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domingo, 28 de abril de 2024

Análise do poema "Água suja", de Bruna Beber

    O título do poema aponta, desde logo, para algo desagradável. De facto, o grupo nominal «água suja», nomeadamente o adjetivo, sugere sujidade, impureza, poluição, uma imagem visualmente desagradável que constitui uma metáfora da degradação da vida e/ou do ambiente. Note-se que a água, tradicionalmente, representa a pureza ou a purificação. Basta pensar no simbolismo do batismo cristão ou da lavagem de roupa ou outros objetos. No entanto, nesta composição poética perde esse significado, essa essência.
    Apesar de se tratar de um poema muito breve (o título, seguido de quatro versos), a sua interpretação está longe de ser «fácil». O primeiro verso aponta para o futuro («Ano que vem»), mas com que sentido? Algo que vai acontecer ou que se espera que aconteça? Ou estaremos perante a ideia do adiamento de algo? Ou, ainda, sugerirá a esperança depositada em algo ou alguém?
    O segundo verso não é menos complexo: «fantasia de carne». O nome «fantasia» aponta para a ideia de imaginação, ilusão, mas o que significa aqui o outro nome («carne)? Tratar-se-á de uma imagem representativa do corpo humano? Ou será da realidade crua e visceral? Por outro lado, essa «fantasia de carne» é «de sol temperada». Temperar carne ao sol significa curá-la ou secá-la ao sol. Se assim for, estaremos na presença de uma alusão a uma tradição cultural, algo que não é incomum na poesia de Bruna Beber. Porém, o último verso acrescenta outro tempero: o ódio. Deste modo, temos uma fantasia de carne, temperada de sol com ódio. Ou seja, há aqui um contraste entre o simbolismo do sol – vida, energia, calor – e do ódio, um sentimento carregado de negatividade, porém, a estrela e o sentimento surgem associados. Convém também ter presente que o ódio é um sentimento poderoso e extremamente destrutivo.
    Associando o verso final ao título, podemos inferir que o poema aborda a deterioração de algo que é / era puro, ou que o tempo transforma ou afeta as nossas experiências e perceção das coisas e do mundo que nos rodeiam.

Caracterização de Tom White

    Tom White é o agente responsável pela investigação respeitante aos Osage e, posteriormente, o diretor da penitenciária de Leavenworth. Um investigador cuidadoso e um diretor corajoso e determinado, White é o protagonista da obra e a sua bússola ética, mesmo que a investigação que lidera deixe muitas mortes por solucionar.
    O modo como Graan descreve White aproxima-o da figura de um pistoleiro do Antigo Oeste, um homem do passado. Ele mesmo parece ter consciência disso e é por essa razão que se junta ao Bureau of Investigation em 1917. O romance do Velho Oeste, muitas vezes associado ao caso Osage, é pouco apelativo para o agente, que sabe que a realidade difere imenso dos mitos. Criado no Texas juntamente com três irmãos, o seu pai era o xerife do condado de Travis e, como a família morava nas instalações que compreendiam a prisão, Tom cresceu fazendo perguntas sobre a justiça. Desde bastante jovem, acreditava que a pena capital era um homicídio judicial, o que revela desde logo muito do seu caráter.
    Face ao que foi exposto, é fácil concluir que White não corresponde à imagem de agente ideal do Bureau, porém estamos na presença de um investigador cuidadoso e persistente. Na década de 1920, os agentes não tinham autorização de porte de arma, todavia, familiarizado com os perigos típicos dos condados rurais remotos, White ignorava regularmente essa proibição, não obstante preferir evitar empregar a violência. Do progenitor herdou a noção de que era importante tratar as pessoas com igualdade, o que coloca em prática durante a investigação que lidera, desde logo selecionando uma equipa que inclui um agente nativo americano e trabalhando diligentemente para resolver o caso. Além disso, dá instruções à sua equipa para destrinçar os factos da ficção e procurar evidências que possam sustentar acusações e levar a condenações efetivas. A sua tenacidade e determinação acabam por produzir resultados. Outro traço relevante que mostra o seu caráter é o facto de não ceder ao suborno ou a qualquer forma de corrupção. É um homem íntegro, honesto, sério.
    Estas qualidades acompanham-no quando deixa o Bureau e se torna diretor de prisão, primeiro em Leavenworth, uma penitenciária federal, e depois em La Tuna, no Texas. A atestá-lo estão os depoimentos de presidiários, que o recordam como um homem que procurava o melhor nas pessoas, incluindo os criminosos mais empedernidos, buscando sempre a sua reabilitação e redenção. Isto não significa, porém, que se tratava de um homem mole ou brando: a sua coragem e a sua bravura levaram-no a acalmar sozinho um motim na prisão e, com prejuízo para si mesmo, salvou vários reféns durante uma fuga da penitenciária.
    Além disso, apesar do seu comportamento heroico em diversas situações, não era narcisista ou egocêntrico, evitando chamar a atenção para a sua pessoa. Também não passava informações sobre os presos para a imprensa e empenhou-se em dar destaque aos agentes que trabalharam consigo no caso dos Osage. Quando se deu conta de que os Estados Unidos estavam a esquecer a provação a que a tribo nativa tinha sido sujeita, procurou escrever um livro sobre o problema, no entanto viu-se confrontado com a falta de colaboração de J. Edgar Hoover, que, ao contrário de White, tinha um ego bastante inflado e desejava que a atenção ficasse centrada na própria pessoa ou na agência, por isso não lhe forneceu qualquer material, pelo que a obra ficou na gaveta.

sábado, 27 de abril de 2024

Análise das 24.ª, 25.ª e 26.ª partes da crónica 3 de Assassinos da Lua das Flores

    Estes três capítulos, chamemos-lhes assim, estabelecem que a arte da dança – primeiro uma peça tradicional e depois ballet – é um elemento fundamental da cultura osage, algo que já partilharam com o mundo, visto que duas irmãs nativas, Maria e Marjorie Tallchief, foram bailarinas excecionais. De facto, Maria, nascida em 1925, tornou-se a primeira bailarina da Ópera de Paris, bem como a primeira bailarina norte-americana a alcançar o estatuto de estrela internacional, destacando-se pelo seu desempenho excecional em papéis principais de balés clássicos como O Lago dos Cisnes e o Quebra-Nozes. Além disso, foi uma das fundadoras e principal bailarina do New York City Ballet, onde trabalhou de perto com o coreógrafo George Balanchine, que foi seu esposo durante alguns anos.
    Uma das temáticas centrais do final da obra de Graan é a questão de como viver entre culturas, que molda a experiência vivida pelo povo Osage no século XXI, que continua a lutar contra os efeitos do trauma histórico e contra sentimentos de alienação. Ao longo das décadas, a tribo sofreram diversas perdas sobretudo por causa da migração forçada e da destruição de práticas tradicionais, através da eliminação das manadas de búfalos que viviam nas planícies centrais, os desafios contemporâneos pelos Osage são, simultaneamente, semelhantes e diferentes dos que os seus antepassados enfrentaram. Com efeito, atualmente continuam a ter de lutar para proteger e assegurar os seus direitos, como é exemplificado pela ação judicial que colocam à Enel, uma empresa italiana do ramo energético que é acusada de violar a sua soberania tribal, bem como pela ação contra o governo norte-americano, tendente ao ressarcimento dos danos sofridos pelo povo. Profundas mudanças culturais, englobando regulamentação atinente à extração de petróleo, bem como a migração, têm vindo a esvaziar cidades anteriormente prósperas. No entanto, como uma mulher idosa Osage proclama nas derradeiras páginas do livro de Graan, alguns osage continuam ligados à sua terra porque, saturada com o sangue dos seus antepassados, ela ainda grita por justiça.
    Obter justiça para todas as vítimas é impossível, pois o tempo, no seu imparável curso, eliminou evidências e ocultou conexões, desde logo em razão do falecimento de descendentes de testemunhas e criminosos. O autor, afirma nas páginas finais, que a história é implacável, mas também falível, pois depende do ser humano para a construção do seu conteúdo e para a sua continuação. Se anteriormente os assassinatos tinham sido amplamente conhecidos, em pleno século XXI estavam praticamente esquecidos ou perdidos graças à indiferença ou ao preconceito racial, ou simplesmente abafados pela erupção de outros acontecimentos, tidos como mais importantes. Assim sendo, é necessária vigilância para manter a história viva e permitir que ela faça o seu trabalho.
    Outro dos motivos que impede a obtenção de justiça plena pelos crimes cometidos há um século é o desconhecimento do número real de assassinatos. Embora o período do Reinado do Terror tenha sido circunscrito à década de 1920, Graan descobre que há outros crimes, ocorridos na anterior e na subsequente, que se enquadram no padrão dos anos 20. A contagem oficial de vítimas – vinte e quatro – está inequivocamente errada e, muito provavelmente, representa apenas uma pequena percentagem do número real de pessoas mortas, ou deixadas morrer, durante esse período de crime organizado e sistemático. Assim sendo, a figura de William Hale pode ser vista como a vilã central do livro, porém o leitor tem de tomar consciência de que ele é apenas um dos muitos assassinos. Dos outros, alguns eram maridos e esposas que envenenaram lentamente os seus cônjuges ou companheiros; outros eram tutores que negavam cuidados médicos aos doentes. A ambição desmedida que norteou as ações de Hale enquanto orquestrava uma vastíssima conspiração motivou igualmente outras pessoas, cujos crimes talvez não tenham sido tão bem delineados, mas não foram menos letais. A terra do Condado de Osage pode continuar a clamar por justiça e reparação, no entanto o livro conclui tristemente que é improvável que receba uma resposta adequada.

Caracterização de Mollie (Wah-kon-tah-he-um-pah) Burkhart

    Mollie Burkhart é um membro da nação Osage, nascida em 1886. Ela é uma de quatro irmãs e é mãe de três filhos (James ou Cowboy, Elisabeth e Anna) e dona de uma grande fortuna, obtida graças aos direitos sobre terras no Condado de Osage, situado no estado norte-americano do Oklahoma. Embora nativa, é casada com um homem branco – Ernest Burkhart – e fala inglês. Quieta, paciente, mas determinada a bter justiça para as suas irmãs assassinadas, Mollie é uma personagem central da história da sua tribo e do livro de David Graan. Depois do julgamento, divorcia-se de Ernest e casa novamente com James Cobb. Morre de causas naturais em 1937, aos 51 anos.
    De facto, Mollie Burkhart é a protagonista da narrativa sobre os assassinatos de que foi vítima a sua tribo, desde logo porque consegue sobreviver à onda de mortes e porque está diretamente conectada com as vítimas e os vilões da história. Não obstante, não são muitas as informações conhecidas sobre a mulher. Quando Tom White assume a direção do caso, fica surpreendido por os agentes que o antecederam na investigação não tenham interrogado mais profundamente Mollie, visto que muitos dos seus parentes tinham sido vítimas do Reinado do Terror. O silêncio a que ela se submete parece constituir um reflexo do estereótipo do índio norte-americano, porém, na realidade, ele decorre essencialmente dos preconceitos de género e de raça que vigoravam na época. Seja como for, a imagem que se desprende de Mollie é a de uma mulher comprometida com a sua família e as suas tradições culturais. A sua determinação em conseguir justiça para os seus familiares não é mais do que uma extensão desse comprometimento.
    Como foi referido anteriormente, Mollie nasceu em 1886, bem antes do enriquecimento dos Osage, e foi criada de modo tradicional e de acordo com os costumes da sua tribo, até atingir a idade adulta, apesar de ter frequentado durante algum tempo a escola, o que lhe permitiu aprender os costumes norte-americanos e falar inglês. Apesar desse contacto com uma cultura exterior, Molly espera casar-se de acordo com a tradição da sua tribo e tem mesmo um breve casamento juvenil com Henry Roan, porém apaixona-se por Ernest e acaba por desposá-lo, seguindo os seus sentimentos, resultando desse matrimónio três filhos, que ama profundamente. Evidência desse amor é o facto de mandar embora a filha mais nova para o proteger, quando membros da sua família começam a morrer repentinamente e de forma suspeita.
    A imagem com que ficamos de Mollie é a de uma mulher compassiva, carinhosa e atenciosa. Confirmando esta visão, no final do livro de Graan, a sua neta, Margie, compartilha uma lembrança que o seu pai conservava da sua mãe tratando dela quando estava com dores de ouvido. Mesmo tendo consciência de que não é a filha predileta da mãe, Mollie cuida de Lizzie. Outro facto curioso prende-se com o gosto de dar festas que possui, nunca despendendo, todavia, grandes somas de dinheiro para tal, incluindo a receção de parentes do seu marido claramente racistas.
    O amor pelo marido leva-a a não acreditar, de início, nas acusações que o levam a tribunal. De facto, ela continua comprometida com o esposo, mesmo após a sua prisão por conspirar contra a própria família. Num dos poucos momentos em que Mollie se faz ouvir, ela expressa a sua determinação de que os culpados sejam punidos, bem como a convicção profunda de que Ernest não é um deles. Assim, escreve breves cartas consoladoras ao esposo na prisão, porém a sua atitude muda radicalmente quando ele confessa a sua culpa nos crimes. Deste modo, no momento em que é levado após ouvir a sentença, a expressão da mulher é descrita como «fria».
    A vida de Mollie descrita ao longo do livro é marcada pelo sofrimento e pela dor, culminando no momento em que ganha consciência de que o marido é um criminoso que atentou contra membros da sua própria família, contudo, no final, ganha contornos de felicidade, já que se volta a apaixonar e se casa. Além disso, consegue que a sua guardianship seja removido. Quando encontra a morte, em 1937, está livre por completo da teia da conspiração.

Resumo da 26.ª parte - 3.ª crónica: O sangue grita

    David Graan regressa aos Arquivos Nacionais, onde pesquisa os tutores para descobrir quantos tutorados foram listados como falecidos, descobrindo números que o deixam chocado, sobretudo porque a maioria das mortes nunca foi investigada. Mesmo que algumas dessas pessoas tenham encontrado a morte de forma natural, o escritor vislumbra ali o padrão do assassinato generalizado. Caso após caso, um tutorado morre abruptamente, o que permite ao seu tutor branco reclamar a sua fortuna.
    Deste modo, o número oficial de vítimas do período do Reinado do Terror pode cifrar-se nas 24, todavia, de acordo com a pesquisa de Graan acerca dos tutorados que morreram durante essa época, o real supera largamente essa quantia. À mesma conclusão chegam outros investigadores, como William Stepson e Dennis McAuliffe Jr.
    A última pessoa a ser visitada por Graan é Mary Jo Webb, que mantém a esperança de descobri o que sucedeu ao seu avô, Paul Peace, o qual suspeitava estar a ser envenenado pela sua segunda esposa, uma mulher branca. Embora o homem consiga escapar às garras da mulher, acaba por ser atropelado por um carro e morrer. O escritor promete ajudá-la, e o livro termina com uma citação dela de um trecho do Génesis: a terra grita com o sangue derramado sobre si.

Resumo da 25.ª parte - 3.ª crónica: O manuscrito perdido

    Em 2015, os Osage processaram uma empresa energética italiana por violar os termos do Ato de Alocação de 1906 com as suas turbinas eólicas, pondo a nu o facto de as mudanças ocorridas, sobretudo no início do século XXI, no campo da indústria energética terem afetado profundamente a tribo. Graan vira o foco deste capítulo da sua obra para um manuscrito intitulado O Assassinato de Mary DeNora-Bellieu-Lewis, compilado pela sua neta, Mary Lewis,e que reúne diversas informações sobre a vida e o desaparecimento da mulher em 1918. O seu corpo foi descoberto em 1919, tendo um dos seus companheiros masculinos confessado tê-la assassinado com um martelo, de modo a apossar-se dos pagamentos referentes aos direitos de terra da mulher. Depois de conhecer este novo crime, Graan conclui que, se as datas tradicionalmente associadas ao Reino do terror fossem alteradas de forma a incluir as mortes de Mary Lewis, ocorrida em 1918, e a do avô de Red Corn, em 1931, o número de Osage mortos atingiria cifras bem mais assustadoras do que as oficiais.

Resumo da 24.ª parte - 3.ª crónica: Dois mundos

    Em 2013, David Graan assistiu a uma representação de Wahzhazhe, uma dança típica dos Osage que compreende uma história na nação nativa, incluindo o Reino do Terror, e enfatiza a dificuldade de viver entre dois mundos e duas culturas. Após a encenação, Graan encontrou-se com Red Corn, que o convidou a visitar o museu da tribo, no qual tomou contacto com uma carta que William Hale escreveu a partir da prisão, explicando aos Osage como ele era seu amigo. Além disso, a mulher conta também ao escritor que o seu avô morreu abruptamente em 1931 e que, antes disso, o homem tinha confessa a diversas pessoas que estava a ser envenenado pela sua segunda esposa, uma mulher branca. Red Corn acrescenta que o número de vítimas mortais do Reinado do Terror foi muito superior ao reconhecido oficialmente.
    Convém também ter sempre presente que diversas mortes não foram solucionadas. O próprio escritor estava plenamente ciente disso e decidiu investigar a de Charles Whitehorn. Apesar de a equipa de White se ter debruçado sobre a mesma, nunca ninguém foi acusado do crime, por isso manteve-se sem solução. Quando Graan se debruça sobre o caso, constata, com estupefação, que havia dados suficientes para o resolver. Com efeito, a esposa de Whitehorn, Hattie, casou-se novamente com um homem de seu nome LeRoy Smitherman, algo que os detetives acreditavam ser uma manobra para ter acesso aos bens de Charles. Aparentemente, Hattie e Smitherman planearam o crime com o auxílio de uma outra mulher, Minnie Savage. Posteriormente, Smitherman abandonou Hattie, que caiu nas garras de J. J. Faulkner, que a chantageou, acabando a mulher por ficar bastante doente e só se salvou da morte certa graças à ajuda das irmãs, que a subtraíram aos cuidados de Faulkner.

Análise das 22.ª e 23.ª partes da crónica 3 de Assassinos da Lua das Flores

    A terceira secção, ou crónica, da obra situa-se no século XXI, coincidente com o momento da investigação do seu autor. Assim sendo, a narrativa história termina e destaca-se a investigação jjornalística de Graan que levou à escrita do livro. Por outro lado, a pessoa narrativa também muda, pois agora o texto é narrado na primeira, de modo a que o escritor compartilhe com o leitor as suas conversas com membros contemporâneos da tribo Osage, bem como a sua investigação nos Arquivos Nacionais em buscas de pistas e evidências que permitam solucionar os assassinatos. Neste ponto, há uma diferença entre a postura adotada por Graan e por White, dado que este, quando tentou, sem sucesso, escrever uma obra sobre o assunto, nunca quis colocar a sua pessoa debaixo dos holofotes, pois considerava não ser o foco da história, ao contrário do primeiro, que assume o papel central na terceira parte do seu texto, nomeadamente ao dar conta do seu trabalho exaustivo em busca de elementos e dados históricos que fornecessem respostas para o que se passou cerca de um século antes.
    Outro aspeto relevante da terceira crónica prende-se com o facto de David Graan dar grande enfoque à cultura da tribo. De facto, ele visita o seu museu, onde contacta com a história ancestral, e participa numa dança tradicional, que atrai membros que vivem longe. O tempo introduziu mudanças nos costumes e cultura dos Osage, como, por exemplo, no I’n-Lon-Schka ou nas danças cerimoniais (que, agora, incluem figuras femininas), porém há elementos que se mantêm, como passos estabelecidos, trajes e tambores, permitindo assim uma simbiose cultural entre o passado e o presente. Ao compartilharem essas experiências enquanto comunidade tribal, os Osage tecem laços duradouros entre si, mesmo que as suas vidas os obriguem a viver em locais díspares e afastados da terra mãe. Muitos dos locais onde os seus ascendentes viveram na década de vinte do século anterior e onde tiveram lugar os crimes estão agora abandonados, o que enfatiza a necessidade de serem desenvolvidos esforços no sentido de o património da tribo ser protegido e conservado, para que não desapareça também. Trata-se de manter uma memória e uma herança cultural.
    Tal como sucede em muitas obras de cariz policial, há em Assassinos da Lua das Flores um protagonista e o seu antagonista, concretamente Tom White e William Hale, porém David Graan parece ter encontrado também o seu: H. G. Burt, o presidente do banco, que tinha estado fora do radar durante a investigação conduzida pelo Bureau na década de 1920, apesar de haver evidências do seu possível ou até provável envolvimento na trama. Deste modo, Graan conclui que Burt terá trabalhado ativamente contra os Osage durante todo o decénio, o que é enfatizado pelo facto de terem sido registados crimes não solucionados que ocorreram após a prisão de Hale, portanto houve outros criminosos que prosseguiram a sua atividade e permaneceram impunes. Tal como William Hale, o presidente do banco era um homem que se via como intocável, porém, ao contrário daquele, essa ilusão parece nunca ter sido beliscada. Na qualidade de diretor da instituição bancárias, usou instituições financeiros contra os nativos, frequentemente como um mero agiota. Por outro lado, a mudança de foco para Burt chama a atenção do leitor para outras vítimas que não as focadas nas duas primeiras partes, como, por exemplo, George Bigheart ou W. W. Vaughan, o que permite entender a vastidão de vítimas atingidas na época.
    Outro dado interessante consiste na consciência de que, quando consideramos as vítimas, não podemos limitá-las à época do Reinado do Terror, pois os netos e bisnetos dos que o viveram na carne também sofrem são afetados pelo que aconteceu então. De facto, há nos descendentes um sentimento de desconfiança ou de insegurança que advém do que aconteceu com os seus familiares décadas antes. Por outro lado, os diálogos encetados por Graan permitem-lhe acessar a memórias profundas, como as de Mollie e Ernest Burkhart. De facto, a neta de ambos, Margie, compartilha com o escritor as memórias carinhosas dos seus progenitores, nomeadamente o modo como a mãe acalmava ternamente quando a filha sofria dor de ouvidos. As lembranças do pai eram, todavia, menos calorosas. Depois de ter sido libertado da prisão, Ernest lutou para regressar ao Condado de Osage, o que causou nova grande dor à sua família. Tal como sucedeu com Hale, o indivíduo parecia não compreender os danos que tinha causado e procurou imiscuir-se na sociedade como se tivesse um direito inquestionável a tal. Deste modo, Ernest exemplifica o modo como os brancos sentiam ter uma espécie de direitos adquiridos, os quais faziam parte da motivação que esteve na génese dos crimes e permaneciam vivos mesmo após os anos passados atrás das grades. Parecendo compreender todos estes factos, o filho de Ernest, Cowboy, desrespeita o último pedido do pai, no sentido de espalhar as suas cinzas no Condado de Osage, optando por as atirar, ainda dentro da urna, de uma ponte, para serem levadas e esquecidas.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Análise do poema "Vozes-mulheres", de Conceição Evaristo

     Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946. Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorada pela Universidade Federal Fluminense, iniciou a publicação da sua obra poética em 1990, no número 13 do Cadernos Negros, uma antologia editada anualmente pelo Grupo Quilombhoje, de São Paulo.

    Este poema narra a trajetória de mulheres negras no Brasil, nomeadamente a consciência de ser negra e mulher. Desde logo, o título da composição poética evoca a questão das vozes e da sua pertença: as mulheres. Sob o olhar da sociedade patriarcal, vozes caladas ecoam no poema. O uso do plural representa o coletivo, o sujeito poético a percorrer a memória. A voz que é destacada logo no início é a da bisavó, ou seja, trata-se de uma voz que não é exterior ao que é “narrado”; pelo contrário, é a de alguém que viveu por dentro as situações, um passado marcado pelo sofrimento que não se pode esquecer. Por outro lado, o início do poema sugere, desde logo, a diáspora e a desumanidade e crueldade do tráfico negreiro. A voz da bisavó do sujeito lírico ecoa através do tempo – “criança”, símbolo da inocência, da fragilidade e da vulnerabilidade – e remete-nos para os “porões do navio”, uma referência evidente aos navios que faziam o transporte de escravos entre o continente africano e o Brasil e que nos coloca perante o horror do sofrimento e da desumanização. A forma verbal “ecoou”, que marca o passado, que se presentifica na leitura do poema, repete-se no verso quatro, reforçando a ideia de que as experiências da bisavó ainda ressoam no presente, nomeadamente a dor e o sofrimento, que permanecem vivos através da memória, percorrendo a distância do tempo e tornando-se presente. O lamento remete para a imagem inicial do poema, para a questão da voz, que se faz presente no texto, mas sem possibilidade de alterar o destino, pois constitui um mero lamento de “uma infância perdida”.

    A primeira estrofe, em suma, remete para o campo da memória coletiva, dado que o sujeito poético não viveu o que relembra, porém o ecoar do passado ainda está presente na sua ação atual, dá sentido à vida. Assim sendo, estes versos iniciais colocam o leitor face à figura da mulher que dá origem a uma linhagem e cuja voz ainda ecoa no presente familiar.

    Na segunda estrofe, a voz da bisavó é substituída pela da avó, que “ecoou obediência / aos brancos-donos de tudo” e que representa a geração seguinte, aquela que viveu sob condições adversas experimentadas já em terras brasileiras. Atente-se, desde logo, na união por meio de hífen entre os nomes “brancos” e “donos”, como se representassem uma única coisa. A obediência forçada de que “falam” os versos levam-nos até aos escravos recém-libertados que debandaram das lavouras e das senzalas e que, seduzidos pelas oportunidades nas cidades que estavam em processo de transformação, anunciando novos tempos, e que os poderiam absorver como mão de obra, se viram confrontados com a discriminação que provinha da cor da sua pele.

    A terceira estrofe centra-se na geração seguinte: a da mãe. Deste modo, a “narrativa” vai-se aproximando do presente e afastando do passado. A voz da mãe traduz uma resistência silenciosa, uma revolta que é mantida em segredo ou expressa subtilmente. Na época, procurava-se que o Rio de Janeiro se afastasse da condição arcaica de vila (uma designação toponímica que remetia para o período de colonização) e se alcandore ao estatuto de urbe. Para tal, procede-se a uma renovação e modernização da cidade, através de demolições (metáfora do apagamento: desmemoriando-se, o Brasil segue em direção ao “progresso”). Tenha-se presente que a poeta nasceu numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, uma das áreas mais valorizadas da Zona Sul de Belo Horizonte. Com a passagem do tempo, barracas e respetivos moradores foram sendo progressivamente removidos, a avenida foi prolongada, ergueram-se novos prédios e os becos e as vielas desapareceram fisicamente, existindo apenas na memória de Conceição Evaristo. Este processo de urbanização de múltiplas localidades conduzirá, com alguma frequência, à formação das tristemente famosas favelas.

    Voltando ao poema, a voz da mãe ecoa baixinho, o que significa que não foi silenciada, embora se exprima de forma quase impercetível. Seja como for, o relevante destes versos prende-se com a sugestão da existência já de ecos de revolta, o que quer dizer que os oprimidos começam a ganhar consciência da exploração a que foram sujeitos ao longo do tempo. As condições do e o local de trabalho (“no fundo das cozinhas alheias”) indiciam a posição social da mãe, relegada para o trabalho doméstico na casa dos “colonizadores” e que não tem como esconder os disfarçar a cor da pele no contexto da cidade que os rejeita por não se enquadrarem no projeto de modernização das cidades. Se as “trouxas” podem simbolizar a pobreza e a opressão, as “roupagens sujas dos brancos” constituem uma metáfora da injustiça e da opressão a que os homens brancos sujeitam as mulheres negras. Por outro lado, a referência à favela representa a marginalização e a segregação socioespacial a que são submetidas.

    A quarta estrofe traduz a voz do próprio sujeito poético, chegando-se assim ao presente. Essa voz exprime a sua perplexidade, expressa através dos versos, da poesia, “com rimas de sangue”, uma metáfora que exprime a violência, a dor e o sofrimento experimentados, e “fome”, nome que pode ser interpretado de forma literal ou enquanto metáfora da injustiça. Por outro lado, a sua voz tem na origem o som que provém da bisavó, que passa pela avó e pela mãe e se torna presente na sua fala. O advérbio “ainda” reforça a ideia da repetição, de um fazer ancestral.

    Já a voz da quinta estrofe tem o seu quê de profética: ao apresentar a filha, o “eu” poético “narra” não apenas o presente, mas também o porvir, o futuro. A filha é apresentada como uma colecionadora e guardiã das vozes das mulheres que viveram antes dela; a sua voz guarda em sim todas as vozes. A filha recolhe em si as “vozes mudas caladas”, isto é, as que foram oprimidas, silenciadas ou ignoradas, bem como as que se queriam fazer ouvir, mas ficavam “engasgadas nas gargantas”.

    Se houver um tempo em que a voz foi lamento, silêncio, sussurro, imagem poética, agora ela não é apenas fala, mas faz-se ato, representando a consciência de si e um fazer que se quer cidadão, visto que fala e age, representa um coletivo de mulheres que a antecedeu. A voz do sujeito poético “recolhe em si” (reiteração) “a fala e o ato” (a união da palavra e do agir, simbolizando um movimento em direção à mudança e à liberdade), “O ontem – o hoje – o agora” – esta sucessão de advérbios representa a continuidade do tempo e da experiência. A reiteração da expressão “Na voz de minha filha” reforça a importância da voz da filha, que olha para o presente como sequência do passado e a preparação do futuro. A filha será portadora da ressonância das gerações passadas e a sua voz transporta em si a promessa de uma “vida-liberdade” (novamente o hífen a ligar intimamente dois conceitos). A condição para se ter, de facto, liberdade é a de agregar às vozes do passado, lembrar a sua ascendência.

    O poema é construído em torno das vozes de várias gerações sucessivas de mulheres da mesma família, começando com a bisavó e terminando com a filha do sujeito lírico. Cada voz carrega em si as memórias e experiências de cada época, criando, assim, um mosaico da história e da resistência da mulher negra.

    A voz da bisavó e a referência aos “porões do navio” remetem para a dolorosa história do tráfico negreiro entre África e o Brasil. Por outro lado, os ecos dos “lamentos / de uma infância perdida” que veicula sugerem a brutalidade da escravidão que lhe roubou (e a tantas outras crianças) uma existência normal de criança.

    A voz da avó representa a geração de mulheres que esteve sujeita ao domínio e à opressão dos “brancos donos-de-tudo” e ecoa “obediência, indiciando a subjugação e a falta de controlo sobre a própria vida. Ela trabalha como empregada doméstica, leva uma existência dura e marginalizada, mas começa a ecoar alguma revolta.

A voz do “eu” lírico ecoa sangue, violência, dor, provações, e reflete a luta contínua contra a injustiça e a opressão. Por outro lado, a poesia constitui um meio para expressar a dor e a luta da comunidade a que pertence.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Análise do poema "Os sonhos não podem ser", de Cláudia Dias Chéu

 
Os sonhos não podem ser
experimentados em conjunto.
Vamos sozinhos durante o sono.
Dormir é a prova irrevogável
de que somos individuais.
A viagem que fazemos de noite
ausculta bem o batimento
da solidão.

 
Os sonhos são “fenómenos” individuais e intransferíveis. Trata-se, pois, de uma experiência claramente solitário e não compartilhável com as outras pessoas no que respeita à sua experimentação. O sono é um estado fundamental para qualquer pessoa, pois possibilita a restauração do corpo e da mente. Por outro lado, é um momento em que o indivíduo se volta para o seu mundo interior, constituindo, portanto, um símbolo da individualidade humana.
O sono é também apresentado como uma evidência incontestável da individualidade de cada ser humano. O adjetivo “irrevogável” sugere a ideia de que essa espécie de verdade é imutável, constituindo um traço característico da condição humana.
Os três últimos versos do poema descrevem, metaforicamente, o sonho como uma viagem noturna que revela a solidão e que sugere a viagem que é a vida, que cada pessoa percorre, trilhando caminhos pessoais e inexplorados. Claramente, o “eu” poético recorre à linguagem da área da Medicina (“ausculta”, “batimento”), para nos sugerir a ideia de uma introspeção profunda que o ser humano faz sempre que se entrega ao sono, como se este permitisse um encontro íntimo com a nossa solidão quando dormimos e quando sonhamos.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Análise do poema "As mães", de Cláudia Dias Chéu

 
As mães dormem
de olhos abertos
caçam à dentada
os medos dos filhos
e iluminam a noite
com fogo do coração.

 
Cláudia Dias Chéu é uma escritora portuguesa nascida em Lisboa, em 1978. Neste poema, exalta a figura materna e o seu papel em relação aos filhos, consequentemente o amor materno.
O verso inicial coloca logo a mãe no centro da composição poética, neste caso dormindo, um momento eminentemente de paz, sossego e tranquilidade. No entanto, o segundo entra, aparentemente, em contradição com o anterior, pois a mãe – qualquer mãe – dorme “de olhos abertos”. O que significa essa aparente contradição? Significa que, mesmo em repouso, permanece vigilante relativamente aos filhos, atitude que revela a constante atenção e preocupação com o seu bem-estar e a sua segurança.
Além disso, elas “caçam à dentada”, o que configura uma imagem que remete para uma certa agressividade e ferocidade. De facto, as mães são apresentadas como caçadores que buscam e destroem ativa e determinadamente os medos dos filhos. O recurso ao nome “dentada” implica uma ação direta e poderosa que tem como finalidade remover as ameaças que rondam os filhos. Deste modo, relacionando os versos 3 e , o papel materno visa enfrentar e afastar as inseguranças e ansiedades daqueles que elas deram à luz.
No penúltimo verso, as mães são retratadas como fontes de luz e esperança, dispersando a escuridão e trazendo proteção e conforto. A noite, associada à escuridão, logo ao desconhecido e ao medo, é derrotada pela presença e pela ação maternais. E tudo isso tem uma razão, uma motivação, um fundamento: o amor. Assim, através de uma metáfora reconhecida – a do fogo –, atribui ao amor maternal a razão da atitude protetora e do cuidado das mães, uma chama fortíssima que nunca se extingue.

domingo, 21 de abril de 2024

Resumo da 23.ª parte - 3.ª crónica: Um caso não encerrado

    A pesquisa de Graan mostra que a investigação do Bureau contém lacunas, e o autor questiona-se se Hale foi mesmo o responsável por todas as mortes que ocorreram durante o período conhecido como o Reinado do Terror. De facto, o escritor não encontra quaisquer evidências de que os assassinos que trabalharam para Hale tenham liquidado McBride ou Vaughan, por exemplo. Investigando o caso deste último, Graan encontra-se com Martha e Melville Vaughan, que possuem informações sobre a sua morte. Há que atender ao facto de William Hale já se encontrar atrás das grades no momento em que Vaughan foi morto; contudo, Marta e Melville acreditam que o homem deseja Vaughan morto e sugerem que Grann investigue H. G. Burt, o presidente do banco, que desviou dinheiro das contas de Rose.
    Deste modo, Graan visita os Arquivos Nacionais dos EUA no Texas no sentido de pesquisar informações sobre Burt e descobre o processo que Rose moveu ao diretor do banco em 1923 no valor de dez mil dólares, o qual foi inicialmente rejeitado (a mulher ganha eventualmente cinco mil). O escritor encontra conexões entre Vaughan, Burt e George Bigheart. Nos documentos analisados nos Arquivos Nacionais e noutros locais, Grann descobre que Burt concedeu empréstimos aos Osage a taxas exorbitantes e que se envolveu em fraudes de seguros e outras transações financeiras ilegais. Como é que o indivíduo conseguiu tal? Relativamente aos nativos, socorreu-se de um meio legal – a tutela – para cometer fraude contra eles. Grann descobre ainda que Burt era o tutor da filha de Bigheart, o que lhe permitiu ter acesso à fortuna do pai da rapariga. Antes de deixar os Arquivos, Graan encontra uma última pista importante. Um informador secreto disse a um agente do Bureau of Investigation que Burt era o responsável pelo assassinato de Vaughan. Na posse dessas e de outras evidências, o escritor comunica a Martha que talvez tenha solucionado o assassinato do seu avô. Ela chora, mas fica agradecimento pelo caso ter encontrado finalmente uma solução.

Resumo da 22.ª parte - 3.ª crónica: Terras fantasmas

    Na terceira parte, David Graan desvela que a memória dos acontecimentos dos anos 20 do século XX se foram dissipando ao longo do tempo. Como parte da sua pesquisa sobre os assassinatos dos Osage, em 2012, visita o Osage Nation Museum para se encontrar com Kathryn Red Corn, a sua diretora. A mulher mostra-lhe as exposições disponíveis no museu, que retratam a tribo Osage na época da onda de crimes, nas quais se destaca uma fotografia que ostenta um buraco no centro onde outrora figurava William Hale, o «diabo». A diretora admite que a dor resultante dos acontecimentos de há quase um século ainda é muito real para vários nativos. Durante uma visita subsequente, Graan participa em danças cerimoniais da tribo, conhecidas por I’n-Lon-Schka. O escritor encontra-se com Margie Burkhart, neta de Mollie e Ernest e filha de James Cowboy Burkhart, que lhe revela as memórias afetuosas que o pai possuía sobre a sua mãe. Porém, as lembranças de James sobre o pai são marcadas pela melancolia. Margie revela que, após ter sido agraciado com a liberdade em 1937, Ernest regressara ao condado de Osage, porém o seu estado de homem livre é efémero, dado que foi novamente capturado em razão de um furto que praticara, motivo por que lhe foi negado o regresso a Oklahoma.

    Por sua vez, em 1947, vinte anos após o encarceramento, William Hale é libertado por causa da sua idade avançada – 72 anos – e pelo comportamento exemplar enquanto detido no cárcere. Quando a Ernest, após conhecer de novo a liberdade, suplica o perdão de Oklahoma e, apesar das inúmeras vozes que se fazem ouvir contra essa possibilidade, o seu apelo é atendido e o homem regressa ao condado de Osage. Após o seu falecimento em 1986, James Burkhart não atende ao último desejo do pai, o de ter as suas cinzas espalhadas pelo condado, descartando-as a partir da ponte.

    Na infância de Margie, a riqueza do petróleo esvai-se e tempos árduos  aproximam-se. No entanto, surgem novas fontes de renda, nomeadamente casinos e reparações financeiras que o governo federal é compelido a restituir à tribo. Guiando o escritor pelas vastidões da pradaria, Margie leva-o até ao local onde Anna foi alvejada. Além disso, a mulher revela a Graan que Mollie e os seus filhos deveriam ter estado na residência de Rita e Bill na fatídica noite em que se deu a explosão, porém uma dor de ouvido de James Cowboy Burkhart, forçou-os a ficar em casa, salvando-os inadvertidamente da morte. Deste modo, o pai de Margie cresceu sabendo que o seu próprio pai havia conspirado conta a sua vida.

Análise das 20.ª e 21.ª partes da crónica 2 de Assassinos da Lua das Flores

    William White, John Ramsey e Bryan Burkhart não são condenados à primeira, mas tal não se deve a falta de provas. De facto, a equipa liderada por White construiu um caso convincente porque sustentado em evidências, nomeadamente a confissão de Ernest, mas a questão a questão racial interfere em todo o processo. Desde o início do julgamento, os agentes receiam que jurados caucasianos não condenem um homem branco por matar uma pessoa nativa americana e, de facto, os seus temores concretizam-se. Com efeito, seja por puro e simples racismo, seja por causa da forte influência de Hale, o primeiro julgamento termina num impasse, com um júri indeciso. A realidade da época era chocante: assassinar uma pessoa não brancanão era considerado um crime muito grave, daí que Ramsey tivesse conseguido assassinar membros da tribo Osage enquanto sob a proteção das consequências e da punição resultantes desse ato. De facto, a surpresa que o homem evidencia a propósito da sua eventual condenação exemplifica a sensação de segurança que ele sentia possuir.

    A presença de Mollie no tribunal pode ter desempenhado um papel importante na imposição de limites ao poder da discriminação e do racismo. Embora não existam testemunhos diretos que possam esclarecer como a mulher se sentiu na ocasião, isto é, enquanto ouvia as evidências apresentadas contra pessoas em quem confiava e amava, Graan observa que ela se envolveu numa teia de silêncio, especialmente quando Ernest, o seu marido, admitiu em tribunal que toda a sua família havia sido morta, deixando-a sozinha, sem ninguém para a confortar ou partilhar do seu sofrimento. Por outro lado, se é verdade que Mollie influenciou os jurados que estavam dispostos a condenar as pessoas que mataram os seus familiares, também não o deixa de ser que a sua postura oferece um poderoso testemunho de como as ações de um indivíduo podem moldar o mundo.

    O desfecho da lamentável história leva White de regresso à prisão. De facto, o ex-agente tinha vivido na penitenciária do condado de Travis enquanto criança e, no final do caso Osage, aceita o cargo de diretor da penitenciária federal de Leavenworth, o que acarreta diversas questões à sua esposa, nomeadamente no que toca ao facto de criar os filhos naquele ambiente, porém o caráter e a determinação do marido parecem afastar esses receios. As suas inúmeras qualidades enquanto investigador adequam-se perfeitamente ao seu novo papel, pois trata todos com respeito e em igualdade, incluindo Hale e Ramsey, que chegam àquela prisão alguns meses após ter iniciado o seu novo cargo enquanto diretor prisional. Grann socorre-se das palavras de ex-presos, segundo os quais White, no papel de diretor, considerava a reabilitação dos prisioneiros o fulcro da sua ação. Embora fosse contrário à pena de morte, cumpria igualmente essa feição da sua atividade profissional, supervisionando execuções conforme exigido pela lei.

    Não obstante ter abandonado o FBI, White continua preocupado com a sorte da equipa de agentes que o assistiu durante as investigações no condado de Osage, procurando que sejam tratados de forma justa e recebam o crédito que merecem. Todavia, esse desejo conflitua com o investimento de Hoover na questão da sua própria reputação, que é descrito pelo autor da obra como um homem que se foi tornando um ditador ao longo das cinco décadas em que foi diretor do FBI. Avarento, ambicioso e calculista, não agradece aos agentes e recusa a White o acesso a materiais que lhe permitiriam escrever uma história dos assassinatos de Osage. Até ao fim da sua vida, White permaneceu um defensor do coletivo, mostrando-se sempre disposto a defender aqueles que eram ignorados e esquecidos, em suma, para aqueles que não tinham voz.

Resumo da 21.ª parte - 2.ª crónica: A casa quente

    Na penitenciária de Leavenworth, entre muros que testemunham segredos e silêncios, a família de White vive nas instalações da prisão, o que deixa a esposa de White bastante incomodada. As instalações estão sobrelotadas e, no calor abrasivo de agosto de 1929, eclode um motim, que o próprio recém-diretor aplaca. Com diligência, ele semeia a esperança de redenção, trabalhando com afinco no sentido de melhorar as condições de vida e oferecer aos presos oportunidades de se reabilitarem. No desempenho da sua função, tem pouco contacto com Hale, que trabalha na fazenda do estabelecimento prisional, e recusa-se apassar informações aos repórteres que continuam a manter interesse no caso. Apesar de julgado, condenado e encarcerado, o prisioneiro nunca admite a participação na onda de crimes, mas afirma ironicamente que tudo o que fez foi uma simples oportunidade de negócio.

    No Condado de Osage, a vida, como um rio após a tempestade, procura o seu curso: as pessoas procuram reconstruir as suas vidas, incluindo Mollie, mulher resiliente que se volta a casar, desta vez com um homem chamado John Cobb e, com a força de uma guerreira, reclama o direito de ser senhora do seu destino financeiro.

    Em 1931, desenrola-se novo drama: membros do gangue Spencer, num ato de desespero, fazem White refém e fogem da prisão. Um detido chamado Boxcar dispara sobre White, atingindo-o no peito, mas o destino, caprichoso, permite que ele sobreviva e, mesmo gravemente ferido, salva a vida dos outros reféns. Os fugitivos são contidos e White decide assumir uma função menos extenuante e perigosa da prisão de La Tuna, no Texas.

    A segunda crónica termina como começou, isto é, com Hoover e o Bureau, afora designado como Federam Bureau of Investigation – FBI. Hoover, ansioso por garantir queo seu nome seja diretamente associado ao sucesso do FBI, tece a sua narrativa e nega a White e aos seus agentes o reconhecimento merecido por toda a investigação a que procederam. Assim, limita-se a redigir um conjunto de notas educadas, mas frias e distantes. Quando White o procura em busca de informações destinadas à escrita de um livro sobre o caso Osage, o diretor do FBI mostra-se pouco cooperante e prestativo. Fred Grove, a pena que se oferece para auxiliar White, escreve uma obra ficcionada sobre os eventos, mas o texto histórico que este planeara nunca é acabado.

    White passa os seus últimos anos no rancho da família no Texas, sobrevivendo a todos os seus irmãos. Despede-se da vida em dezembro de 1971, aos 90 anos, deixando atrás de si um legado de coragem e resiliência.

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