que não pode cantar com melodia / Um peito, de gemer cansado e rouco.”
    A própria produção do poeta, o soneto, serve para ele se dirigir aos seus versos, o que faz com que se crie um distanciamento do poeta em relação aos seus versos, porque só com esse distanciamento os pode analisar e avaliar. Em relação aos seus versos, reconhece que são “... sem arte, sem beleza e sem brandura...” e ainda desentoados: o poeta faz aqui uma autocrítica e apresenta-se desiludido, desilusão essa que, porém, é justificada.
    O poeta vai apelar à valia dos seus versos. De facto, para os desgraçados eles são dotados de valor.
    Apesar de valerem pouco, exorta-os a não desanimarem e a continuar. Ao usar o condicional, mostra que pensa que os ditosos também os podem apreciar. Na verdade, se forem rejeitados pelos ditosos, o mesmo não acontecerá com os desgraçados, ou seja, os ditosos podem também ler os versos com interesse, à semelhança daqueles que tenham um espírito semelhante ao do poeta.
    A temática deste soneto tem sido colocada em vários grupos e Hernâni Cidade inclui-o no grupo “como o poeta se retrata e a sua obra”.
    Outra temática é a oposição entre a luz e a escuridão (sepultura). Ao contrário do que é comum na literatura pré-romântica, não se apela aqui para... (para continuar a ler a análise, clica aqui »»»).

Bocage: pré-romântico (sua obra)

    Não é por acaso que a crítica literária aponta Bocage como o maior poeta do século XVIII. A sua vida de permanente conflito reflete-se na sua obra. "A sua poesia é, em boa parte, a expressão rítmica de um tumulto interior e exterior, ao mesmo tempo que é a criação de um excecional artista."
    Grande parte da sua poesia apresenta um tom confessional. A sua poesia revela acentuadamente um mundo subjetivo; Bocage retrata-se nos seus versos autobiográficos e, nesse retrato, apresenta-se como um ser perseguido pelo destino, pela desgraça e pelo infortúnio, daí sentir-se identificado com Camões. É uma espécie de má fortuna que também se estende ao campo amoroso, que se sente perseguido e marcado pelo "Fatum" e pela desventura, mas paralelamente sente-se um ser destinado ao culto da poesia.
    Por vezes, este dramatismo interior objetiva-se na alegoria ou invenção alegórica: projeta os seus temores, receios, remorsos e pesadelos em figuras alegóricas (morte, noite) com quem fala e a quem confidencia esses tormentos interiores.
    O conflito de Bocage, porque é íntimo, traduz-se através de sentimentos contraditórios e, por vezes, alternativos: ora de melancolia, ora de folia; ora de confiança eufórica, ora de desespero; ora de abatimento, ora de prazer delirante.
    Um dos temas que reflete este conflito interior é o amor que, nas palavras de Jacinto Prado Coelho, em Bocage funciona como constelação, à volta da qual giram outros temas, como a morte, o ciúme, a ausência, o prazer. O tema do amor é o macro-tema, muito comum em Bocage.
    Em Bocage, é particularmente nítida uma das características do Pré-Romantismo: o domínio do egotismo, hipertrofia do «eu», que faz com que a própria natureza sirva de projeção do «eu», ganhando a natureza um estado de ama e assim surgem, em alguns textos, testemunhos de uma sensibilidade atenta que as paisagens oferecem.
    Por outro lado, Bocage sente necessidade de usar uma nova linguagem, uma linguagem que se adeque à violência das suas contradições interiores, dos seus impulsos. Apesar de alguns traços dessa linguagem manifestarem uma influência neoclássica, a maior parte dos temas denota uma sensibilidade nitidamente pré-romântica. Por exemplo, a paixão tortura-o e sente-se numa encruzilhada entre o amor, a culpa, o prazer carnal, etc.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Na aula (LV): verbos pronominais ou pronomes verbais

    Contexto: aula de Português - lecionação dos deíticos pessoais. O professor questiona que classes de palavras podem desempenhar a função de deíticos e dá exemplos para tentar arrancar respostas.

    Professor: Eu, tu, ele, nós, vós, eles são o quê?

    Resposta firme e rápida da Diana Gonçalves: Verbos!

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Análise do capítulo I de O Fantasma de Canterville

    O capítulo I do conto corresponde ao ponto de partida, à situação inicial da ação, com a referência a um assunto corriqueiro: a venda da propriedade Canterville Chase, por parte de Lorde Canterville, ao embaixador norte-americano, Hiram B. Otis. Uma «chase» é uma propriedade rural, situada numa vasta área de terras abertas para taça, o tipo de terra que era apenas acessível à elite da sociedade. A concretização da transação constitui o prólogo da história, visto que são apresentados alguns dos aspetos mais importantes do conto.

    Assim, em primeiro lugar, o narrador enquadra o principal motivo da venda, ou seja, o facto de a casa estar alegadamente assombrada. Por outro lado, o início da narrativa lembra aqueles casos em que alguém assume um novo projeto ou toma uma decisão fulcral na sua vida e ignora os sinais negativos. De facto, não há dúvidas: todos pensam que o Sr. Otis comete um grande erro quando decide comprar a propriedade. A este propósito, convém atentar na diferença entre as atitudes adotadas pelas personagens. Assim, enquanto Lorde Canterville desiste da sua casa ancestral, um sinal do declínio da aristocracia inglesa, o Sr. Otis vive num mundo onde tudo é possível, incluindo colocar fantasmas num museu. Na época da ação, não era costume a aristocracia vender as suas propriedades, pelo que o facto de Lorde Canterville transacionar a sua mostra que estamos a entrar numa era de algumas mudanças. Além disso, o facto de o Sr. Otis comprar Canterville Chase indicia que a sua posição e estatuto lhe proporcionam riqueza, enquanto Lorde Canterville herdou a sua fortuna e a propriedade por meio da sua linhagem real. A aquisição mostra, na Era Vitoriana (1837-1901), o homem da classe média pode ascender socialmente, enquanto o poder da aristocracia entra em declínio.

    Em segundo lugar, encontramos um dos fios condutores da obra: o confronto entre a conservadora visão britânica e a abordagem moderna dos norte-americanos, entre a formalidade recatada dos primeiros e uma certa falta de refinamento dos segundos. Vive-se um tempo de rápidas transformações, essencialmente motivadas pela Revolução Industrial. As cidades cresciam impulsionadas pela indústria, e o comércio global tornava-se mais fácil e eficiente, graças à produção rápida de bens manufaturadas e novas formas de transporte mais velozes, como, por exemplo, o comboio. No contexto desta sociedade em transformação, as velhas formas de pensar eram gradualmente substituídas por um pensamento mais moderno.

    O início do conto introduz de forma clara o contraste entre (para continuar a ler a análise, clica aqui: »»»).

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