sábado, 22 de outubro de 2022
Análise do capítulo XXXIII de Iracema
Análise do capítulo XXXII de Iracema
Análise do capítulo XXXI de Iracema
Análise do capítulo XXX de Iracema
Análise do capítulo XXIX de Iracema
Análise do capítulo XXVIII de Iracema
Análise do capítulo XXVII de Iracema
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Análise do capítulo IV do Sermão de Santo António aos Peixes
A frase inicial (“Antes, porém, que
vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões”)
funciona como uma charneira que liga dois momentos do sermão: o anterior, onde
se louvaram as virtudes dos peixes (caps. II e III), e o posterior (caps. IV e
V), no qual se apontarão os seus defeitos. Esta transição é vincada pelo
conector «porém», que possui um valor adversativo e, assim, marca o
contraste entre os dois momentos da obra. O orador acrescenta, logo de seguida,
que as repreensões são feitas com o intuito de agitar as consciências dos
homens e os fazer refletir sobre os seus atos (“Servir-vos-ão de confusão”),
ainda que não sirvam para corrigir as atitudes e os comportamentos (“já que não
seja de emenda”). Outro conector a ter em conta é «Antes […] que», de
valor temporal, que indicia a já considerável extensão do sermão e o provável
cansaço do auditório, pelo que era essencial manter o seu interesse.
Note-se que Padre António Vieira dá
início às repreensões dos peixes, seguindo o método usado para os louvores: do
geral para o particular. Quer isto dizer que, no capítulo IV, apresentará os
vícios gerais dos peixes e, no V, tratará dos casos particulares.
Qual é a primeira
repreensão feita pelo orador? A ictiofagia:
- Os peixes
comem-se uns aos outros;
- Os peixes grandes comem os pequenos, por isso,
para alimentar um grande, são precisos muito pequenos.
Tendo em conta o caráter metafórico
e alegórico do Sermão, a primeira repreensão – e o tema central do
capítulo, como se verá a seguir – é a exploração do homem pelo homem, mais
especificamente a dos pobres e indefesos (os pequenos) pelos poderosos, isto é,
detentores de poder financeiro, social, institucional, etc. (os grandes), ou
seja, a antropofagia social.
Este escândalo é intensificado pela
circunstância de serem os grandes que comem os pequenos, daí que “como os
grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil para um só grande.”
A hipérbole (“não bastam cem pequenos, nem mil”) traduz a voracidade com que os
peixes se comem e a gula / voracidade dos grandes. E a situação fosse a
inversa, isto é, se os pequenos comessem os grandes, o mal seria menor, visto
que “bastara um grande para muitos pequenos”. Resumidamente, os homens mais poderosos
subjugam e exploram os mais fracos e vulneráveis. Se quiséssemos, como fazem os
alunos por vezes, questionar a importância do estudo deste sermão, poderíamos
chamar a atenção para a sua atualidade: não é muito
difícil encontrar casos, hoje em dia, de empresários sem escrúpulos que
exploram os “seus” trabalhadores (três exemplos: em 2021, foi notícia a
exploração de trabalhadores estrangeiros numa exploração de Odemira; alguns
funcionários da Amazon eram forçados a urinar em garrafas de água, durante os
turnos, para cumprirem as metas da companhia; estima-se que, em 2016, existiam 40,
3 milhões de pessoas vítimas de escravatura moderna, das quais 62% eram vítimas
de trabalho forçado, sendo que, no caso de Portugal, estaríamos a falar de
cerca de 26 000 indivíduos nestas circunstâncias), políticos prepotentes e
envolvidos na prática de crimes, a discriminação de pessoas de outras etnias,
credos, sexualidade, etc.
De seguida, o orador recorre às
palavras de Santo Agostinho (argumento de autoridade) para comparar a atitude
que critica nos peixes com o comportamento dos homens: “Os homens, com suas más
e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros.” É a
antropofagia social: os homens poderosos exploram os
pobres e indefesos.
O escândalo maior – que causa o
espanto de Padre Vieira – é o facto de os homens se comerem uns aos outros, sendo
todos irmãos e vivendo no mesmo elemento. Qual é a causa deste facto? A resposta
é clara: as “más e perversas cobiças”.
Estilisticamente, no primeiro
parágrafo há a destacar, desde logo, a reiteração do verbo
«comer», sugerindo, quando se refere ao ser humano, a exploração do ser humano
pelo seu semelhante (metáfora). Por outro
lado, a antítese entre «grandes» e «pequenos» representa os homens com
poder, que exploram e agridem o seu semelhante, como “lobo do próprio homem”.
Ainda neste parágrafo, Vieira recorre à gradação: começa por
apresentar o vício (o facto de se comerem uns aos outros), depois explicita a
sua gravidade e as suas consequências: “não bastam cem pequenos, nem mil, para
um só grande”.
A finalizar o primeiro parágrafo,
Vieira estabelece um paralelismo entre a sua atitude e a de Santo Agostinho,
cujas palavras e exemplo constituem um argumento de autoridade:
Santo
Agostinho
↓
pregava aos
homens
↓
exemplificava
nos peixes
|
|
António
Vieira
↓
prega aos
peixes
↓
exemplifica
nos homens
|
Neste sentido, o orador incentiva os
peixes a observarem o que se passa na terra através de uma apóstrofe (Vieira
simula que está a dirigir-se aos peixes quando, na verdade, fala para os
homens, no sentido de os alertar para a desumanidade e a exploração praticada
pelos colonos), mas eles olham para o Sertão, onde vivem os Tapuias, uma tribo
que praticava o canibalismo, o que significa que os peixes interpretaram
literalmente as forma do verbo «comer». Ele pretende que olhem para a
cidade, espaço que considera um «açougue», onde “muito mais se comem os brancos”
(embora os Tapuias sejam canibais, não comem tantos homens como os brancos se
exploram entre si), o que constitui uma denúncia da antropofagia social: os homens
exploram e vivem às custas uns dos outros. Deste modo, os peixes observarão nos
homens os seus próprios defeitos, nomeadamente o modo como se comem, isto é, se
exploram entre si. A repetição da expressão
«para cá» confere vivacidade ao discurso e realça o facto de o orador se
encontrar no local onde a corrupção ocorre. Como o Sermão é alegórico,
na verdade, Vieira está a dirigir-se aos humanos: sabendo que, ao referir-se ao
vício de se comerem uns aos outros, os colonos pensariam que se estava a
referir aos rituais antropófagos dos índios, o orador esclarece-os que se está
a referir aos brancos. Estilisticamente, Vieira faz uso de várias formas
verbais que apelam à visão (“vejais”, “olhai”, “vedes”), algumas no imperativo,
para apresentar os factos de modo mais vivo, para confrontar os ouvintes com a
realidade que está a descrever, isto é, para demonstrar a «carnificina» (metáfora) que ocorre
nas cidades, onde os homens se exploram (metáfora «comem»)
numa escala muito superior à que é praticada pelos verdadeiros canibais do
Sertão, os Tapuias. Por outro lado, constitui uma forma de impressionar e
emocionar o auditório. Além disso, para captar os ouvintes e criar neles um
forte visualismo, além do imperativo, Vieira
socorre-se do vocativo/da apóstrofe (“peixes”),
do advérbio com valor de negação «não» e da repetição da interrogação
retórica. Regressando ao verbo «comer», ele é usado no
sentido literal (por exemplo, em “Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos
outros?”, dado que esses índios eram uma tribo antropofágica) e metafórico com o
sentido de explorar (“Muito mais açougue é o de cá, muito mais se comem os
brancos”). De seguida, através do paralelismo – verbo «ver»
+ (quantificador) determinante demonstrativo + verbo no infinitivo (“vedes todo
aquele andar”), da anáfora (“vedes”),
da enumeração e da gradação (“bulir”, “andar”,
“concorrer”, “cruzar”) e da antítese (“subir e
descer”, “entrar e sair”) –, o texto adquire um ritmo rápido, sugerindo o bulício
da cidade, o desconforto provocado pela falta de “sossego” e “quietação”, em
suma, a vasta dimensão da antropofagia social: “Pois tudo aquilo é andarem
buscando os homens como hão de comer, e como se hão de comer”.
Depois desta generalização, Vieira
centra-se num caso particular: o de alguém que acabou de morrer. É a
exemplificação do orador para o que atrás referira. Este exemplo mostra como os
familiares e os amigos do morto recente procuram “despedaçá-lo e comê-lo”: os
herdeiros, os testamenteiros, os legatários, os acredores, os oficiais dos
órfãos, dos defuntos e dos ausentes, o médico que “o curou ou ajudou a morrer”
(atente-se na ironia), o sangrador,
a mulher, o coveiro, “o que lhe tange os sinos” e “os que, cantando, o levam a
enterrar”. Todas as figuras enumeradas mostram grande indiferença e
insensibilidade, pois ignoram e são completamente indiferentes a esse momento
trágico e pensam apenas em se apoderar e aproveitar dos bens do defunto. Neste
contexto, assume grande relevância de novo a polissemia do verbo
«comer», com vários significados (aproveitar, malfazer, usufruir, roubar,
extorquir, enganar, ludibriar, mentir), de acordo com a(s) figura(s) da enumeração. Por outro
lado, a enumeração e a anáfora acentuam a
ideia de que o homem que acaba de morrer é saqueado por todos os que se querem
apoderar dos seus bens.
Qual é a conclusão? “[…] enfim,
ainda o pobre defunto o não comeu a terra e já o tem comido toda a terra.” Esta
metáfora joga com o duplo sentido da palavra “terra” (trocadilho): na primeira
ocorrência (“o não comeu a terra”), refere-se a sepultura (onde o corpo do
defunto foi depositado), enquanto, na segunda (“já o tem comido toda a terra”),
a palavra refere-se à sociedade e insinua a rapidez e a intensidade com que o
ser humano é explorado.
Este primeiro exemplo evidencia a
crueldade da situação e o quão mórbida e inaceitável que ela é, porém o orador “desculpa”
aqueles que tiraram dividendos do morto, porque, para ele, pior são aqueles que
exploram, sem escrúpulos, os vivos: “Já se os homens se comeram somente depois de
mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento.” É o caso
dos inúmeros Job (personagem bíblica cuja riqueza – material e espiritual –
despertou a inveja do diabo, que lhe retirou tudo, à exceção da sua alma, que
se manteve fiel a Deus, e cujo modelo de sofrimento, perseguição e resignação
reforça o caráter paradigmático do caso apresentado) que povoam a terra.
Para confirmar com mais veemência a
crueldade humana, Padre António Vieira ilustra a sua tese com mais um exemplo:
é o caso de um homem perseguido pela justiça perversa e viciada, um “desses que
andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes” e que é explorado por
vários: o meirinho, o carcereiro, o escrivão, o solicitador, o advogado, o
julgador, sendo sentenciado e executado antes mesmo de ser julgado. O orador
sublinha a crueldade dos homens, comparando os corvos e
os homens, para concluir: “São piores os homens que os corvos.” Esta comparação
enfatiza a gravidade do comportamento dos seres humanos quando é confrontado
com o das aves necrófagas, dado que estas apenas se aproveitam de outros seres
já mortos, ao contrário do que fazem aqueles.
Qual é a relação entre ambos?
Semelhanças |
|
Diferenças |
. Os corvos
devoram outros animais. . Os homens aproveitam-se de
outros homens. |
|
. Os corvos comem os animais
mortos. . Os homens aproveitam-se de
homens vivos. |
De seguida, Padre António Vieira,
num tom mais violento e interventivo, mostra toda a sua indignação pela maldade
dos homens através do contraste entre os grandes e os pequenos.
Peixes
grandes |
Peixes pequenos |
. Comem os pequenos. . Têm “o mando das cidades e das
províncias”. . Nunca se contentam: “devoram e
engolem os povos inteiros”. |
. São comidos “de qualquer modo”,
“um por um, ou poucos a poucos”. . São “o pão quotidiano dos
grandes” – são comidos quotidiana e indiscriminadamente. . Padecem (sofrem). |
O que mais espanta e indigna o
orador é que “os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias” não se
contentam em comer os pequenos um a um, antes devoram os povos inteiros, como
se devora o pão. Há uma diferença entre o pão e os outros comeres:
Pão |
Outros
comeres |
. come-se
todos os dias. |
. carne: há
dias de carne; . peixe: há
dias de peixe: . frutas: comem-se em diferentes meses do ano. |
Tal como o pão é um alimento
quotidiano e se “come com tudo”, também os pequenos “são o pão quotidiano dos
grandes” e “com tudo e em tudo são comidos”. A metáfora “São o pão
quotidiano dos grandes.” associa os pequenos ao pão, aos mais desprotegidos e
vulneráveis. Tal como o pão é acompanhamento regular de outros alimentos,
também os mais frágeis são constantemente explorados pelos mais poderosos. Deste
modo, a metáfora traduz a ganância e a avidez dos poderosos e a
fragilidade dos mais fracos, que estão continuamente expostos ao “apetite”
voraz dos primeiros. Neste contexto, a citação do Antigo
Testamento (“Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.”) traduz a repulsa de
Vieira por haver homens que exploram outros como se “tragassem” um pedaço de
pão. Por outro lado, como sucede frequentemente ao longo do sermão, a
transcrição bíblica confere autoridade à argumentação do pregador (o mesmo
efeito é obtido com a referência a figuras bíblicas como, por exemplo, Santo
Agostinho, Santo António, etc.) e enfatiza a condenação deste tipo de atitudes –
isto é, o facto de os homens poderosos dominarem e explorarem os mais fracos –,
que Deus e o texto sagrado reprovam totalmente. Atente-se na anáfora e na gradação em “[…] com
tudo, e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo
ofício, em que os não carreguem, em que os não multem, e que os
não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem
[…]”, que apresentam as ações dos “grandes”, isto é, dos que exploram e
humilham, num crescendo de violência, sugerindo a voracidade e a brutalidade
com que os poderosos exploram e oprimem os mais fracos. Virando-se novamente
para os peixes, o pregador acusa-os de se comportarem e terem os mesmos
defeitos que acabara de apontar aos homens: os grandes comem os pequenos aos
cardumes, de dia e de noite, “às claras e às escuras”. Outra forma de o
pregador reforçar a sua argumentação passa pela personificação dos peixes e
pela simulação da sua anuência ao que ele diz em resposta à sua pergunta (“Parece-vos
bem isto, peixes?”): “Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais
todos dizendo que não […]”. Da mesma forma que assegura o castigo divino para
os homens que cometeram as maldades e injustiças, adverte os peixes que serão
castigados caso persistam nos mesmos erros. Para comprovar isto, evoca o
testemunho proveniente da experiência de vida e sabedoria dos mais velhos (“Os
mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado…”), que
assistiram à exploração dos índios brasileiros pelos colonos portugueses, que, “em
vez de governar e aumentar o (…) Estado”, o destruíram e se “fartavam em comer
e devorar os pequenos”.
Por tudo isso, o orador faz uma advertência: ninguém –
grande ou pequeno – está imune de ser «comido» por outro ainda maior. O mesmo
se passa com os peixes, como o comprova o exemplo do xaréu, que, “correndo
atrás do bagre”, como o cão atrás da lebre (comparação), não se
apercebe do tubarão, que o engole de uma vez. Este exemplo fundamenta,
portanto, o conselho do pregador, pois qualquer poderoso (“grande”) pode passar
facilmente de predador a presa de outros “peixes” maiores. Por outro lado, enfatiza
a ideia de que os grandes comem os mais pequenos, sendo a sua superioridade
relativa e condicional. Segue-se uma citação de Santo
Agostinho (“Praedo minoris fit praeda maioris”, ou seja, “O que aprisiona o
mais fraco torna-se presa do mais forte.”), que mostra que os homens devem ter
consciência de que mesmo aqueles que exercem o seu poder sobre alguém mais
fraco são, mais tarde ou mais cedo, dominados ou oprimidos por alguém mais poderoso.
Já antes o orador se referira aos homens que exploram os mais fracos no Brasil,
isto é, que eram aí “grandes”, e que, quando viajam para Portugal, encontram cá
outros maiores “que os comem também a eles”. O mesmo se passa com os peixes,
como mostra a seguir e já vimos.
Nesta sequência, dirige um conselho aos peixes
que pode funcionar como remédio para a ictiofagia / antropofagia social: zelar
pelo bem comum – “mais repúblicos e zelosos do bem comum, que este prevaleça
contra o apetite particular de cada um”, ou seja, aconselha-os a que haja menos
egoísmo e mais altruísmo; o bem comum deverá prevalecer sobre os desejos
individuais. Além disso, apela à união dos peixes contra os seus inimigos (“tanto
inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes”), isto é, os
pescadores, que os perseguem incessantemente com as suas armadilhas: redes,
nassas, linhas, anzóis, fisgas e arpões; canas e “cortiças armas ofensivas”.
Não lhes bastarão tantos e tão armados inimigos de fora para ainda se guerrearem
entre si, “comendo-vos uns aos outros?” Este passo pode ser interpretado como
uma alusão à guerra ofensiva dos holandeses na colónia do Brasil e um apelo aos
Portugueses para os combater: “Cesse, cesse, já, irmãos peixes…”. Dito de outra
forma, para além de os peixes correrem muitos perigos, de dia e de noite, e
como têm muitos inimigos “de fora”, é necessário cessar esta “perniciosa
discórdia”, para que haja paz, vivendo “muito quietos, muito pacíficos e muito
amigos”. Por este motivo, Padre António Vieira incentiva à moderação e à benquerença
entre os peixes, recordando-os da forma como escutavam a pregação de Santo
António: “Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos,
grandes e pequenos, quando vos pregava S. António?” A evocação desta lenda em
torno do santo reforça o apelo que o orador dirige aos peixes: se lhes foi
possível ouvir o santo com devoção e atenção, eles serão capazes do mesmo
comportamento pacífico e fraterno, que limitará o seu “apetite particular” e os
impedirá de se comerem uns aos outros.
De seguida, Vieira contra-argumenta:
é necessário explorar o trabalho dos outros para sobreviver, só têm esse meio
de subsistência. Neste passo pode ler-se uma alusão à escravatura no Brasil. Porém,
de imediato rebate essa ideia, lembrando que os bens do mundo chegam para todos
e dá o exemplo do dilúvio e da arca de Noé, os predadores (os animais da terra
e do ar) não devoraram as suas presas e sobreviveram com o alimento que lhes
era dado, por imperativo de conservação e aumento da espécie. Deste modo, os
peixes devem seguir o seu exemplo, sendo que Vieira pretende mostrar que o ser
humano não necessita de explorar e oprimir o seu semelhante para sobreviver
(por exemplo, através da escravatura), antes pode e deve encontrar outra forma
de se sustentar.
O comportamento dos homens é
semelhante, pois enganam e deixam-se enganar facilmente. O orador comprova a
sua tese com uma crítica ás ordens religiosas de Malta, de Avis, de Cristo e de
Santiago, que recrutam pessoas para lutar pela fé cristã, levando-as à morte. É
pela vaidade de envergar um hábito (branco → Ordem de Malta; verde → Ordem de Avis; vermelho → Ordem de Cristo e Santiago) que os homens morrem.
Ou seja, a vaidade e a ignorância dos homens manifestam-se no facto de acabarem
por morrer na guerra, porque querem adquirir honrarias e bens através do ofício
das armas (por exemplo, servindo as ordens religiosas). Esta estratégia não faz
parte da essência de uma ordem religiosa, cujo dever passa por ensinar e
transmitir os valores de Deus. Ou seja, neste passo, Vieira censura os homens
pela ignorância (“cegueira”), visto que a sua ambição por honrarias e títulos
os levam a arriscar e a perder, por vezes, a vida (na guerra).
De seguida, dá o exemplo dos homens
do Maranhão, que também se deixam pescar/enganar pela vaidade: vem um mercador
de Portugal para o Maranhão, com uns “retalhos de pano” fora de moda, que
ninguém aprecia; dá uns retoques na mercadoria e coloca-a à venda por um preço
muito superior ao seu valor, o que faz com que os vaidosos (“os bonitos, ou os
que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos”) comprem o que querem,
gastem o dinheiro que têm e se endividem. Há homens que se deixam levar pela
vaidade, valorizando a beleza e a aparência, fascinam-se com os “trapos”
(tecidos, roupas) que chegam de Portugal (já fora de moda) e endividam-se para
os comprar, perdendo tudo o que ganharam durante um ano de trabalho:
“Todos a
trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal;
e este trabalho de toda a vida, quem o leva?” |
|
“Não o
levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os
pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas,
nem as joias.” |
“em que se
vai e despende toda a vida?” |
“No triste
farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.” |
Os homens (por causa da vaidade) e
os peixes (por causa da ignorância e da cegueira) eram facilmente enganados e
morriam. Por isto, Padre António Vieira exorta os peixes a não se deixarem
iludir pela vaidade, desde logo porque Deus os “vestiu do pé até à cabeça” de forma
vistosa, com cores “prateadas e douradas”, isto é, com escamas brilhantes e
vistosas, que perduram intemporalmente (“vestidos que nunca se rompem, nem
gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas.”).
De novo, Vieira termina o capítulo
com o exemplo de Santo António que, ao contrário dos peixes e dos homens, nunca
se deixou iludir pela vaidade, recusou galas e vaidades, trocou a riqueza pela
simplicidade (“Sendo moço e nobre, deixou as galas (…), trocou-as por uma loba
de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois (…) trocou a sarja pelo
burel e a correia pela corda.”) e, por isso, atingiu a santidade. De facto,
Santo António é o exemplo vivo de alguém que se opõe à vaidade: sendo rico,
vestindo-se bem, ao converter-se, ao mudar de vida chamado por Deus, alterou a
sua indumentária, passando a vestir-se humilde e pobremente.
Assim, com esta postura simples e
humilde, Santo António conseguiu converter muitos homens que o escutaram: “Com
aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram
e foram sisudos.”
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
Mens ag|itat mol|em - Parte III
Serebriakova - uma vida, uma obra
Este post é da autoria de Beatriz, uma professora de Filosofia de Setúbal, que possui um blogue onde escreve sobre diversos assuntos da atualidade e/ou do seu interesse: IP azul.
Neste caso, trata-se da divulgação de um nome da pintura ucraniana desconhecido para o comum dos mortais: Zinaida Serebriakova. O post original é este: Serebriakova - uma vida, uma obra.
O primeiro problema foi artístico: o seu estilo pessoal já não era bem-vindo no mundo da arte vanguardista, suprematista e construtivista favorecido pela Rússia soviética.