Marrocos é uma ilha.
Marco E.
Marrocos é uma ilha.
Marco E.
O Canto XI abre com a aristeia de Agamémnon. O poeta faz uma descrição efetiva do seu armamento e armadura, ricamente decoradas com materiais preciosos que enfatizam a sua riqueza. Dos vários elementos destaca-se a Górgona que está no seu escudo, a qual também marca presença no escudo de Atenas, e que simboliza o apoio dos deuses. Por instantes, o chefe dos Gregos vira a maré da batalha contra os Troianos, apesar das intenções de Zeus serem de sentido oposto.
O pai dos deuses continua a ser o
único a poder intervir no curso da guerra, o que ele faz em favor de Troia.
Neste passo da obra, a deusa Íris atua como uma extensão da sua vontade e uma
evidência da brutalidade da guerra, algo que perpassa toda a Ilíada, mas
isso não significa propriamente uma condenação dos conflitos bélicos. Apesar de
ser um acontecimento trágico, onde milhares de homens são sacrificados, a
guerra constitui igualmente uma forma de alcançar a glória e a honra pessoais,
tão importantes no mundo antigo. De acordo com a visão de Homero, a guerra faz
parte da vida humana.
Neste canto, Pátroclo assume uma
importância que não tinha tido até aqui e que se vai estender para o futuro
imediato. Quando ele responde ao chamamento de Aquiles para questionar Nestor,
o poeta afirma que, a partir desse momento, a sua condenação era um dado adquirido,
condenação essa que se adensa com a sugestão de Nestor para que Pátroclo finja
ser Aquiles e entre em combate. Por outro lado, a figura de Pátroclo funciona
também como contraponto do seu amigo. De facto, embora sejam bastante inimigos
e irmãos adotivos, são personalidades bem diversas. Pátroclo mostrará todo o
seu humanismo e toda a sua compaixão na cena de Eurípilo, enquanto Aquiles já
demonstrou, em mais de uma ocasião, todo o seu orgulho, que se sobrepõe ao
destino dos seus próprios companheiros, algo que o próprio amigo desaprova.
Na manhã seguinte, os exércitos voltam a enfrentar-se e Zeus faz chover sangue sobre o campo aqueu, causando enorme pânico entre os Gregos, que sofrem um massacre nessa fase do combate. No entanto, da parte da tarde a maré começa a mudar: Agamémnon mata diversos inimigos e faz recuar de novo os Troianos até aos portões da cidade.
Porém, Zeus envia uma mensagem a
Heitor através de Íris para ele esperar até Agamémnon ser ferido e só então dar
início ao seu ataque. De facto, o comandante grego acaba por ser ferido por
Coon, filho de Antenor, logo após matar o seu irmão. Mesmo ferido, continua a
lutar e liquida Coon, no entanto a dor que sente força-o a abandonar o campo de
batalha.
Heitor reconhece a situação e
avança, fazendo recuar os Aqueus, que entram em pânico, mas Ulisses e Diomedes
incentivam-nos a resistir e insuflam coragem nos seus corações. Diomedes
arremessa uma lança que atinge Heitor no capacete que o deixa atordoado e o
obriga a recuar. Em rápida sucessão, a maioria dos melhores lutadores gregos é
ferida e até Diomedes é atingido no pé pro uma seta disparada por Páris, o que
o arreda do resto do poema e deixa Ulisses numa situação delicada, ferido
também e cercado por inimigos. O estratega do Cavalo de Troia luta com todos,
mas um adversário chamado Socus fere-o nas costas, sendo salvo por Ájax, que o
carrega de volta ao acampamento.
Entretanto, Heitor regressa à ação
noutro setor do combate e, juntamente com outros soldados, força Ájax a recuar
enquanto Nestor leva Machaon (um curandeiro grego que tinha sido ferido por
Páris) de volta à sua tenda. Enquanto isso, atrás das linhas, Aquiles assiste à
batalha e envia o seu amigo Pátroclo para identificar o lutador ferido que
Nestor transporta. Este relata-lhe todos os revezes que os Gregos estão a
sofrer e implora-lhe que convença Aquiles a retornar à luta, ou pelo menos o
deixe a ele, Pátroclo, entrar na batalha disfarçado, envergando a armadura do
próprio Aquiles. Esse estratagema teria um duplo efeito: por um lado, daria
coragem aos Gregos; por outro, intimidaria os inimigos. De outra forma, Nestor
vê muito difícil a tarefa de resistir aos Troianos. Pátroclo promete falar com
Aquiles.
O Canto X decorre na mesma noite que o IX, mas, ao nível do conteúdo, constitui uma pausa no combate. Em vez disso, Homero concentra-se sobretudo na questão da espionagem e da guerra psicológica. A única ligação de continuidade entre os dois cantos é o desespero dos Gregos, que é acentuado pela teimosia de Aquiles, que tira o sono de Agamémnon e Menelau e os deixa tão desesperado que estão dispostos a quase tudo para o fazer regressar à luta. No entanto, nessa noite existem duas embaixadas, uma de espionagem, efetuada em pleno território inimigo, e outra tendo como destino final a tenda de Aquiles. A primeira é caracterizada pelo êxito, enquanto a segunda redunda em fracasso. O dado comum às duas expedições é a figura de Ulisses.
O rei de Ítaca é caracterizado como
uma pessoa inteligente e astuta, no entanto também algo traiçoeiro, pois
promete falsamente a Dolon que não será morto. Algo parecido sucede com
Diomedes, que, logo depois de manifestar sentimentos de amizade com um inimigo,
executa um homem indefeso e se questiona sobre qual seria a pior coisa que ele
poderia fazer.
No que diz respeito ao desenlace da
incursão no território troiano, não é tanto a perda de um pequeno número de
lutadores e de uma carruagem que afetará o decurso da guerra em termos
materiais, mas antes o que o ataque representa em termos de desmoralização. Em
contraponto, este pequeno sucesso simboliza um impulso de motivação junto da
parte grega.
Por outro lado, as diferenças
linguísticas e de técnica compositiva entre este e outros cantos da Ilíada
levantam algumas questões sobre a autoria desta parte da obra. Foi composto por
Homero para mostrar uma perspetiva diferente da guerra, ou tratou-se de um
acrescento introduzido por um colaborador posterior? Seja como for, constitui
uma pausa na batalha e introduz uma nota diferente numa fase do conflito em que
os Gregos estão a sofrer grandes revezes.
Agamémnon e Menelau não conseguem dormir, tal é sua preocupação com o curso dos acontecimentos, e, eventualmente, acordam os outros comandantes e reúnem-se em campo aberto para planear o movimento seguinte. Nestor sugere que enviem um espião, a coberto da escuridão noturna, que se infiltre no acampamento troiano e tome conhecimento dos planos do inimigo. Diomedes oferece-se como voluntário e é acompanhado por Ulisses. Os dois homens armam-se e, apoiados por Atenas, a quem oram, esgueiram-se em direção ao campo adversário.
No lado troiano, Heitor é assaltado
por uma ideia semelhante e quer saber se os Gregos planeiam fugir. Ele
seleciona Dolon, um homem muito feito, mas veloz como um relâmpago, para
desempenhar o papel, e promete recompensa-lo com a carruagem e os cavalos de
Aquiles. Dolon parte para a sua missão, mas é avistado por Diomedes e Ulisses,
que rapidamente o capturam. Os dois gregos interrogam-no, e ele, na esperança
de conservar a sua vida, informa-os das posições dos Troianos e dos seus
aliados, bem como de que os Trácios, recém-chegados ao local, eram
especialmente vulneráveis a ataques. Ulisses promete poupar Dolon, mas Diomedes
mata-o e tira-lhe a armadura.
De seguida, os dois espiões aqueus
penetram sorrateiramente no acampamento trácio adormecido, onde matam doze
soldados e o seu rei, Rhesus, que chegara atrasado à batalha e, por isso, nem
chega a combater. Além disso, roubam os cavalos e as carruagens do monarca
trácio. Atenas avisa-os que algum deus zangado pode acordar os outros soldados,
o que faz com que Diomedes e Ulisses e retornem ao seu acampamento na carruagem
roubada, onde são recebidos calorosamente pelos seus camaradas, que já os viam
mortos.
Esta segunda interação entre Agamémnon e Aquiles, concretizada neste caso através de intermediários, é marcada por questões de orgulho e honra mais uma vez. A iminência da derrota força o chefe dos Aqueus a pôr de lado o seu orgulho, mas apenas na medida do necessário, argumentando que estava louco e cego quando confrontou Aquiles (Canto I), responsabilizando o seu estado mental instável pelo sucedido e não assumindo, assim, a responsabilidade total e consciente pelo episódio. Neste passo da obra, Agamémnon mostra-se sensato ao aceitar a sugestão de Nestor de se reconciliar com Aquiles, no entanto o seu recuo estratégico não é propriamente uma admissão de culpa nem resulta na sua humilhação. Por exemplo, há a considerar que ele nunca faz um pedido de desculpas, antes procura comprar a lealdade de Aquiles, em vez de procurar um entendimento sério e honesto. Além disso, a aceitação da proposta da parte do filho de Tétis significaria que este se submeteria à autoridade de Agamémnon. Ora, Aquiles é igualmente um homem orgulhoso e percebe que, não obstante Ulisses ter omitido sabiamente a exigência do líder aqueu de que o chefe dos Mirmidões se curvasse perante si, a falta de um pedido de desculpas. Ele não quer tesouros, mas antes a reparação do ultraje de que fora vítima, a reparação da honra e da glória pelas quais tanto trabalhou. A única honra de que necessita é o destino que Zeus lhe reservou: a de uma morte gloriosa. Por outro lado, como julga não ter uma vida muito longa, os tesouros de pouco lhe serviriam.
Note-se que a oferta de presentes
muito valiosos é um gesto muito importante e significativo, pois os gregos da
época observavam a posse de bens materiais, ganhos na guerra ou concedidos por
reis, como sinónimo de honra pessoal. No entanto, no caso vertente da Ilíada,
a oferta generosa de Agamémnon está associada à afirmação do seu status
superior: “Deixa-o curvar-se diante de mim! Eu sou o rei maior” (IX.192). Isto
só vem confirmar que o rei dos Gregos, embora parecendo sensato e mais
pragmático, é tão orgulhoso e egocêntrico como Aquiles.
A embaixada enviada por Agamémnon
constitui uma das cenas mais comoventes da Ilíada. Durante o encontro,
são contadas várias narrativas, que cada lado usa para persuadir o outro, mas o
poeta socorre-se delas para humanizar Aquiles e para nos apresentar
sumariamente aspetos do seu passado e antecipar o futuro. Além disso, este
episódio relembra-nos a sua cólera e o seu orgulho, contudo, em simultâneo,
revela-nos as pressões que sofreu em Ftia (uma antiga região da Tessália, na
Grécia setentrional, a pátria dos Mirmidões) e destaca o dilema que enfrenta,
mostrando-nos os seus conflitos interiores.
A forma mais cândida como Aquiles
responde ao apelo de Ájax mostra que ele valoriza o respeito dos seus
companheiros, embora não pareça particularmente incomodado por estarem a morrer
na sua ausência. No entanto, o seu orgulho sobrepõe-se a isso e ele não
consegue perdoar a ofensa à sua honra. Até este momento da obra, a cólera de
Aquiles parecia ser justificada, todavia a recusa da proposta de Agamémnon por
uma questão de orgulho lança uma sombra sobre a sua figura. Aquiles é descrito
e age como um deus e o egocentrismo e a mesquinhez da sua reação lembram os
rancores de divindades como Hera e Poseidon.
Os discursos deste canto constituem
demonstrações da habilidade oratória, um talento que os Gregos valorizavam
imenso, tanto quanto a perícia no campo de batalha. Fénix faz referência a
esses dois valores quando afirma ter criado Aquiles para ser um homem de
palavras e de ação. O discurso de Ulisses é o mais bem estruturado, sendo
constituído por um conjunto de apelos diferentes para tentar mudar o intento do
filho de Tétis.
Os Aqueus estão desesperados. Agamémnon chora e declara que a guerra foi um fracasso, por isso propõe regressar à Grécia em desgraça, contudo Diomedes argumenta contra tal cobardia e afirma que ficará e lutará, mesmo que todos os outros partam. Nestor intervém de seguida, comungando das palavras do companheiro, e sugere a reconciliação com Aquiles, de modo que ele possa regressar ao combate. Reconhecendo a validade do discurso de Nestor, Agamémnon decide oferecer ao chefe dos Mirmidões um conjunto de presentes bastante valioso: Briseida, um futuro saque, uma das suas filhas e sete cidades. Isto obviamente se regressar à guerra e reconhecer a sua autoridade. Três homens entregam a proposta: Ájax, Ulisses e Fénix, o velho que criou Aquiles.
A embaixada grega encontra-o a tocar
lira na sua tenda com o seu amigo Pátroclo. Ulisses verbaliza a proposta de
Agamémnon, mas Aquiles recusa-a, por causa do seu orgulho ferido e declara que
pretende retornar à sua terra natal, onde poderá viver uma vida longa e
prosaica, em vez da gloriosa, mas curta, se decidir ficar. Dirigindo-se a
Fénix, propõe-lhe que o acompanhe, mas este pede-lhe, de forma emocionada, que
fique. E recorda a história de Meléagro, outro príncipe guerreiro que, durante
um episódio de raiva, se recusou a lutar, para mostrar como era importante
responder aos apelos de amigos indefesos. Ájax incentiva Aquiles a conquistar o
amor dos seus camaradas e coloca a sua ausência em perspetiva, mas ele
mantém-se irredutível, sentindo ainda na carne o insulto de Agamémnon.
Quando Ulisses e Ájax regressam e
transmitem a resposta de Aquiles, os Gregos ficam perplexos e afundam-se de
novo no desespero.
- O que é a cobiça?
- É uma festa, não é?
André A.
O desfecho da guerra vai alternando, no entanto, no final do presente canto, tudo parece apontar para a derrota dos Gregos. Heitor esteve prestes a apoderar-se das suas fortificações, e os seus subordinados parecem mais determinados do que nunca. O desespero mútuo por causa da guerra que esteve na origem de um cessar-fogo anterior deixou de se fazer notar. Se antes os Troianos ansiavam pelo fim do conflito, agora querem vencê-lo a todo o custo, e o facto de acamparem, nessa noite, fora das muralhas de Troia demonstra o quão desejam combater os inimigos.
No que diz respeito aos deuses, há
que salientar o facto de Zeus, até este ponto da estória, se ter mantido em
grande parte fora da guerra, limitando a sua intervenção a supervisionar as
ações e diferendos dos outros deuses e a enviar sinais/sonhos ocasionais. No
entanto, neste momento, assume o controle direto dos acontecimentos, mudando a
sua dinâmica de forma considerável: proíbe os outros deuses de intervirem e
mergulha de cabeça na luta. Antes, as intervenções das demais divindades em
favor do lado que apoiavam acabava por manter a luta equilibrada, não dando a
nenhum dos exércitos grande vantagem sobre o outro; todavia, a entrada em cena
de Zeus a favor dos Troianos faz pender a balança claramente para o seu lado.
Esta reviravolta súbita no desenrolar da trama constitui uma mudança
significativa no que diz respeito à dinâmica humana no poema. Com efeito, tudo
se desenvolve no sentido de preparar o regresso de Aquiles ao combate. A
própria declaração de Zeus a Hera, segundo a qual apenas o retorno do líder dos
Mirmidões poderá salvar os Gregos do desaire, é sinónimo disso e dá sinal de
que o foco narrativo se vai concentrar, a breve trecho, na sua figura e ação.
Até agora, presenciámos as consequências nefastas (para os Gregos) da cólera de
Aquiles; o Canto VIII prepara o cenário para uma explosão dessa sua fúria no
campo da batalha.
Neste passo da obra, existem
diversos aspetos simbólicos que convém destacar. Os navios gregos simbolizam o
lar e a possibilidade de fuga e de regresso ao seu conforto. Assim sendo, a
intenção de Heitor de os queimar constitui uma ameaça direta à sua
sobrevivência individual e enquanto povo. Sem nenhum outro meio de fuga, eles
seriam feitos prisioneiros e massacrados. Esta possibilidade é tanto mais significativa
se tivermos em conta que a esmagadora maioria dos homens gregos se encontram
ali, tendo muito poucos ficado em casa. Além disso, aqueles são os melhores dos
Gregos. Deste modo, a sua eventual derrota implicaria que os homens e os
governantes mais destacados, fortes e nobres ali morreriam ou ficariam
encalhados, deixando as suas cidades e reinos à mercê de quem os quisesse
conquistar.
Por outro lado, a nova postura de
Zeus faz com que a balança penda fortemente a favor dos Troianos, o que torna imprescindível
o regresso de Aquiles ao campo de batalha. O palco foi devidamente preparado,
para que o protagonista da peça assuma finalmente o seu papel e ocupe o seu
lugar central.
No Olimpo, Zeus proíbe os outros deuses de interferir na guerra e, de seguida, viaja para o Monte Ida, perto de Troia. Aí, pesa o destino dos dois lados em confronto e os Gregos saem a perder. Então faz recair uma chuva de relâmpagos sobre o exército aqueu e vira a maré da batalha a favor dos Troianos, o que causa o recuo dos inimigos. Heitor e os seus comandados avançam, procurando derrubar a nova muralha dos Aqueus e queimar os seus navios. Entrementes, o marido de Andrómaca dirige.se a Nestor, que se encontra no meio do campo de batalha e é salvo por Diomedes, que o puxa para a sua carruagem bem a tempo, sendo perseguidos por Heitor. Hera, adivinhando a derrota iminente dos Gregos, inspira Agamémnon a despertar as suas tropas. O comandante aqueu reúne os seus soldados, desperta o seu orgulho, apela à sua coragem e bravura e ora a Zeus para permitir que os seus homens sobrevivam. O deus acolhe a oração e envia um sinal: uma águia transportando um cervo nas suas garras. Este sinal inspira os Gregos a lutar e eles eliminam alguns inimigos, nomeadamente o arqueiro Teucro, um dos melhores entre os aqueus, até ser ferido por Heitor e a maré da batalha mudar de novo. O comandante troiano rechaça os Gregos para trás das suas fortificações, até aos seus navios. Desesperadas, Hera e Atenas, contrariando as ordens de Zeus, preparam-se para interferir na luta, mas aquele envia-lhes a deusa Íris para os advertir acerca das consequências que tal interferência acarretará. Tendo consciência de que jamais poderão competir com Zeus, as duas deusas recuam e são informadas de que, na manhã seguinte, terão a última oportunidade de salvar o exército aqueu. E acrescenta que apenas o regresso de Aquiles poderá impedir a sua derrota,
Nessa noite, os Troianos estão tão
confiantes na sua superioridade e na vitória iminente que acampam na planície,
portanto fora das muralhas que protegem Troia, e Heitor ordena aos seus homens
que acendam múltiplas fogueiras para que os Gregos não possam fugir sem serem
vistos. A noite salva as tropas de Agamémnon da derrota, mas Heitor tem em
mente dar-lhes o golpe de misericórdia no dia seguinte.
Homero, durante a narração, estabelece vários paralelismos. No caso deste canto, os desejos e as ações dos Gregos e dos Troianos são apresentados de forma paralela. Por exemplo, Heitor ataca Ájax com uma determinada arma e este contra-ataca usando o mesmo utensílio de guerra, geralmente causando mais dano no adversário; durante a trégua, o poeta descreve a dor dos Troianos enquanto queimam os seus mortos para, de seguida, fazer o mesmo com a dos Aqueus. A existência de uma causa comum, de uma dor comum, etc., e o seu reconhecimento vinculam os inimigos aos mesmos princípios de honra.
Um desses princípios comuns
prende-se com o respeito pelo outro e a dignidade individual. Exemplo disso é o
duelo entre Heitor e Ájax, que termina com a troca de armas e com um pacto de
amizade. O equilíbrio entre valores opostos, como a amizade e a inimizade, são
uma das evidências de um indivíduo digno.
Outro desses princípios tem a ver
com a importância dada ao sepultamento dos mortos. Tal como o fantasma de
Pátroclo afirma no Canto XXIII, o espírito de uma pessoa não entraria no mundo
dos mortos até que fosse devidamente sepultado. Deixar uma alma por enterrar
ou, pior, deixá-la como carniça para os animais selvagens, era um desrespeito
para com o morto e pelas tradições religiosas da época. É tudo isto que preside
ao estabelecimento da trégua na guerra. Note-se que, no caso da Ilíada,
os corpos eram queimados numa pira, embora também houvesse casos na época de
enterramento. Os ossos sobrantes na pira eram guardados numa jarra ou caixa
decorativa, ou, em alternativa, enterrados junto ao local onde o corpo fora
incinerado.
Por último, uma chamada de atenção
para a atuação dos deuses, que volta a revelar a sua mesquinhez e
superficialidade. A preocupação, no final do canto, de Poseidon ao ver os
Gregos erigir as suas muralhas tem a ver unicamente com o facto de tal obra
poder ofuscar a muralha que ele construiu em redor de Troia. Por outro lado, a
cena chama a atenção para o respeito que é devido sempre aos deuses, pois eles
podem destruir as obras humanas com grande facilidade e por mero capricho.
O retorno de Heitor e Páris ao combate revigora as tropas troianas, mas Apolo e Atenas decidem finalizar a refrega naquele dia. Para tal, determinam a realização de um duelo. Assim, a deusa envia uma mensagem telepática a Heleno: Heitor deverá desafiar o guerreiro grego mais forte para lutar. É isso que o herói troiano faz: aproxima-se da linha inimiga e desafia-a a indicar alguém para combater consigo. Menelau é o único que tem coragem e dá um passo em frente, mas Agamémnon, consciente de que o irmão não é páreo para Heitor, dissuade-o do intento. Nestor, que é demasiado velho para responder ao desafio, exorta os seus companheiros a responder a Heitor. Nove guerreiros aqueus respondem ao chamamento e, dentre eles, Ájax é selecionado por sorteio.
Heitor intimida-se com a envergadura
do gigante, mas não cede. Ataca-o ousadamente, mas cada golpe é bloqueado pelo
enorme escudo do adversário. Ájax fere ligeiramente o troiano e derruba-o com
uma pedra. Como a noite está a chegar, arautos estimulados por Zeus cancelam a
luta. Os dois heróis concordam em encerrar o duelo e trocam presentes em sinal
de amizade.
Nenhum dos lados está ansioso por
regressar ao combate no dia seguinte. No acampamento grego, Nestor insta os
seus companheiros a solicitar uma trégua de vinte e quatro horas para enterrar
os mortos. Por outro lado, aconselha-os a construir fortificações à volta do
acampamento para proteção. No lado adversário, Príamo faz uma proposta
semelhante no que diz respeito à questão dos tombados em combate. Além disso,
Antenor, o seu conselheiro, pede a Páris que devolva Helena e, desta forma,
ponha fim à guerra, mas o príncipe troiano recusa, propondo como alternativa
devolver todo o tesouro que trouxe consigo de Esparta. Quando os Gregos são
confrontados com esta proposta no dia seguinte, compreendem o desespero dos
Troianos e sentem a sua fraqueza, recusam o acordo, mas concordam em observar
um dia de cessar-fogo para sepultar os respetivos mortos. Os Aqueus aproveitam
também a pausa para construir uma trincheira em torno dos seus navios, tarefa
que é observada por Zeus e Poseidon, que planeia destruir assim que os homens
partirem.
Este canto é marcado por duas cenas ilustrativas da brutalidade e da humanidade características da guerra. A brutalidade é exemplificada pela cena do prisioneiro troiano: Menelau está inclinado a mostrar misericórdia por ele, porém Agamémnon diz-lhe que nenhum inimigo deverá ser poupado, nem mesmo uma criança ainda na barriga da mãe. Já o encontro de Diomedes e Glauco exemplificam o outro lado da guerra, onde impera a amizade, considerada então sagrada, nomeadamente para com os hóspedes, e que passava de geração em geração. Em sentido contrário, a ação de Páris ao fugir com Helena desrespeita o princípio que deve caracterizar a relação entre um hóspede e o seu anfitrião. A cena de Diomedes e Glauco representa a vitória da amizade sobre a honra e a glória conquistadas na guerra, o que constitui um sinal de esperança para a humanidade.
Esta cena contém também um
simbolismo profundo no contexto da Ilíada. De facto, Glauco compara a
vida dos seres humanos a gerações de folhas que morrem e renascem na primavera.
Esta comparação simboliza o ciclo da vida: Glauco e Diomedes são as folhas
velhas que morrerão, que serão levadas pelo vento e esquecidas.
A ação de Heitor remete para a
importância de viver uma vida nobre e honrada e caracterizada pela conquista da
glória individual, não obstante o preço que seja necessário pagar. Andrómaca
receia que o marido morra na batalha e pede-lhe que não volte. Apesar de ele
estar consciente das terríveis consequências que a sua eventual derrota
acarretará para a sua família, a sua pátria e especialmente a esposa, e de que
a vida humana é muito frágil, pois é controlada pelos deuses, e não se pode
prever como ou quando desembocará na morte, o seu sentido de honra e o desejo
de glória não lhe permitirão seguir outro caminho. Uma vida sem honra não é
digna de ser vivida.
Este episódio tem outra função:
humanizar a figura de Heitor. Tal é conseguido em vários momentos: as palavras
que dirige a Andrómaca; a interação carinhosa com o filho; a cena em que a mãe
amamenta o filho, que evidencia o modo como a guerra separa as famílias e priva
os inocentes dos seus pais; o episódio em que Heitor assusta o filho com a
crista do capacete ao retirá-lo, que mostra como o grande guerreiro troiano,
que acaba de afirmar a sua aspiração à glória imortal e a sua vontade férrea de
lutar contra o inimigo, também possui um lado carinhoso e ternurento. Além
disso, a cena alivia a tensão dramática, pois afasta o olhar do leitor do
horror da guerra, mas, em simultâneo, enfatiza a tragicidade da mesma: a
inocência de uma criança de tenra idade versus o horror do combate.
Os últimos cantos têm em comum o confronto
entre deuses e humanos. Se estes se envolvem na sua guerra terrível, os
primeiros perdem-se nos seus próprios conflitos, muitas vezes, arcados pela
futilidade e mesquinhez. Curioso, porém, é o facto de as disputas entre as
divindades olímpicas acarretarem mais violência entre os homens. Por outro
lado, as lealdades e as motivações dos deuses mostram-se mais superficiais do
que as dos humanos. Por exemplo, não cumprem os pactos que estabelecem com
grande facilidade, como acontece com Ares, o deus da guerra, que se tinha
comprometido a auxiliar os Gregos, mas acaba por se passar para o lado troiano.
Quando a guerra não lhes corre de feição, reclamam do árbitro, ou seja, de
Zeus. Em suma, a imagem que ressalta dos conflitos no Olimpo é a de uma família
disfuncional.