quinta-feira, 22 de agosto de 2019
quarta-feira, 21 de agosto de 2019
Capítulo IV de A Sibila
1. Doença
prolongada (um ano) de Quina aos 15 anos (nova analepse)
Esta doença
grave e nunca totalmente explicada vai provocar uma profunda transformação na
vida de Quina e uma mudança da atitude da mãe, que passa a protegê-la e a
mimá-la: tem o seu carinho e admiração, bem como dos vizinhos. Quando recupera,
revela uma dupla faceta que a acompanhará até aos 58 anos:
-» faceta materialista: é a
administradora competente e sagaz do património familiar que o pai, entretanto
falecido, tinha desbaratado e que ela consegue reaver e até ampliar;
-» faceta espiritualista: a
doença permite-lhe assumir-se como vidente e detentora de poderes espirituais
para além da sua própria compreensão.
Esta mudança
concretiza-se nos seguintes aspetos:
1.1.
Tomada de consciência das suas potencialidades
A ternura que
agora recebe da mãe vai promover um sentimento de autoconfiança, o que lhe
permite proceder ao treino das suas capacidades humanas, em termos de projeção
social, com um ascendente inegável sobre os outros, aliado ao espírito de
enganar, para seu proveito e vaidade. Toma consciência das suas
potencialidades, porém de modo intuitivo e não racional. A sua verticalidade e
a sua força são fortemente desenvolvidas, ao mesmo tempo que toma consciência
de quanto "a sua natureza vibra com o afeto". Quer dizer, rodeada de
todas as atenções e cuidados em virtude da doença, Quina apercebe-se da
alteração e decide tirar todo o partido da situação (p. 48). Por outro lado, o
isolamento prolongado (um ano) motivado pela doença, permite a descoberta das
suas capacidades e começa a sua conquista do poder económico.
1.2.
Atenção ao comportamento dos outros, que lhe permite conhecer melhor os que a
rodeiam, descobrir as imperfeições, enfim, ir gradualmente ganhando influência
sobre a vontade e as opiniões alheias, por quem Quina era tomada por mágica
(pp. 50-51). Todavia, devido à sua sabedoria ser puramente intuitiva, ela nunca
tomaria consciência do alcance das suas potencialidades espirituais. É o início
da conquista do poder espiritual.
1.3.
Recuperada a saúde, entrega-se à missão providencial da reconstrução da
Vessada.
2. O tema do
campo versus cidade (pp. 46-48): Narcisa Soqueira, Elisa Aida vs. filhas do tio
José
. preparação para a vida
.
fertilidade
* Campo . privações
.
trabalho
.
autenticidade
.
futilidade
.
esterilidade
* Cidade . ócio
.
superficialidade
.
vaidade
.
artificialismo
Capítulo III de A Sibila
1.
Caracterização de Estina (p. 32)
* educação cuidada
* prendada (sabia tecer)
* "era bonita" –
"boca delicada e um tanto carnuda"
- "nariz tão perfeito (...) impessoal"
- "pés (...) bem feitos"
* confidente da mãe
* era a preferida da mãe
* mais mole do que Quina
* bem disposta e de natureza
honesta ("temperamento incorruptível")
* indolente e preguiçosa
("pousona")
* optava pelas tarefas que lhe
permitiam permanecer sentada
2. Retrato de Quina
. amizade, proteção e altruísmo
por Estina, apesar da desigualdade de tratamento da mãe
. combativa
. grande capacidade de
argumentação
. aparência e forma de estar
masculinas
. sentido de justiça, ainda que
tivesse de se alienar dos sentimentos
. independente (pp. 32-33)
. fisicamente
- "não era bonita"
- era pequena como o pai
. moralmente
– falas capciosas
- génio equilibrado
- mentirosa e chicaneira
- gostava de grandes relações
- não tolerava o que não conseguia obter
- acudia a todos os trabalhos agrícolas
- tinha fé nas artimanhas dos advogados
- pensava que podia sempre iludir a lei
- cultivava-se em coisas do foro
- fazia-se importuna
- corria de um juiz a um
influente e deste a um delegado
- desejava apressar a justiça
- comprava testemunhas
- impunha teorias
- desprezava os legistas que
não a favoreciam
- considerava letra morta os
seus artigos (pp. 36-37)
Em suma, Quina
era calamitosa e insuportável, frívola, trabalhadora, astuta, velhaca,
intriguista. Podemos mesmo considerá-la, a nível moral, maquiavélica, pois os fins
justificam os meios. Note-se que o seu retrato é o oposto do de Estina.
3. Retrato de
Maria da Encarnação
* Maria é a
expressão individualizada de uma sociedade matriarcal, onde a única função do
homem é a reprodução da espécie. Ela é uma espécie de força de compensação e a
garantia de continuidade da família, pelos cuidados que, atentamente, dedica
aos filhos e às condições económicas da casa: "(...) Maria, que era a
parte vigilante, a chama oculta sob a cinza do lar, mas fulcro de continuidade
e de calor, mereceu do destino uma irónica compensação, pois seria o seu nome
que se perpetuaria no único dos filhos que deixaria descendência. (...) Naquela
casa, donde o homem ficava ausente largos dias e onde o pulso dele parecia
indeciso ou sem vontade, sentia-se sobrecarregada com um grande fardo que
talvez a sua vida inteira fosse impotente para carregar." (pp. 33-34)
* Pelo seu
espírito pouco atento a fenómenos relacionados com a metafísica, passa e segue
alheia ao que vai além da simplicidade da vida quotidiana: "(...) Seria
com o nome dela que a casa da Vessada continuaria; mas isto, que apenas poderia
ter um significado romântico, ela, se o chegasse a compreender, não o poderia
apreciar, pois não passava, par si, dum facto circunscrito às coisas que tanto
desprezava ou que nem sequer pressentia." (p. 33)
* Não obstante
a frieza e o seu carácter estoico, Maria é possuidora de sentimentos nobres
que, com a exigência das situações, manifesta com espontaneidade. Preocupada
com a opinião pública, defende a sua imagem social de mulher moralmente
exemplar e despreza a humildade da redenção dos pecadores: "(...) E foi
Maria quem a socorreu e quem, furtando-se de ser vista (...). Se ela lhe
tivesse pedido perdão, experimentaria decerto mais constrangimento. Detestava o
impudor da humildade, (...)" (p. 35)
* Mostra-se
irrefletida e irracional quando se lhe apresentam grandes dificuldades:
"(...) Esquecia a razão, e arruinava-se prazenteiramente até ao último
ceitil; até ao último momento esperava vencer e recuperar tudo, e, se lhe
explicavam miudamente as impossibilidades desse resultado, não
compreendia." (p. 36)
* A veneração
que Maria tem pelo marido, aumentada após a morte deste, leva-a a querer dar
proteção e abrigo ao filho de Francisco e de Isidra: "(...) O seu
bastardo, filho de Isidra, era recebido com honras, numa aliança grave,
profunda, ao facho patriarcal que continuava a velar as gerações que se
desdobravam." (p. 39)
4. Noção de
propriedade e de casamento
Há um grande
sentido de defesa da propriedade privada, de posse: "Entretanto, a casa
viu-se envolvida numa dessas querelas, história terrível, de águas de justiça,
e que o povo parece tomar como um derivativo do vício do jogo. Maria, e logo
depois Quina, litigavam como se jogassem." (p. 36)
É a ideia da
defesa incondicional dos direitos de propriedade, entendida como herança
sagrada a transmitir ao herdeiro seguinte.
Por seu lado, o
casamento é visto como forma de enriquecimento e em que o amor é secundário e
até supérfluo: "(...) E o homem que ela amava desistira do casamento,
medida esta tida por demais natural entre o povo do campo, para quem o
casamento é mais do que o imperativo da espécie - é a união de dois
patrimónios.
- As mulheres
só gostam de tratantes - dizia ela, como se anunciasse um teorema de
geometria." (p. 39)
Dois episódios
exemplificam esta conceção: o casamento de Estina com Luís Romão desfaz-se por
falta de património, de dote, da parte dela; o mesmo acontece com Quina e Adão,
que, juntamente com o avô, representam o tipo dos agiotas, profundamente
gananciosos e materialistas.
5. Espaço
social
É evidente a
crítica à emigração de cidadãos portugueses para o Brasil que, contrariamente
às promessas de riqueza associadas a este país, promove, em muitos casos, a
penúria e as doenças mortais, mesmo em jovens de tenra idade: "Um deles,
Abílio, morreu ao passar apenas a adolescência, de regresso já duma tentativa
de fortuna no Brasil." (p. 33)
"O exemplo
dessa fortuna resolveu a ida de Abílio para o Brasil. Tinha pouco mais de treze
anos, era loiro e muito bonito. Voltou ainda antes da morte do pai, para
acabar, esgotado de suores, emborcando frascos de xaropes vários, de agriões,
de caracóis e de cenoura." (p. 38)
Além deste aspeto,
o Brasil simboliza a causa da existência de uma burguesia ostensiva e
prepotente proveniente das camadas sociais campesinas que passam, no seu novo
estado, a renegar as origens: "O filho mais velho de Narcisa Soqueira -
ela tinha dum segundo casamento uma enteada e um outro filho - voltara do
Brasil, rico, com faíscas de brilhantes a despedirem dos dedos e das
abotoaduras todas, com zaragatices de bordados nos coletes, muito pachá,
querendo café - moca, dizia - ao dejejum e fazendo olhos redondos para as coisas
do campo." (p. 37)
De facto, esta
personagem representa os emigrantes bem-sucedidos materialmente que gostam da
ostentação e o seu comportamento denota artificialismo, ideia já aflorada nas
páginas 25 e 26 quando são focadas as personagens do tio José e do conde de
Monteros.
6. A visão
negativa dos homens e a sociedade matriarcal
Os homens são
apresentados como seres negativos, marialvas e aventureiros, desbaratadores de
fortunas: "Mas todos eles eram muito do pai: volúveis, fracos com aduladores
e com mulheres, moralmente a tender para a cobardia das
responsabilidades...".
"Começavam
a fazer-se visíveis os resultados da fanfarronice estroina de Francisco
Teixeira. O desequilíbrio doméstico tomava, com o tempo, uma feição mais grave.
Os gastos do amo, o seu profundo desleixo das terras, obrigavam agora a família
a uma estrita temperança."
"Naquela
casa, donde o homem ficava ausente largos dias...".
Este
comportamento de Francisco, fazendo da casa apenas pousada e da esposa apenas
reprodutora da espécie, a mãe dos seus filhos legítimos, irá ter consequência
negativas na personalidade de Quina (aversão aos homens, como fonte de ruína
económica da família).
Destes factos
resulta a conceção matriarcal da sociedade, o exercício dum poder matriarcal,
onde a mulher detém o poder e responsabilidades administrativas e económicas.
Todavia, a
figura do pai não era contestada. Essa contestação restringia-se à consciência
de cada personagem: "Nestas contendas, que não passavam nunca de uma
reserva orgulhosa entre marido e mulher, não era permitido aos filhos tomar
partido. A própria Maria castigava com mão expedita aquele que esboçasse uma
crítica contra o pai. E, contudo, todos sabiam que era por culpa da sua boémia
(...) que a sua casa se afundava."
7. Morte de Francisco
Teixeira
A sua morte,
muito chorada pela família, ocorreu num momento crítico, em que estava iminente
a perda da própria Vessada. O facto de, com a sua morte, ainda ser possível
evitar a mutilação completa do património familiar contribui para que, apesar
de tudo, Francisco ficasse, para sempre, como o chefe querido e respeitado da
família (pp. 38-39). De facto, a sua morte marca uma promessa de riqueza para a
sua família e constitui a única alternativa para esta se libertar da situação
precária e das ameaças judiciais da perda da Vessada.
8. A
fragmentação do tempo
O tempo do
discurso é predominantemente fragmentado nestes capítulos iniciais. O discurso
vai seguindo, ao longo de todo o romance, um movimento de vai-e-vem, sem regras
estabelecidas, facto este compreensível, se lembrarmos que a recuperação do
passado cabe a Germa, que conversa com Bernardo.
Observem-se as
constantes analepses e prolepses, as elipses, os sumários, as pausas.
Em suma, o
tempo é descontínuo, desordenado, isto é, o narrador (des)organiza o tempo
cronológico através dos processos referidos no parágrafo anterior.
9.
Narrador/narradora: voz omnipotente e omnipresente
Germa é a
personagem que tem a seu cargo fazer a longa retrospetiva da vida da família.
Ela é, portanto, a narradora (homodiegética), mas é frequentemente substituída
por um narrador omnisciente, ou seja, que sabe mais do que as personagens e se
desloca facilmente no espaço e no tempo.
Este narrador
omnisciente manifesta-se também como omnipotente, conduzindo a narrativa à sua
maneira, fragmentando a ordem cronológica, recorrendo à analepse e à prolepse,
dirigindo-se ao leitor num estilo familiar, fazendo constantes digressões.
9.1.
A opção por narrar em vez de mostrar
A obra
aparece-nos como um conjunto de histórias que se vão acumulando, narradas por
alguém que só diz delas o que quer e quando quer. Daí o facto de muitas delas
serem interrompidas para serem retomadas posteriormente. A própria
caracterização de Quina vai sendo feita à medida que a ação, o tempo e as
condições avançam e se transformam. O narrador dá saltos no tempo, utiliza o
resumo, não se preocupa com uma estruturação sólida da intriga, o importante é
o narrar e a atenção ao pormenor.
Capítulo II de A Sibila
1. Relações
familiares conflituosas
O casamento de
Francisco e Maria é atribulado, dado o carácter dele e as constantes aventuras
amorosas:
"Ele
não tinha mudado. As suas aventuras eram inumeráveis, e o lar significava para
ele um poiso cujo encanto resultava sobretudo de manter a toda a hora as portas
franqueadas sobre o mundo." (p. 20)
"Assim,
os primeiros anos foram muito amargos..." (p. 21)
Nasce Estina
que, porque "ao crescer se revelasse detentora de perfeições e afinidades
que seriam réplica da própria mãe...", teve carinho e afetos por parte de
Maria, uma educação cuidada e foi poupada à dureza dos trabalhos agrícolas e
domésticos, ao contrário de Quina, que sofreu carências afetivas e a quem eram
destinadas as tarefas mais duras da vida doméstica e agrícola, sendo autêntica
moça para todo o serviço numa casa de lavoura. Para ela, a mãe era extremamente
autoritária e as relações entre ambas não eram boas.
Ao contrário,
Quina sente um amor intenso pelo pai, com quem mantinha uma aliança secreta, em
virtude da preferência da mão ser votada a Estina: "Talvez porque ao
nascimento desta se ligassem mais vivos pormenores sentimentais, ou porque a
criança ao nascer se revelasse detentora de perfeições e afinidades que seriam
réplica da própria mãe, Maria distinguiu-a desde sempre, fosse no desvelo da
educação ou no poupar-lhe as canseiras mais pesadas do lar." (p. 22)
"Apenas o
pai ela tinha por aliado, (...) quando Quina passava, os olhos pregados no
chão, sob o acicate da mãe sempre implicante, sempre manejando o fueiro e a
chinela com uma expressiva agilidade." (p. 23)
Não obstante o
pai significar para ela um herói, nutre, desde criança, repulsa pelo abandono
das suas responsabilidades no lar e pelas aventuras que Francisco não deixaria
nunca de viver: "Ele era também o seu herói, (...). A fama dos seus amores
– às vezes com que deploráveis pormenores! - chegava-lhe juntamente com um eco
de suspiroso desdém que Quina repelia como vivas injúrias aos atos de seu
pai." (p. 24)
Por outro lado,
Quina condena a sensibilidade piegas das mulheres que a rodeiam e defende a
integridade do homem: "(...) ela aplaudia com fanatismo a integridade do
homem na sobriedade das suas leis, junto das quais as lágrimas duma mulher não
passavam de superfluidades sentimentais. A corte feminina sempre tão numerosa
em que vivia, incluindo suas tias e casas continuadas por elas, causava-lhe
irritação, pois ela lastimava desde menina o ser considerada um número entre a
descendência de raparigas submissas e incapazes que se destinam a uma aliança
tutelada, e que, mesmo atingindo o matriarcado, eram vencidas." (p. 24)
2. A noção de
propriedade
O povo é-nos
apresentado como defensor incondicional dos direitos de propriedade, de tal
forma que é capaz de se transformar num ser intolerante e cruel caso esses
direitos sejam ameaçados. Qualquer atitude que vise destruir o direito de
propriedade anula, por completo, a importância de todos os restantes valores de
que qualquer homem possa ser detentor: "A verdade é que entre o povo a
noção de propriedade está por demais arreigada para que um ladrão, por mais heroico
ou altruísta, não seja julgado como infame. Um assassino é tolerado, pode
partilhar o pão dos seus vizinhos, pode fazer esquecer o seu crime. Um ladrão
lega a toda a sua descendência um ferrete indelével, porque, se o homicida as
mais das vezes, obedece a uma paixão, um impulso resgatável e quase nunca
repetido, o ladrão traz no sangue, e assim o comunica, o fogo da tentação que
as circunstâncias, mais ou menos, ou velam ou expandem." (p. 29)
3. Espaço
social
José do Telhado
tem na obra uma função importante dentro do espaço social: representante do
tipo dos marginais, funciona como denúncia da desigualdade entre ricos e pobres
– influência neorrealista.
segunda-feira, 19 de agosto de 2019
Capítulo I de A Sibila
1. Tempo: 1953,
momento em que Germa e Bernardo dialogam, recuando então a 1870, data do
incêndio, elemento despoletador da memória de Germa.
2. Narrador:
A
Sibila é uma longa retrospetiva da vida de uma família feita por uma
personagem secundária, Germa, quando, sentada na velha rocking chair da
sua tia Quina, já falecida, a evoca com nostalgia, apesar da incompreensão e
dos atritos que, muitas vezes, ensombraram as suas relações. Esta evocação
começa e acaba na sala da casa da Vessada, com um diálogo entre duas
personagens: Germa e seu primo Bernardo Sanches. De facto, mais do que
configurador de uma diegese, o discurso tende a assumir-se como mimese,
aparentando construir-se sob duas formas:
- um diálogo
que inicia e termina a narrativa;
- um amplo
monólogo intercalar de Germa que terá Bernardo como destinatário interno.
De facto, Germa
será narradora de 2.º nível, narradora homodiegética e intradiegética: "E,
bruscamente, Germa começou a falar de Quina." (p-9)
Mas a
personagem narradora é frequentemente substituída por um narrador de 1.º nível,
narrador extradiegético e omnisciente que possui um conhecimento mais vasto que
o de Germa: "Era em setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava
o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos
que amarrotam folhetos amontoados em todos os sobrados." (p.9)
Estamos, pois,
perante uma narrativa da responsabilidade de dois narradores que entre si estabelecem
um compromisso e relações subtis, de tal forma que não chegaremos a saber com
rigor onde começa um e termina o outro. De qualquer forma, Germa é uma
personagem, e o que narra, parte da sua memória; o narrador de 1º nível retoma
a sua voz para intervir, comentar, aprofundar e guiar o narratário. São duas
vozes que se cruzam, se complementam, se chocam e se interrogam. Daqui resulta
um discurso fragmentado, descontínuo, digressivo.
2.1.
A opção do narrador
O estatuto do
narrador condiciona sempre a sua narração. Se a opção for por mostrar os
acontecimentos, os locais em que se dão e as personagens que os realizam,
teremos uma narrativa que privilegia as cenas; o leitor como que vê o que se
passa como num palco ou num filme. Se a opção for por contar, a sua voz, será
omnipotente e omnipresente, esperando que o leitor aceite a boa fé dessa voz,
que diz o que lhe apetece e quando lhe apetece. Só resta ao leitor aceitar ou
recusar, porque não vê.
Ora em A
Sibila, o narrador assemelha-se a um contador de histórias, privilegiando em
absoluto o contar. Daqui resulta o facto de se assistir a uma acumulação de
episódios, digressões sucessivas e a inexistência de uma intriga à maneira
tradicional.
2.2.
Narração com base na memória
O romance abre
com o diálogo entre Germa e o seu primo Bernardo Sanches sobre a casa onde se
encontram e a sua transmissão de geração em geração. Mas depressa Germa já
quase não o escuta porque "(...) subitamente o ambiente ficara repleto
doutra presença viva, intensa, familiar, e que aquela sala, onde pairava um
cheiro de priogana e de maçã, se enchia de uma expressão humana e calorosa,
como quando alguém regressa e pousa o olhar nos antigos lugares onde vivem, e o
seu coração derrama à sua volta uma vigilante evocação." (p. 9)
É esta evocação
que vai dar lugar à narração. Entre o início da evocação e fim do universo
evocado passam-se cem anos. Toda a narrativa é formalmente apresentada como uma
longa analepse na memória de Germa.
2.3.
A tradição oral
A obra
inicia-se com o diálogo entre Germa e Bernardo Sanches e termina com o mesmo
diálogo. Tal situação parece filiar o romance numa tradição de narrativas
orais, o que, aliás, é favorecido pelo narrador de 1º nível cuja opção foi
contar e resumir em vez de mostrar e de construir cenas. A sua voz é
omnipotente e omnipresente, estabelecendo a unidade entre personagens e
episódios díspares.
3. Personagens –
caracterização (p.7)
. Bernardo
Sanches:
-
descendente de uma aristocracia rural
-
primo de Germa
-
burguês intelectual
-
verbosidade oca
-
espírito fechado e narcisista
-
medíocre
. Germa:
-
paciente
-
tímida
-
inspira confiança
4. Início da
grande analepse (p. 9)
. "Joaquina Augusta nascera nessa mesma casa da Vessada,
setenta e seis anos antes" (p. 9) – 1877.
. Nascimento de
Quina: apresentava uma mancha escura no pulso esquerdo, sinal de predestinação.
De constituição débil, teria, desde logo, que lutar pela própria sobrevivência,
de alguma forma, ameaçada por marcas de predestinação. (p. 9, 2.º parágrafo).
. Casamento
apressado e em segredo de Francisco Teixeira e Maria da Encarnação, nova
analepse, dentro da grande analepse, seguida de outra analepse que relata a
forma como se conheceram, tinha ela nove anos.
4.1.
Caracterização das personagens
Bela,
pertencente a uma família de gente trabalhadora e honesta (pp. 9-10), Maria
representa o tipo de mulher forte que conduz o lar pelos seus próprios passos,
de que assume inteira responsabilidade, por esta não poder ser compartilhada
com o homem com quem casara. Apesar deste aspeto, mostra-se submissa, refletida,
altruísta, face ao marido e não vacila perante o desamparo a que ele a vota:
"Gostava
[Francisco Teixeira] das mulheres submissas, mansas (...)"; "Ele
desacompanhava-a muito, deixava-a sozinha na casa (...)" (p. 17).
Francisco
Teixeira, marido de Maria da Encarnação, "o maior conquistador da
comarca", é um homem sedutor, egoísta, pouco trabalhador, irresponsável,
cujas condições de vida lhe permitem levar uma vida de boémia, mas, em breve, levará
a casa à ruína. Este comportamento obrigará Maria e, posteriormente, Quina a
assumirem a chefia da administração da casa a todos os níveis: "Francisco
Teixeira era, de facto, um galã feliz. Possuía ele casa de lavoura e bens ao
luar de sobejo interesse, e que administrava mal, pois era feirante por índole,
amigo de gozos, vida larga, gostando de presumir grandezas, generosidades e
essa bazófia genuína, mais feita de discrição do que de alardes pimpões."
(p. 10).
De facto, o retrato
da sociedade rural que nos aparece em A Sibila deixa a condução da família e da
casa às mulheres, a quem cumpre responsabilidades, quer a nível económico, quer
educacional, quer de trabalho.
Apesar da sua
coragem física e habilidade no manejo do pau, do seu "muito nervo",
Francisco era, psicologicamente, um fraco, vulnerável perante as lágrimas
femininas, daí que mantenha várias relações amorosas depois de casado:
"Estava nessa altura Francisco Teixeira no seu apogeu de sedutor..."
(p. 11, 4.º parágrafo).
O casamento sigiloso
de ambos vai ficar a dever-se ao romance de amor de Francisco com Isidra.
5. Reflexões do
narrador (de 1.º nível)
5.1.
Sociedade
a) Denúncia da
aristocracia campesina detentora de qualidades negativas como o ócio e o baixo
nível cultural: "Um largo espelho de caixilho de esmalte branco com
filetes de oiro refletia aquela reunião, os homens medonhos, com coletes
acolchoados, e que falavam, preguiçosamente, das finanças e de política, as
santas criaturas que cochichavam agravos de parentela e de criados, empinando
pelas ventas dedadas de rapé." (p. 16).
b)
Solidariedade do povo perante a desgraça alheia: "(...) o fogo apenas
poupara os caldeiros de ferro que, esbraseados, tinham rolado sobre os charcos
do quinteiro, fazendo soltar uivos de espanto ao povo que acorria com escudelas
de água e cântaros que pareciam pairar magicamente à cabeça das mulheres."
(p. 18).
5.2.
Cultura popular
a) As tradições
e as festas populares são-nos descritas com naturalidade e têm uma importância
decisiva, para formar um contexto popular que acaba por influenciar o
comportamento das personagens: "Conhecera Francisco Teixeira numa tarde de
romaria que ela presenciava da sacada aberta sobre o largo da povoação em
festa; vestida de tafetá negro, sem joias; a trança dos cabelos um tanto solta
nas espáduas, abanava-se com um grande leque de moiré e azeviche, contemplando
com o olhar indolente a procissão que descia do adro, as torres dos andores
oscilando, com as suas fitas e as suas palmas de papel tremendo e voando entre
as copas poeirentas das acácias." (p. 14).
b) Tal como
Camilo, Agustina foca a rebeldia popular, ilustrando a índole do nosso povo com
instintos e atitudes rebeldes, mesmo quando se trata de fazer sangue em
discórdias de rua: "Subitamente, um redemoinho de desordem ferver,
alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do
poviléu, e o escândalo ainda morno..." (pp. 14-15).
5.3.
Arte
Os artistas são
considerados representantes da inutilidade e da excentricidade: "(...) o
artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma
inutilidade imediata. (...) Os artistas, que,
em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se
distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses
reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa." (p. 8).
5.4.
Religião
Agustina
retrata-nos a figura do abade de aldeia, sem projeção social significativa,
surgindo como uma figura marginalizada por não ter representatividade no espaço
social: "(...) Sob o pálio, o abade, recolhido, mansamente esperava, entre
as opas vermelhas cujas pregas o sol riscaria de violeta e as filas de crentes
ajoelhados sobre os lenços de bolso." (p. 15).
6. Linguagem
6.1.
Os símbolos – herança do Simbolismo
* Incêndio:
símbolo da purificação, imprescindível à continuidade da família em lugar
preservado de influências nocivas. Tal como o ouro, o metal precioso, é
purificado pelo fogo, também a casa foi purificada das manchas e impurezas pelo
incêndio, necessário à continuidade da família:
"Um
incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura
primitiva."
(p. 7)
"Acontecera
pouco tempo depois da chegada de Maria." (p. 18)
* Terra/campo:
símbolo da autenticidade e ingenuidade e da fertilidade, da pureza original do
homem, em contraste com a cidade, símbolo do artificialismo, da
degenerescência: "A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado
aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada
herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendida da personalidade
que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas
imitações." (p. 7)
* Maçãs
(símbolo bíblico): símbolo da beleza e do encanto femininos (Eva) e da
sabedoria e fecundidade, coexistindo com as sucessivas gerações da família de
Quina, como se se tratasse de um microcosmos feminino, onde existe consonância
entre a existência de pessoas e objetos: "(...) sobrado, onde se
acumulavam pilhas de maçãs sustidas por tábuas muito esfareladas de
serrim." (p. 8)
* Rocking
chair: símbolo quer dos pólos opostos de Quina - ternura e vaidade – , quer
do fluir do tempo, fazendo lembrar o pêndulo do relógio. Pelo seu movimento
oscilatório, e, consequentemente, ascendente, promove a subida espiritual, ou
melhor, a ascese para onde a personagem principal sabia conduzir-se.
* Mancha cor de
sépia: sinal de predestinação: "Era uma menina de aspeto pouco viável,
roxa, moribunda, e que apresentava no pulso esquerdo uma mancha cor de
sépia(...)". (p. 9)
* Número 7:
tradição cultural de antiguidade bastante remota (semana, lua, vida dos gatos,
etc.), apresenta um significado pleno de valor místico, cuja simbologia é
universal como o próprio homem: "Era a segunda filha que vingava num
matrimónio de sete anos(...)" (p. 9)
; "(...) em toda a parte há
sete cores e sete ventos, e o homem é só um." (p. 37)
A este número,
bem como ao 5, convergem numerosas superstições populares. Representam até
atributos infernais para toda a vida: "Melhor é chamar, pois, Eva às
quintas ou sétimas filhas, e que Adão sejam os infantes todos que venham
perfazer esses fatídicos números." (p. 40)
7. A
fragmentação do tempo
Da existência
de dois narradores e do facto de o narrador de 1º nível retomar a voz de Germa,
narradora de 2.º nível, para intervir, comentar, aprofundar e conduzir a
narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica com o recurso à
analepse e à prolepse, etc., resulta um discurso fragmentado, descontínuo, digressivo.
7.1.
Analepses e prolepses
- Grande analepse: nascimento
de Quina (p. 9, 3 períodos).
- Analepse dentro dessa
analepse: primeiro encontro entre os pais de Quina (pp. 9-11).
- Prolepse dentro da segunda
analepse: 11 anos depois, dá-se o casamento quase inexplicavelmente secreto dos
pais de Quina, que continuam a viver separados (pp. 11-12).
- Episódio seguinte, dentro da
segunda analepse: Maria foge para casa do marido (pp. 12-13).
- Outro episódio dentro da mesma
analepse: o pai de Quina liga-se a uma amante, Isidra (p. 13).
- Analepse do episódio
anterior: história da mãe e da infância de Isidra (pp. 13-14).
- Analepse do mesmo episódio,
mas posterior à anterior analepse: descrição das circunstâncias em que Isidra conheceu
o pai de Quina (pp. 15-17).
- Regresso à vida conjugal
entre os pais de Quina (pp. )
- Nova analepse: o incêndio na
casa dos pais de Quina (pp. 18-19).
- Grande prolepse: a mãe de
Quina enviuvou há 40 anos, está velha, tonta e confunde um seu filho com o
falecido marido.
7.2. Elipses: "Onze anos depois, casavam." (p. 11)
7.3.
Sumários: "(...) As mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no
ciúme umas das outras para o privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse
as esperanças para sempre. Os seus amores com Maria passaram despercebidos,
tanto ele temia o escândalo das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas
ameaças." (p. 11).
Classificação de A Sibila
. Romance regionalista (na
linha das novelas de Camilo e Aquilino Ribeiro):
- foca a realidade geo-social
da região do Douro Litoral: referências à paisagem, à flora e fauna, aos
costumes e tradições, às tarefas do campo;
- o vocabulário de certas
personagens;
- a descrição dos interiores;
- a narração de certas
historietas ou anedotas.
. Romance universalista:
- retrata problemas que
ultrapassam o âmbito regionalista, tendo aplicação à escala mundial: o êxodo
dos campos, a antítese campo/cidade, a influência do mito no homem.
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