A infância representada no
conto pelo personagem Pinóquio ocupa, de um lado, o lugar do selvagem como
Outro da ciência moderna: “A infância corporifica [...] dois sonhos do adulto.
Primeiramente, encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a criança é o bom
selvagem, cuja naturalidade é preciso conservar enquanto o ser humano atravessa
o período infantil” (ZILBERMAN, 2003, p. 18-19), e de outro lado o lugar da
natureza enquanto alteridade do saber dominante, posto ser de um tronco de
madeira que surge o boneco enquanto protótipo de menino, tal como um embrião
humano, em princípio tão semelhante aos embriões de outras espécies da
natureza, que se torna feto e posteriormente recém-nato ao vir ao mundo como protótipo
de ser humano, ainda sem as vestes e comportamentos humanos que o transformarão
em um homem civilizado. Zilberman (2003, p. 19) afirma ainda ser “[...] a
natureza o âmbito preferencial da criança; não apenas seu hábitat mais
adequado, como aquele que abriga o modo mesmo como a infância é concebida.
[...] tal faixa etária corporifica o não-contaminado da natureza, com o qual se
identifica. [...]”. A criança, nessa situação, tal como o boneco Pinóquio ao
ser criado por Gepeto, ainda não está preparada para a vida (leia-se: para a
vida adulta), e apenas o estará por meio dos estudos, da escola: “[...] traço
de união entre os meninos e o mundo [...]” (ZILBERMAN, 2003, p. 40).
A imagem da criança como
retratada em Pinóquio, é, portanto, contraditória, pois
[...] o adulto e a sociedade nela projetam, ao mesmo
tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança, [...] reflexo do que o
adulto e a sociedade pensam de si mesmos [...], transforma-se, pouco a pouco,
em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e à sociedade,
em função de suas necessidades essenciais. O adulto e a sociedade respondem de
certa maneira a estas exigências: valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam.
Assim, reenviam à criança uma imagem de si mesma, do que ela é ou do que deve
ser. A criança define-se assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a
sociedade esperam dela. [...] A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a
sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto
e a sociedade querem e temem eles próprios tornarem-se, isto é, do que o adulto
e a sociedade querem, eles próprios, ser e temem tornar-se. (CHARLOT, 1983, p.
108-109)
Por um lado, a criança
idealizada pode vir a tornar-se civilizada caso assimile os valores e a
concepção de mundo do discurso do paradigma dominante propagado pela escola,
instrumento disciplinar e de manutenção do saber moderno, tornando-se a
criança, ao submeter-se a essa disciplina e a essa ordem, o futuro homem em
potencial que os adultos idealizam para a infância. Pinóquio, em um dos momentos
nos quais revela a intenção de vir a tornar-se um homem, escuta as
recomendações da Fada:
[...] você vai se tornar se souber merecer isso [...]
[se] acostumar-se a ser um bom menino [...] As crianças boas são obedientes
[...] têm amor pelo estudo e pelo trabalho [...] dizem sempre a verdade [...]
vão para a escola com satisfação [...]. A partir de amanhã [...] você vai
começar indo para a escola. [...] Depois vai escolher uma arte ou profissão
[...] (COLLODI, 2004, p. 119-121)
Por outro lado, a criança
pode vir a manter-se no lugar reservado à alteridade do saber dominante ao
esquivar-se da escola e do trabalho, como pretende Pinóquio na continuidade do
diálogo anterior com a Fada: “Mas eu não quero ter nem uma arte nem uma
profissão [...] Porque trabalhar me cansa.” (COLLODI, 2004, p. 121). Um dos espaços
da exclusão, da exterioridade, destinado aos que se tornam alheios a essa ordem
moderna é anunciado em seguida pela Fada: “[...] aqueles que falam assim acabam
quase sempre na cadeia ou no hospital. [...] O ócio é uma doença muito feia, e
é preciso curá-la logo, desde criança, se não, quando formos grandes, não se
cura mais.” (COLLODI, 2004, p. 121). Esse diálogo se assemelha à conversa
ocorrida no início da história, quando Pinóquio afirma que não tem vontade de
estudar e que deseja seguir a profissão de comer, beber, dormir e se divertir,
levando “uma vida de vagabundo”, e o Grilo Falante lhe diz que “[...] todos
aqueles que têm essa profissão terminam quase sempre no hospital ou na cadeia
[...]” (COLLODI, 2004, p. 32). Portanto, o conto reafirma que aqueles que não
passam pela escola ou que não assumem um trabalho acabam no hospital ou na
cadeia, pois é nos estabelecimentos de ensino que se faz possível “[...]
caracterizar a aptidão de cada um, situar seu nível e capacidades, indicar a utilização
eventual que se pode fazer dele [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 158), e é na escola
e nas demais instituições disciplinares (quartéis, hospitais, prisões) que se
faz possível tornar os seus os “corpos dóceis” e disciplinados.
Outro detalhe a ser
destacado é o fato de Pinóquio ser constantemente vigiado pelo Grilo Falante,
pelos diversos animais que assumem a fala do Grilo (entre eles um vaga-lume e
uma marmota), pela Fada em suas diversas representações (menina, cabra,
mulher), pelos policiais e pelos médicos (um corvo, uma coruja e o próprio
Grilo). O panóptico moderno examina a todo o tempo o boneco e o reconduz a cada
instante por meio de mecanismos de coerção, de punição, de exame, de sanção e
de gratificação ao saber dominante escolar para que ele não tenha como destino
uma cadeia ou um hospital (outras versões do mecanismo panóptico que a todos
vigia e examina). Portanto, o panóptico moderno é, ao mesmo tempo, segundo
Foucault (1987, p. 185) “[...] um poder direto e físico que os homens exercem
uns sobre os outros [...]” e uma tecnologia política “[...] poli- valente em
suas aplicações: serve para emendar prisioneiros, mas também para cuidar dos
doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar operários, fazer
trabalhar os mendigos e ociosos” (FOUCAULT, 1987, p. 170).
Assim, resta ainda àqueles
que em certo nível se tornam alheios ao saber moderno, por não terem
frequentado as escolas ou por não terem um trabalho, o lugar do selvagem a ser
domado, como afirma uma marmota que “tenta consolar” Pinóquio ao ver que este
está se transformando em um burro: “[...] está escrito nos decretos da sabedoria
que todas as crianças preguiçosas que, não gostando de livros, de escola e de
professores, passam os seus dias como bobos em jogos e diversões, têm que
acabar, cedo ou tarde, transformando-se em pequenos burros.” (COLLODI, 2004, p.
164). Se a doença chamada “febre do burro” anunciada pela marmota se instaura
em determinados indivíduos da nossa sociedade moderna, não podendo encontrar cura
na idade adulta, como preconiza a Fada, resta aos acometidos e condenados a
essa síndrome serem posicionados no lugar destinado ao selvagem enquanto
alteridade do homem civilizado, seja em um hospital, seja em uma prisão, seja
em um manicômio, seja na marginalidade nas ruas ou na realização de trabalhos
subalternizados; sejam eles colonizados, proletários, favelados, mendigos. O
domador de burros, que compra o burro Pinóquio e lhe ensina a dançar e a
saltar, destaca ao apresentá-lo ao público:
Meus respeitáveis ouvintes! Não estaria aqui lhes
dizendo mentira sobre as dificuldades por mim frentadas [sic] para compreender
e subjugar este mamífero, enquanto pastava livremente, de montanha em montanha,
nas planícies das regiões tórridas. Observem, por favor, quanta selvageria
transborda dos seus olhos. Tendo, assim, resultados idos [sic] todos os meios
para domesticá-lo à vida dos quadrúpedes civilizados, tive que recorrer muitas
vezes ao afável dialeto do chicote. Entretanto, toda a minha gentileza, em vez
de tornar-me benquisto por ele, arruinou ainda mais o seu ânimo. Eu, porém,
seguindo o sistema de Gales, encontrei na sua cabeça uma pequena cartilagem
óssea, que a própria faculdade médica de Paris reconhece ser o bulbo
regenerador dos cabelos e da dança pírrica. E, por isso, eu quis amestrá-lo na
dança, e nos relativos saltos com argola, e dos barris forrados de papel. Admirem-no
e, depois, julguem-no! (COLLODI, 2004, p. 173)
Destino semelhante
encontra grande parcela dos cidadãos excluí dos pela lógica de mercado do
contrato social. Zilberman (2003, p. 42) afirma que com relação ao
proletariado, ao contrário do que ocorre com a criança burguesa, “[...] a
preservação da criança visa à formação e manutenção de um contingente obreiro
disponível [...]”, efetivando-se, também dessa maneira, o fascismo social que
segrega determinados segmentos às zonas selvagens enquanto aos mais abastados a
preservação dos infantes e a sua educação os destinam às zonas civilizadas.
Por fim, Pinóquio, ao
tornar-se um menino e receber roupa nova e dinheiro no bolso, após trabalhar e
estudar com afinco, afirma “Como eu era ridículo quando era um boneco! E como
estou contente de ter me tornado agora um bom menino!” (COLLODI, 2004, p. 201).
A infância é, portanto, negada enquanto espaço de emergência de saberes outros,
ausentes no presente contraído e mesmo exterminado da faixa etária infantil, a
qual é relegada a mero lugar de fase preparatória para um futuro expandido e
previsível (a vida adulta), seja na forma da aceitação plena do indivíduo
civilizado, situando-o nas zonas civilizadas, seja na exclusão dele por meio da
subalternização de seus saberes e fazeres ou da sua reclusão em hospitais, hospícios,
penitenciárias, guetos, aldeias, colônias, classes proletárias, segregando-o
nas zonas selvagens. Uma enorme parcela da população do globo é banida, dessa
forma, desde a mais tenra infância até o fim de suas vidas, ao lugar da
alteridade do saber moderno, do paradigma dominante.
Deleuze (1988, p. 161) em
seu livro intitulado Foucault, afirma que
[...] exilar, enquadrar são a princípio funções de
exterioridade, que os dispositivos de internamento apenas efetuam, formalizam, organizam.
A prisão enquanto segmentaridade rígida (celular) remete a uma função flexível
e móvel, a uma circulação controlada, a toda uma rede que atravessa também os
meios livres e pode aprender a sobreviver sem a prisão. [...] o internamento remete
a um lado de fora, e o que está fechado é o “lado de fora”. É “no” lado de
fora, ou por exclusão, que os agenciamentos internam, tanto em relação à
interioridade psíquica quanto no internamento físico (grifos nossos).
Portanto, o “lado de fora”
do mundo moderno civilizado ao qual são destinados os indivíduos situados na
alteridade do saber dominante é representado tanto pela escola quanto pela
prisão e pelos hospitais, pelo País Pega-Trouxas, pelo País das Brincadeiras,
pela mendicância e marginalidade do Gato e da Raposa e pelo destino de Pavio,
que morre de tanto trabalhar por não ter frequentado a escola. O espaço da
alteridade do Ocidente, ocupado no conto prioritariamente pelo personagem
Pinóquio e pelos representantes do estado de natureza, habitantes das zonas
selvagens que o assediam, é vigiado pelos olhos, atentos aos detalhes, do
panóptico moderno representado pelos policiais, guardas e guardiões que buscam
conduzi-lo à civilização enquanto é tempo, enquanto dura a sua infância,
enquanto ele ainda não se perdeu, protegendo-o assim nas zonas civilizadas, nas
ilhas de inclusão, para que Pinóquio, com os poucos incluídos pela “democracia”
do contrato social, esteja a salvo das zonas selvagens, dos arquipélagos de
exclusão criados pelo fascismo social, aos quais é relegado um enorme
contingente da população do planeta.
Longe de esgotarmos esse
instigante debate, pudemos perceber, por meio deste trabalho que se propôs a
efetivar uma análise do conto moderno As aventuras de Pinóquio, de Collodi
(2004[1883]), com base na crítica ao paradigma dominante de Sousa Santos
(2008), o quanto o selvagem e a natureza, enquanto lugares da alteridade do Ocidente,
encontram-se representados na infância personificada no personagem principal
desse conto, e o quanto o discurso hegemônico do saber dominante é propagado
pela escola, mecanismo disciplinar que se propõe a retirar Pinóquio do estado
natural e das zonas selvagens e o inserir nas zonas civilizadas.
A pesquisa bibliográfica
possibilitou-nos uma conceituação da alteridade do Ocidente, do contrato social
e do fascismo social a partir de Sousa Santos (2008), dos mecanismos
disciplinares vinculados ao saber e ao poder modernos, com base em Foucault
(1968, 1987), assim como a contextualização do conto com relação aos elementos
históricos e sociais vinculados às instituições: infância, escola e 189 literatura
infantil, fundamentada em Zilberman (2003) e Áries (1981). As categorias
levantadas a partir da nossa pesquisa bibliográfica permitiram a análise do
conto vinculando-o aos seus aspectos discursivo, social e histórico,
levando-nos a uma melhor compreensão dessa via de perpetuação da segregação
social e de subalternização de saberes e fazeres outros que, por intermédio da
educação, vem sendo propagada e perpetuada por meio da literatura infantil e da
escola, e nos vem sendo transmitida desde a mais tenra infância.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos Editora S. A., 1981.
CHARLOT, B. A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/ juvenil: das
origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Quíron, 1985.
COLLODI, C. As aventuras de Pinóquio. São Paulo: Paulinas, 2004.
COLLODI, C. [1883]. Le avventure di Pinocchio: storia di un burattino.
Firenze: Giunti Gruppo Editoriale, 2001.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Lisboa: Portugália Editora, 1968.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis:
Vozes, 1987.
GÓES, L. P. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira,
1984.
SOUSA SANTOS, B. de. A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2008.
ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola . São Paulo: Global,
2003.
Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola