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sábado, 15 de junho de 2024

Símbolos em Assassinos da Lua das Flores

 
1. Cobertores
 
    Mollie Burkhart costumava usar um cobertor tradicional em volta dos ombros. Embora a maioria dos membros da tribo dos Osage tenha abraçado os estilos e os valores norte-americanos que permearam a sua cultura, o facto de a personagem envergar essa peça de vestuário tradicional da tribo liga-a simbolicamente à herança cultural. Mollie evita a cultura americana de outras formas, como, por exemplo, não mudar o seu longo penteado para algo mais moderno e de acordo com o estilo dos anos 1920. A escola que foi obrigada a frequentar tenta tirar-lhe o cobertor, o que indicia uma intolerância relativamente à tradição e à identidade Osage. No início da obra, quando Mollie escolhe um cobertor que combine com a sua roupa moderna, estamos perante um aspeto que equilibra as culturas osage e norte-americana.

2. Recursos naturais
 
    Os recursos naturais proporcionam aos Osage os meios de sobrevivência, tanto antes da chegada dos colonos europeus, como após o estabelecimento dos Estados Unidos da América. A obra centra-se em três recursos concretos: o búfalo, o petróleo e o vento. Além disso, documenta o modo como os colonos, mais tarde norte-americanos, trabalham para negar aos Osage os legítimos benefícios que a natureza lhes pode proporcionar. A obra detalha pormenorizadamente como os habitantes brancos do estado do Oklahoma empregaram a violência física e a adulteração da Lei para roubar aos nativos norte-americanos os seus direitos naturais, o acesso ao reservatório mineral sob as suas terras, que os tornaram ricos e alvos da ambição desmedida. A inclusão de uma batalha legal sobre moinhos de vento na terceira crónica mostra que, embora os búfalos tenham regressado parcialmente ao território, a batalha do povo Osage para proteger os seus recursos e direitos naturais continua.

3. Tóxicos
 
    O veneno é a arma usada para levar a cabo muitas das mortes misteriosa que atingem os Osage e por uma série de doenças devastadores sem designação. Tal como a vasta conspiração que aterroriza a comunidade tribal, o veneno é difícil de detetar, especialmente quando é administrado gradualmente ao longe de muitas semanas ou meses. O uso de veneno e o facto de qualquer pessoa poder ser a próxima vítima criam um clima de terror entre os Osage.
    Neste contexto, a ironia está bem presente. Por exemplo, no caso de Mollie, o veneno está dissimulado num medicamento – a insulina – que deveria salvar a sua vida. Pelo contrário, quase a mata. Por outro lado, frequentemente, o álcool é o veículo que leva o veneno à vítima pretendida, como sucede no caso da morte de Joe Bates. Esta ligação entre o álcool e o veneno ganha contornos irónicos a partir da associação histórica do álcool com os esforços europeus para enganar as populações nativas relativamente às suas terras e direitos.

Preconceito e racismo em Assassinos da Lua das Flores

    O preconceito e o racismo perpassam toda a obra. As personagens brancas desconsideram a capacidade, e até mesmo a humanidade, dos nativo norte-americanos, o que constitui uma tendência que remonta à fundação da nação. O preconceito interfere na justiça e molda lendas nacionais, como sucede com o mito do Velho Oeste, que se baseia em larga medida na glorificação do massacre rotineiro de «selvagens», os índios.
    O livro também reflete questões como a riqueza e a propriedade, visto que determina o significado de fazer uso de coisas como o dinheiro de forma adequada, bem como pressupostos sobre normas culturais. Porém, o racismo não é a única forma de preconceito que podemos encontrar em Assassinos da Lua Cheia. Por exemplo, há diversas comparações desfavoráveis que são estabelecidas entre agentes profissionais e os homens da lei mais rudes que operam na fronteira. Não só existe discriminação de classe nesta diferença, mas também se baseia em visões preconceituosas dos modos de vida urbanos e rurais. Outra forma de discriminação é a de género, como se pode comprovar pelo facto de as mulheres possuírem menos direitos e privilégios do que os homens.

A corrupção da confiança em Assassinos da Lua das Flores

Os conspiradores manipulam as provas e evidências dos seus crimes e mentem sistematicamente, corroendo, assim, a confiança no sistema e obstaculizando a distinção entre o que é verdade e o que não passa de mera ficção. É esta situação que os Osage têm de enfrentar nos anos 20 do século passado, o que os leva a desconfiar de tudo e de todos, nomeadamente do governo norte-americano, bem como a sentir-se inseguros relativamente aos seus relacionamentos anteriores. Exemplificativa deste quadro é a crença que Mollie deposita em Hale, isto é, de que este é amigo da família e do seu povo, crença essa que advém do facto de ele ter prometido ajudar a encontrar o assassino de Anna. Pura ilusão e falsidade, como sabemos. Hale confronta-se também a questão da confiança e com a distinção entre factos e boatos para conseguir resolver os crimes que vitimam os nativos.
    Note-se, por outro lado, que a conspiração criminosa se torna mais devastadora, porque faz uso da confiança como ferramenta de controlo. Mollie demora a perceber o envolvimento de Ernest nos assassinatos, antes de mais porque o ama e também porque confia nas suas palavras e ações. Mesmo quando as evidências são claras ao apontar para a cumplicidade e a culpabilidade do esposo, Mollie tenta sempre justificar ou desculpar os seus atos. Tal como White necessita de separar os factos da ficção, a figura feminina de que se fala precisa de interiorizar o modo como a confiança que depositou no marido, entre outros, foi usada contra si. Além disso, a terceira parte da obra demonstra como tudo isto tem implicações duradouras na tribo Osage. De facto, os netos e os bisnetos das pessoas assassinadas ainda se sentem inseguros relativamente ao modo como se devem movimentar num mundo que lhes é hostil.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

A questão da justiça em Assassinos da Lua das Flores

    Um dos temas fulcrais da obra é a justiça, encarada como um sistema e como um conjunto de valores filosóficos respeitantes ao modo de tratar as pessoas. Uma das primeiras questões que emerge é a certeza de que o povo Osage não foi tratado de forma justa, desde logo porque foi vítima de um racismo encardido que é apresentado como parte do seu relacionamento com o governo dos Estados Unidos e como um traço associado aos assassinatos de que são vítimas. Todo este bolo cria um caldinho que os envolve em desigualdades que os forçam a lutar pelos seus direitos básicos e pela sua dignidade enquanto seres humanos. Embora o sofrimento da tribo constitua um aspeto central na obra, a questão da justiça, ou da sua ausência, é generalizada. O próprio autor observa, de forma profundamente irónica, o problema quando constata que, no início da década de 1920, o Departamento de Justiça norte-americano era conhecido como Departamento da Virtude Fácil, expressão que se refere tanto à imodéstia sexual(o conceito de ser «fácil») quanto à prática de escolher aquilo que é fácil ou conveniente, o que leva, por exemplo, ao encobrimento de escândalos ou fazer vista grossa a uma série de factos e acontecimentos, em detrimento da adoção de princípios como a honestidade e a integridade.
    A secção central da obra foca-se na questão da Justiça, visto que a ação se centra no sistema de justiça criminal, evoluindo da fase da investigação para a acusação e, por último, a punição. Tom White é um homem íntegro que se dedica à busca da verdade, à captura dos criminosos e a levá-los à Justiça. Não é suficiente reunir provas que levem à condenação dos prevaricadores, embora White o consiga em parte, mas é também fundamental saber navegar pelos caminhos intrincados do sistema de justiça, escancarado à manipulação e à corrupção, traços exemplificados pela adulteração do júri e da intimidação de testemunhas da acusação. Deste modo, para que White consiga levar William Hale e os seus acólitos a tribunal, necessita de proteger este da corrupção que caracteriza o sistema. Em simultâneo, tem de combater o racismo para que se faça justiça, pois aquele leva os homens brancos a acreditar que é injusto condenar outra pessoa branca por matar um nativo americano, considerado um ser inferior.
    A ideia de que as pessoas têm valores e aptidões intrínsecas diferentes, ironicamente, faz parte de um modelo de Justiça mais antigo, que vigorou durante séculos e que moldou a política do governo dos EUA relativamente às populações indígenas e que foi usado amplamente para justificar a escravatura, bem como o tratamento desigual de mulheres e de outros grupos. De acordo com esta forma de pensar, era injusto conceder às pessoas direitos e responsabilidades que elas não seriam capazes de gerir. Ora, é precisamente este «princípio» que está base da tutela forçada dos Osage. Tudo isto, em suma, escancara a fragilidade das instituições encarregadas de salvaguardar e proteger os direitos humanos mais básicos.

Análise de Assassinos da Lua das Flores

 I. Biografia da David Graan


II. Obras de David Graan


III. Resumo da ação


IV. Análise sumário da ação


V. Análise da obra

    1. Primeira crónica - A mulher marcada

        1.1. 1.ª parte: O desaparecimento

            . Resumo

            . Análise

        1.2. 2.ª parte: Um ato de Deus ou do homem?

            . Resumo

            . Análise

        1.3. 3.ª parte: Rei das colinas Osage

            . Resumo

            . Análise

        1.4. 4.ª parte: Reserva subterrânea

            . Resumo

            . Análise

        1.5. 5.ª parte: Os discípulos do Diabo

            . Resumo

            . Análise

        1.6. 6.ª parte: Olmo de um milhão de dólares

            . Resumo

            . Análise

        1.7. 7.ª parte: Esta coisa das trevas

            . Resumo

            . Análise

    2. Segunda crónica - O homem das evidências

        2.1. 8.ª parte: Departamento de virtude fácil

            . Resumo

            . Análise

        2.2. 9.ª parte: Os cowboys disfarçados

            . Resumo

            . Análise

        2.3. 10.ª parte: Eliminando o impossível

            . Resumo

            . Análise

        2.4. 11.ª parte: O terceiro homem

            . Resumo

            . Análise

        2.5. 12.ª parte: Um deserto de espelhos

            . Resumo

            . Análise

        2.6. 13.ª parte: O filho do carrasco

            . Resumo

            . Análise

        2.7. 14.ª parte: Palavras moribundas

            . Resumo

            . Análise

        2.8. 15.ª parte: A face oculta

            . Resumo

            . Análise

        2.9. 16.ª parte: A melhoria da repartição

            . Resumo

            . Análise

        2.10. 17.ª parte: O artista Quick-Draw, o Yegg e o Soup Man

            . Resumo

            . Análise

        2.11. 18.ª parte: A situação do jogo

            . Resumo

            . Análise

        2.12. 19.ª parte: Um traidor do seu próprio sangue

            . Resumo

            . Análise

        2.13. 20.ª parte: Assim Deus o ajude

            . Resumo

            . Análise

        2.14. 21.ª parte: A casa quente

            . Resumo

            . Análise

    3. Terceira crónica - O repórter

        3.1. 22.ª parte: Terras fantasmas

            . Resumo

            . Análise

        3.2. 23.ª parte: Um caso não encerrado

            . Resumo

            . Análise

        3.3. 24.ª parte: Dois mundos

            . Resumo

            . Análise

        3.4. 25.ª parte: O manuscrito perdido

            . Resumo

            . Análise

        3.5. 26.ª parte: O sangue grita

            . Resumo

            . Análise


VI. Personagens - Caracterização

    1.ª) Mollie Burkhart

    2.ª) Tom White

    3.ª) William K. Hale

    4.ª) Outras personagens

            a) Da tribo Osage

            b) Ligadas ao Bureau of Investigation

            c) Associadas associadas ao condado de Osage


VII. Temas

    1. A ganância e os ideais americanos

    2. A justiça

    3. A corrupção da confiança

    4. Preconceito e racismo


VIII. Símbolos


domingo, 2 de junho de 2024

Greve às provas de aferição 2024 prossegue

Benfica é campeão nacional de futsal feminino

Na aula (LII): afinal, quem é que «usará» cascos?

    Contexto: uma qualquer aula de História do 10.º ano numa qualquer escola deste país.

    Intervenientes:

        1.ª) Uma professora que questiona sobre inovações nos transportes dos sécs. XII e XIII.

        2.ª) Um aluno diligente, que responde: Os cavalos e os burros passaram a usar cascos.

sábado, 1 de junho de 2024

Pinóquio: Da natureza selvagem ao homem civilizado

    A infância representada no conto pelo personagem Pinóquio ocupa, de um lado, o lugar do selvagem como Outro da ciência moderna: “A infância corporifica [...] dois sonhos do adulto. Primeiramente, encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a criança é o bom selvagem, cuja naturalidade é preciso conservar enquanto o ser humano atravessa o período infantil” (ZILBERMAN, 2003, p. 18-19), e de outro lado o lugar da natureza enquanto alteridade do saber dominante, posto ser de um tronco de madeira que surge o boneco enquanto protótipo de menino, tal como um embrião humano, em princípio tão semelhante aos embriões de outras espécies da natureza, que se torna feto e posteriormente recém-nato ao vir ao mundo como protótipo de ser humano, ainda sem as vestes e comportamentos humanos que o transformarão em um homem civilizado. Zilberman (2003, p. 19) afirma ainda ser “[...] a natureza o âmbito preferencial da criança; não apenas seu hábitat mais adequado, como aquele que abriga o modo mesmo como a infância é concebida. [...] tal faixa etária corporifica o não-contaminado da natureza, com o qual se identifica. [...]”. A criança, nessa situação, tal como o boneco Pinóquio ao ser criado por Gepeto, ainda não está preparada para a vida (leia-se: para a vida adulta), e apenas o estará por meio dos estudos, da escola: “[...] traço de união entre os meninos e o mundo [...]” (ZILBERMAN, 2003, p. 40).
    A imagem da criança como retratada em Pinóquio, é, portanto, contraditória, pois
[...] o adulto e a sociedade nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança, [...] reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos [...], transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e à sociedade, em função de suas necessidades essenciais. O adulto e a sociedade respondem de certa maneira a estas exigências: valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam. Assim, reenviam à criança uma imagem de si mesma, do que ela é ou do que deve ser. A criança define-se assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a sociedade esperam dela. [...] A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem e temem eles próprios tornarem-se, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios, ser e temem tornar-se. (CHARLOT, 1983, p. 108-109)
    Por um lado, a criança idealizada pode vir a tornar-se civilizada caso assimile os valores e a concepção de mundo do discurso do paradigma dominante propagado pela escola, instrumento disciplinar e de manutenção do saber moderno, tornando-se a criança, ao submeter-se a essa disciplina e a essa ordem, o futuro homem em potencial que os adultos idealizam para a infância. Pinóquio, em um dos momentos nos quais revela a intenção de vir a tornar-se um homem, escuta as recomendações da Fada:
[...] você vai se tornar se souber merecer isso [...] [se] acostumar-se a ser um bom menino [...] As crianças boas são obedientes [...] têm amor pelo estudo e pelo trabalho [...] dizem sempre a verdade [...] vão para a escola com satisfação [...]. A partir de amanhã [...] você vai começar indo para a escola. [...] Depois vai escolher uma arte ou profissão [...] (COLLODI, 2004, p. 119-121)
    Por outro lado, a criança pode vir a manter-se no lugar reservado à alteridade do saber dominante ao esquivar-se da escola e do trabalho, como pretende Pinóquio na continuidade do diálogo anterior com a Fada: “Mas eu não quero ter nem uma arte nem uma profissão [...] Porque trabalhar me cansa.” (COLLODI, 2004, p. 121). Um dos espaços da exclusão, da exterioridade, destinado aos que se tornam alheios a essa ordem moderna é anunciado em seguida pela Fada: “[...] aqueles que falam assim acabam quase sempre na cadeia ou no hospital. [...] O ócio é uma doença muito feia, e é preciso curá-la logo, desde criança, se não, quando formos grandes, não se cura mais.” (COLLODI, 2004, p. 121). Esse diálogo se assemelha à conversa ocorrida no início da história, quando Pinóquio afirma que não tem vontade de estudar e que deseja seguir a profissão de comer, beber, dormir e se divertir, levando “uma vida de vagabundo”, e o Grilo Falante lhe diz que “[...] todos aqueles que têm essa profissão terminam quase sempre no hospital ou na cadeia [...]” (COLLODI, 2004, p. 32). Portanto, o conto reafirma que aqueles que não passam pela escola ou que não assumem um trabalho acabam no hospital ou na cadeia, pois é nos estabelecimentos de ensino que se faz possível “[...] caracterizar a aptidão de cada um, situar seu nível e capacidades, indicar a utilização eventual que se pode fazer dele [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 158), e é na escola e nas demais instituições disciplinares (quartéis, hospitais, prisões) que se faz possível tornar os seus os “corpos dóceis” e disciplinados.
    Outro detalhe a ser destacado é o fato de Pinóquio ser constantemente vigiado pelo Grilo Falante, pelos diversos animais que assumem a fala do Grilo (entre eles um vaga-lume e uma marmota), pela Fada em suas diversas representações (menina, cabra, mulher), pelos policiais e pelos médicos (um corvo, uma coruja e o próprio Grilo). O panóptico moderno examina a todo o tempo o boneco e o reconduz a cada instante por meio de mecanismos de coerção, de punição, de exame, de sanção e de gratificação ao saber dominante escolar para que ele não tenha como destino uma cadeia ou um hospital (outras versões do mecanismo panóptico que a todos vigia e examina). Portanto, o panóptico moderno é, ao mesmo tempo, segundo Foucault (1987, p. 185) “[...] um poder direto e físico que os homens exercem uns sobre os outros [...]” e uma tecnologia política “[...] poli- valente em suas aplicações: serve para emendar prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos” (FOUCAULT, 1987, p. 170).
    Assim, resta ainda àqueles que em certo nível se tornam alheios ao saber moderno, por não terem frequentado as escolas ou por não terem um trabalho, o lugar do selvagem a ser domado, como afirma uma marmota que “tenta consolar” Pinóquio ao ver que este está se transformando em um burro: “[...] está escrito nos decretos da sabedoria que todas as crianças preguiçosas que, não gostando de livros, de escola e de professores, passam os seus dias como bobos em jogos e diversões, têm que acabar, cedo ou tarde, transformando-se em pequenos burros.” (COLLODI, 2004, p. 164). Se a doença chamada “febre do burro” anunciada pela marmota se instaura em determinados indivíduos da nossa sociedade moderna, não podendo encontrar cura na idade adulta, como preconiza a Fada, resta aos acometidos e condenados a essa síndrome serem posicionados no lugar destinado ao selvagem enquanto alteridade do homem civilizado, seja em um hospital, seja em uma prisão, seja em um manicômio, seja na marginalidade nas ruas ou na realização de trabalhos subalternizados; sejam eles colonizados, proletários, favelados, mendigos. O domador de burros, que compra o burro Pinóquio e lhe ensina a dançar e a saltar, destaca ao apresentá-lo ao público:
Meus respeitáveis ouvintes! Não estaria aqui lhes dizendo mentira sobre as dificuldades por mim frentadas [sic] para compreender e subjugar este mamífero, enquanto pastava livremente, de montanha em montanha, nas planícies das regiões tórridas. Observem, por favor, quanta selvageria transborda dos seus olhos. Tendo, assim, resultados idos [sic] todos os meios para domesticá-lo à vida dos quadrúpedes civilizados, tive que recorrer muitas vezes ao afável dialeto do chicote. Entretanto, toda a minha gentileza, em vez de tornar-me benquisto por ele, arruinou ainda mais o seu ânimo. Eu, porém, seguindo o sistema de Gales, encontrei na sua cabeça uma pequena cartilagem óssea, que a própria faculdade médica de Paris reconhece ser o bulbo regenerador dos cabelos e da dança pírrica. E, por isso, eu quis amestrá-lo na dança, e nos relativos saltos com argola, e dos barris forrados de papel. Admirem-no e, depois, julguem-no! (COLLODI, 2004, p. 173)
    Destino semelhante encontra grande parcela dos cidadãos excluí dos pela lógica de mercado do contrato social. Zilberman (2003, p. 42) afirma que com relação ao proletariado, ao contrário do que ocorre com a criança burguesa, “[...] a preservação da criança visa à formação e manutenção de um contingente obreiro disponível [...]”, efetivando-se, também dessa maneira, o fascismo social que segrega determinados segmentos às zonas selvagens enquanto aos mais abastados a preservação dos infantes e a sua educação os destinam às zonas civilizadas.
    Por fim, Pinóquio, ao tornar-se um menino e receber roupa nova e dinheiro no bolso, após trabalhar e estudar com afinco, afirma “Como eu era ridículo quando era um boneco! E como estou contente de ter me tornado agora um bom menino!” (COLLODI, 2004, p. 201). A infância é, portanto, negada enquanto espaço de emergência de saberes outros, ausentes no presente contraído e mesmo exterminado da faixa etária infantil, a qual é relegada a mero lugar de fase preparatória para um futuro expandido e previsível (a vida adulta), seja na forma da aceitação plena do indivíduo civilizado, situando-o nas zonas civilizadas, seja na exclusão dele por meio da subalternização de seus saberes e fazeres ou da sua reclusão em hospitais, hospícios, penitenciárias, guetos, aldeias, colônias, classes proletárias, segregando-o nas zonas selvagens. Uma enorme parcela da população do globo é banida, dessa forma, desde a mais tenra infância até o fim de suas vidas, ao lugar da alteridade do saber moderno, do paradigma dominante.
    Deleuze (1988, p. 161) em seu livro intitulado Foucault, afirma que
[...] exilar, enquadrar são a princípio funções de exterioridade, que os dispositivos de internamento apenas efetuam, formalizam, organizam. A prisão enquanto segmentaridade rígida (celular) remete a uma função flexível e móvel, a uma circulação controlada, a toda uma rede que atravessa também os meios livres e pode aprender a sobreviver sem a prisão. [...] o internamento remete a um lado de fora, e o que está fechado é o “lado de fora”. É “no” lado de fora, ou por exclusão, que os agenciamentos internam, tanto em relação à interioridade psíquica quanto no internamento físico (grifos nossos).
    Portanto, o “lado de fora” do mundo moderno civilizado ao qual são destinados os indivíduos situados na alteridade do saber dominante é representado tanto pela escola quanto pela prisão e pelos hospitais, pelo País Pega-Trouxas, pelo País das Brincadeiras, pela mendicância e marginalidade do Gato e da Raposa e pelo destino de Pavio, que morre de tanto trabalhar por não ter frequentado a escola. O espaço da alteridade do Ocidente, ocupado no conto prioritariamente pelo personagem Pinóquio e pelos representantes do estado de natureza, habitantes das zonas selvagens que o assediam, é vigiado pelos olhos, atentos aos detalhes, do panóptico moderno representado pelos policiais, guardas e guardiões que buscam conduzi-lo à civilização enquanto é tempo, enquanto dura a sua infância, enquanto ele ainda não se perdeu, protegendo-o assim nas zonas civilizadas, nas ilhas de inclusão, para que Pinóquio, com os poucos incluídos pela “democracia” do contrato social, esteja a salvo das zonas selvagens, dos arquipélagos de exclusão criados pelo fascismo social, aos quais é relegado um enorme contingente da população do planeta.
    Longe de esgotarmos esse instigante debate, pudemos perceber, por meio deste trabalho que se propôs a efetivar uma análise do conto moderno As aventuras de Pinóquio, de Collodi (2004[1883]), com base na crítica ao paradigma dominante de Sousa Santos (2008), o quanto o selvagem e a natureza, enquanto lugares da alteridade do Ocidente, encontram-se representados na infância personificada no personagem principal desse conto, e o quanto o discurso hegemônico do saber dominante é propagado pela escola, mecanismo disciplinar que se propõe a retirar Pinóquio do estado natural e das zonas selvagens e o inserir nas zonas civilizadas.
    A pesquisa bibliográfica possibilitou-nos uma conceituação da alteridade do Ocidente, do contrato social e do fascismo social a partir de Sousa Santos (2008), dos mecanismos disciplinares vinculados ao saber e ao poder modernos, com base em Foucault (1968, 1987), assim como a contextualização do conto com relação aos elementos históricos e sociais vinculados às instituições: infância, escola e 189 literatura infantil, fundamentada em Zilberman (2003) e Áries (1981). As categorias levantadas a partir da nossa pesquisa bibliográfica permitiram a análise do conto vinculando-o aos seus aspectos discursivo, social e histórico, levando-nos a uma melhor compreensão dessa via de perpetuação da segregação social e de subalternização de saberes e fazeres outros que, por intermédio da educação, vem sendo propagada e perpetuada por meio da literatura infantil e da escola, e nos vem sendo transmitida desde a mais tenra infância.
 
REFERÊNCIAS
 
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S. A., 1981.
 
CHARLOT, B. A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
 
COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/ juvenil: das origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Quíron, 1985.
 
COLLODI, C. As aventuras de Pinóquio. São Paulo: Paulinas, 2004.

COLLODI, C. [1883]. Le avventure di Pinocchio: storia di un burattino. Firenze: Giunti Gruppo Editoriale, 2001.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Portugália Editora, 1968.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.

GÓES, L. P. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Pioneira, 1984.

SOUSA SANTOS, B. de. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.

ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola . São Paulo: Global, 2003.


Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola

As Aventuras de Pinóquio (Collodi, 2004 [1883])

    Um pedaço de madeira que falava foi dado a Gepeto. Com ele construiu um boneco atrevido e impertinente que logo no primeiro dia fugiu de casa, levando seu “pai” a ser preso. Surgiu o Grilo Falante que lhe deu algumas lições de moral, mas Pinóquio se recusou a escutá-las e disse que iria fugir para não ter que ir à escola. O grilo lhe respondeu que assim ele se tornaria um burro e que o seu destino seria o hospital ou a cadeia. Pinóquio matou o grilo, depois se viu sozinho e com fome e se arrependeu, saindo a pedir pelas ruas e voltando ainda com fome e encharcado, queimando os pés em seguida enquanto se secava em um braseiro. Gepeto ao voltar da prisão deu a sua comida a Pinóquio, que prometeu que iria estudar e se comportar. Gepeto lhe fez novos pés e uma roupa de papel, e vendeu o seu casaco para comprar-lhe uma cartilha nova. Pinóquio, no caminho para a escola, vendeu sua cartilha para ir ao teatro de marionetes, onde foi reconhecido pelos outros bonecos de madeira. Come-fogo, o diretor do teatro, ameaçou queimar Pinóquio, mas, compadecido por ele ter um pai, deu-lhe cinco moedas de ouro para que ele levasse para Gepeto. Pinóquio, ao regressar com a intenção de comprar um novo casaco para o pai e uma nova cartilha para si, foi enganado por uma raposa que fingia ser manca e por um gato que se fazia de cego. Eles se disfarçaram e tentaram roubar Pinóquio, que fugiu para a casa de uma menina de cabelos azuis, mas foi alcançado e enforcado pelos assassinos, que voltariam no dia seguinte para pegar as moedas na sua boca quando ele finalmente estivesse morto. Mas, antes que ele morresse, a menina (na verdade uma fada) o conduziu para um quarto onde animais médicos o atenderam, entre eles um Grilo Falante, que apontou os defeitos do boneco. Este chorou arrependido, mas recusou-se a tomar o remédio amargo que lhe traria a cura, pedindo açúcar à fada e prometendo, em vão, que tomaria o remédio. Continuou mentindo para a Fada e o seu nariz cresceu, mas depois, por ordem da Fada, pica-paus bicaram até o seu nariz voltar ao normal. Pinóquio depois de curado seguiu ao encontro de Gepeto, mas no caminho encontrou a Raposa e o Gato, que lhe convenceram a plantar as moedas para que nascesse uma árvore de dinheiro. Ele enterrou as moedas na cidade dos Pega-Trouxas e os dois as roubaram, mas ao protestar, Pinóquio foi preso na cidade. No caminho ele viu uma lápide que anunciava a morte da Fada, Pinóquio chorou e uma pomba apareceu dizendo que Gepeto havia construído uma barca para procurá-lo no mar. Ao chegar à praia, Gepeto já estava em alto mar e desapareceu em meio às ondas. Pinóquio lançou-se ao mar, nadando por toda a noite até chegar a uma praia e caminhar até a Cidade das Abelhas Trabalhadoras, onde todos trabalhavam. Ele não gostou do lugar por não gostar de trabalhar e pediu dinheiro às pessoas, que lhe ofereceram moedas em troca de trabalho, mas ele se recusou inventando desculpas. Até que uma mulher lhe deu água e prometeu que se ele a ajudasse ganharia comida e doces. Ele, a contragosto, a ajudou, percebendo, ao chegar a sua casa, que a ela era a Fada. Ela o adotou como seu filho e ele foi para a escola, aplicou-se nos estudos, mas se envolveu com colegas pouco dedicados que o convidaram para faltar aula e irem juntos à praia para que vissem a grande baleia que, como suspeitava Pinóquio, poderia ter engolido seu pai. Mas na praia não havia baleia nenhuma e os meninos, sete no total, ameaçaram e investiram contra Pinóquio. Como era difícil vencer o boneco, eles lançaram nele seus livros, acertando um livro enorme e pesado em um dos meninos que quase morreu. Pinóquio se arrependeu de ter seguido os colegas que fugiram deixando o garoto que estava ferido com Pinóquio. Chegaram dois policiais e levaram Pinóquio preso, deixando o menino ferido aos cuidados dos pescadores. Em um breve descuido dos guardas o boneco fugiu e foi para a casa da Fada, que o perdoou mais uma vez. Ele jurou que iria estudar e se comportar e tornou-se o melhor aluno de sua turma, mas quando faltava apenas um dia para que fosse transformado em um menino de verdade, partiu escondido com seu amigo Pavio para o País dos Brinquedos, um lugar sem escolas, sem professores, sem livros, sem dias letivos e com férias eternas onde as crianças passavam o dia brincando e se divertindo, e escreviam com erros grama- ticais. Pinóquio foi levado para esse lugar com outros meninos em uma carroça conduzida por um homem e puxada por burros que calçavam botas. Um dos burros tentou alertá-lo, mas mesmo assim ele prosseguiu. Depois de cinco meses de diversão, cresceram nele ore- lhas de burro e ele se arrependeu, buscando Pavio por considerá-lo culpado por tudo, mas ambos, ao se encontrarem, transformaram-se em burros dos pés à cabeça. Pavio foi vendido para um lavrador e Pinóquio para uma companhia de palhaços, na qual lhe ensinaram a dançar e saltar. Na sua primeira apresentação ele viu a Fada na plateia, mas ao chamar por ela, soltou um zurro e foi chicoteado pelo treinador. Quando a procurou novamente, ela havia desaparecido e a plateia aguardava o seu número de saltar por entre argolas, mas ele tropeçou e ficou manco, sendo revendido para um homem que usaria a sua pele para fazer um tambor. O homem amarrou uma pedra ao pescoço do burro e o lançou ao mar para que ele morresse, mas ao puxá-lo encontrou um boneco em seu lugar, pois os peixes, ao comerem suas orelhas, seu rabo, sua pele e sua carne, o libertaram. Pinóquio saltou pelo mar e nadou até ser engolido pela Baleia, embora uma cabritinha azul (a Fada) tenha tentado salvá-lo, estendendo-lhes patas de cima de um rochedo. Dentro da Baleia Pinóquio encontrou seu pai, que havia sido engolido dois anos antes e, juntos, fugiram pela boca da Baleia quando esta adormeceu. Pinóquio lançou-se na água e nadou com Gepeto agarrado aos seus ombros. Já em terra firme, encontraram o Gato, que tinha ficado cego, e a Raposa, que ficou com um lado paralisado, pedindo esmolas. Pinóquio se recusou a ajudá-los, dizendo que se estavam pobres mereciam isso. Chegaram a uma cabana e foram recebidos pelo Grilo Falante, que havia ganhado a casa da cabra azul (a Fada, que havia partido pensando que nunca mais encontraria o boneco). Pinóquio saiu em busca de um copo de leite para o seu pai, que estava muito fraco, aceitando trabalhar na cisterna da horta de um lavrador em troca do leite, pois o burrinho que fazia o serviço para o homem estava morrendo. Pinóquio quis ver o burrinho e constatou que se tratava de Pavio, que morreu minutos depois. O boneco levou o leite para o seu pai e a partir daquele dia trabalhou por cinco meses em troca de um copo de leite por dia para Gepeto. Aprendeu a fazer cestos e aumentou seu ordenado, exercitando também a leitura e a escrita. Um dia, ao sair para comprar roupas novas, encontrou-se com uma lesma que disse que a Fada estava hospitalizada e sem dinheiro para se alimentar. Pinóquio deu todo o dinheiro que possuía para que fosse levado à Fada e em seguida aumentou o ritmo de trabalho diário para que pudesse mantê-la.
    Depois de trabalhar bastante e até muito tarde, ele adormeceu e sonhou com a Fada a beijá-lo. Quando acordou, viu que havia se transformado em um menino de verdade, com roupas novas e com dinheiro no bolso (o dinheiro restituído pela Fada). Gepeto estava curado e tudo isso se devia aos méritos e às virtudes de Pinóquio. Este, depois de se transformar em menino, viu um boneco de madeira apoiado em uma cadeira e fez o seguinte comentário, com que se encerra a história: “Como eu era ridículo quando eu era um boneco! E como eu estou contente de ter me tornado agora um bom menino!” (COLLODI, 2004, p. 201).

Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola

Pinóquio na literatura infantil moderna

    Se a literatura infantil do século XVII caracterizou-se, como afirmam Coelho (1985), em Panorama histórico da literatura infantil/juvenil, e Góes (1984), em Introdução à literatura infantil e juvenil, pela adaptação de obras clássicas e de contos populares, sendo seus títulos de maior vulto os escritos por franceses: La Fontaine, Perrault, Mme. D’Aulnoy e Fénelon, o século XVIII foi marcado pelo predomínio de romances de viagens extraordinárias e de aventuras de energia vital, que seriam lidos por crianças e jovens, tendo na Inglaterra dois dos seus maiores representantes: Robinson Crusoé (1719), de Daniel Deföe, e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, o primeiro deles foi considerado um símbolo da civilização europeia enfrentando e sobrepujando a selvagem natureza americana.
    Entre o período clássico e a Modernidade, na divisão proposta por Foucault (1968) [Foucault (1968), em sua arqueologia das ciências humanas, propõe uma divisão histórica em três períodos: até a Renascença (anterior ao século XVI), período clássico (séculos XVII e XVIII) e Modernidade (a partir do século XIX), destacando uma fase de transição ou descontinuidade entre o período clássico e a Modernidade de 1875 a 1825.]em As palavras e as coisas, (de 1775, quando finda o clássico e ocorre um período de transição, ao início da Modernidade em 1825), temos, por um lado, dando prosseguimento às novelas de aventuras, o “[...] representante anedótico desta [linha temática] [...] o Barão de Munchhausen, (que realmente foi um oficial alemão) [...]” (GÓES, 1984, p. 85), com duas primeiras versões distintas, uma escrita em 1785 por Rudolf Erich Raspe, e outra em 1786 por Gottfried August Bürger. No entanto, a partir de 1800, conforme observa Coelho (1985), as novelas de aventura se subdividem em três linhas (aventuras de fundo histórico, aventuras de energia vital e novelas de cavalaria). Ivanhoé (1820), de Walter Scott, destaca-se entre as narrativas de aventura. A linha dos contos maravilhosos tem como maior representante, nessa fase, a coletânea dos contos de Grimm, lançada entre 1812 e 1822.
    A partir de 1825, ano que para Foucault (1968) marca o início do período moderno, no âmbito da novelística de aventuras, teríamos, segundo Coelho (1985), a continuidade das três linhas surgidas no período de transição, uma de fundo histórico (seguindo a tendência de Ivanhoé, em 1820, de Walter Scott), representada por títulos como: Notre-Dame de Paris (1831), de Vitor Hugo; e Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas. A segunda linha, seguindo o espírito aventureiro da energia vital e da força de vontade, se destaca em obras tais quais O último dos moicanos (1826), de Fenimore Cooper; Cinco semanas em balão (1861), Viagem ao centro da Terra (1864), Vinte mil milhas submarinas (1869), A volta ao mundo em oitenta dias (1873), entre outros, de Jules Verne (Júlio Verne); O livro da Jangal (1894) e Mowgli, o menino lobo (1895), de Rudyard Kipling; O lobo do mar (1904), de Jack London; e Tarzã dos macacos (1914), de Edgard Rice Burroughs. A terceira linha representa, na forma de literatura de cordel, uma retomada das novelas de cavalaria medievais.
    Surgem ainda, nesse contexto, as narrativas policiais, que foram muito bem recebidas pelo público jovem e das quais Edgar Allan Poe é considerado precursor, destacando-se sua obra Os crimes da rua Morgue, escrita em 1841.
    Ainda no século XIX vêm à tona as narrativas do realismo-maravilhoso que, como define Coelho (1985, p. 126), “[...] decorrem no mundo real, que nos é familiar ou bem conhecido, e no qual irrompe, de repente, algo de mágico ou de maravilhoso […] e passam a acontecer coisas que alteram por completo as leis ou regras vigentes no mundo real.” (grifos nossos). Os maiores representantes dessa tendência são Lewis Carrol, com Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através do espelho e o que Alice encontrou por lá (1872); Carlo Collodi, com As aventuras de Pinóquio (1883); e James Barrie, com Peter Pan (1904). O livro As aventuras de Pinóquio (Le avventure di Pinocchio), da autoria de Carlo Collodi, foi publicado pela primeira vez em 1883, na Itália. Utilizamos como fonte textual de nossa análise a tradução de Áurea Marin Burocchi publicada pela editora Paulinas (COLLODI, 2004[1883]) feita a partir do trabalho de revisão e organização de Ornella Castellani Polidori que, em 1983, publicou uma edição crítica com base em vários manuscritos revisados pelo próprio Collodi desde a primeira publicação em 1883 até o ano de sua morte: 1890. Para efeito de conferência com o original em italiano, consultamos inúmeras vezes, para o resumo a seguir delineado e para o nosso procedimento de análise, a reedição da primeira publicação de 1883 (COLLODI, 2001[1883]).
    Com a intenção de favorecermos a compreensão, por parte do leitor, da análise por nós procedida, apresentamos um largo resumo no qual destacamos os pontos por nós considerados relevantes, sabedores de que o livro, em suas 201 páginas, relata uma quantidade enormemente maior de detalhes e passagens.

Fabiano de Oliveira Moraes, A representação da infância em Pinóquio: a propagação
e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola 

ESCOLA E LITERATURA INFANTIL ENQUANTO FERRAMENTAS DE CONTROLE DA INFÂNCIA

    Para Zilberman (2003), no contexto anteriormente destacado, a literatura infantil, reproduzindo o mundo adulto, transmite a norma vigente de acordo com a visão adulta, ocupando exatamente os espaços nos quais os maiores estão impedidos de interferir, tais como os momentos de lazer e fantasia das crianças. A obra, prestando-se a essa tarefa, veicula padrões de comportamento e valores por meio da censura, por parte do narrador, às ações dos personagens infantis. Dessa forma,
[...] os fatores estruturais de um texto de ficção – narrador, visão de mundo, linguagem – podem-se converter no meio por intermédio do qual o adulto intervém na realidade imaginária, usando-a para incutir sua ideologia. […] o texto se revela um manual de instruções, tomando o lugar da emissão adulta, mas não ocultando o sentido pedagógico. (ZILBERMAN, 2003, p. 23-24)
    Escola e literatura infantil, portanto, servem ao sistema disciplinar em voga desde então. “Para definir esse sistema, distinguiremos suas três características principais: a vigilância constante, a delação erigida em princípio de governo e em instituição, e a aplicação ampla de castigos corporais.” (ARIÈS, 1981, p. 180). A principal diferença entre a criança e o adulto é acentuada justamente na sua fraqueza, faz com que a primeira seja “[...] rebaixada ao nível das camadas sociais mais inferiores.” (ARIÈS, 1981, p. 181).
    Para Zilberman (2003), é justamente quando a literatura infantil torna-se instrumento de doutrinação ideológica utilizado no contexto escolar que as forças de ambas as instituições se assomam no sentido de envolver a criança (colocada em uma situação de dependência e fragilidade) com os comportamentos e normas sociais que esta deve assumir e cumprir.

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e a perpetuação do discurso hegemônico por meio da literatura infantil e da escola

INFÂNCIA, ESCOLA E LITERATURA INFANTIL: CONEXÕES, RELAÇÕES E IMBRICAÇÕES

    O gênero literatura infantil é considerado um dos mais recentes gêneros literários existentes, afirma Zilberman (2003) em sua obra A literatura infantil na escola. As primeiras obras destinadas ao público infantil foram publicadas no fim do século XVII e durante o século XVIII, no período clássico. A inexistência desse gênero antes de tal período deve-se ao fato de que, até então, não havia uma preocupação especial com a infância. “A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola [...] são convocadas para cumprir essa missão.” (ZILBERMAN, 2003, p. 15).
    No período clássico, o núcleo familiar burguês, estimulado ideologicamente em um primeiro momento pelo Estado absolutista e em um segundo momento pelo liberalismo burguês, oferece o sustentáculo ideal para a centralização do poder político, estabelecendo-se dentro de valores herdados da nobreza feudal — fato que contrabalançou a rivalidade entre a burguesia e esta última — sejam eles: “[…] a primazia da vida doméstica, fundada no casamento e na educação dos herdeiros; a importância do afeto e da solidariedade de seus membros; a privacidade e o intimismo como condição de uma identidade familiar.” (ZILBERMAN, 2003, p. 17). Tais valores elevam a infância ao patamar de baluarte do modelo familiar. A criança, doravante, converte-se em eixo ao redor do qual a família se organiza, tendo, esta última, como missão a responsabilidade de conduzir os infantes com saúde e prepará-los intelectualmente para a vida adulta. Ariès (1981, p. 210), em História social da criança e da família, afirma a esse respeito: “O sentimento de família, que emerge assim nos séculos XVI-XVII, é inseparável do sentimento da infância. O interesse pela infância […] não é senão uma forma, uma expressão particular desse sentimento mais geral, o sentimento da família.”. Acerca da família, e em conformidade com o que Zilberman (2003) defende, o autor francês nos assegura: “Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico.” (ARIÈS, 1981, p. 214). O autor, no prefácio da segunda edição de sua obra, utiliza os seguintes termos para apontar para a configuração familiar que então se delineava:
Foi no fim do século XVII e início do XVIII que situei, partindo de fontes principalmente francesas, o recolhimento da família longe da rua, da praça, da vida coletiva, e sua retração dentro de uma casa melhor defendida contra intrusos e melhor preparada para a intimidade. […] É normal que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre a mãe e a criança: o sentimento de família […] (ARIÈS, 1981, p. 23-25)
    Surge, nesse contexto, a idealização da infância, fundada em teorias que postulam: a dependência da criança, em virtude dos aspectos fisiológico e transitório dessa faixa etária; e sua inocência natural, enquanto inexperiência, que tanto precisa ser preservada idealmente quanto gradativamente destruída pela prática pedagógica que visa preparar o infante para a vida adulta. Segundo Ariès (1981, p. 180) “Duas idéias novas surgem ao mesmo tempo: a noção de fraqueza da infância e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres.”.
    Desde o final do século XVII, as crianças são isoladas e distanciadas dos adultos antes de serem lançadas ao mundo, essa espécie de quarentena a que são submetidos os pequenos, compara Ariès (1981, p. 11) no prefácio à segunda edição de sua obra, não é, senão, a própria escola: “Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.”. Zilberman (2003, p. 21-23) acrescenta a esse respeito a afirmação de que a escola, instituição imbuída da tarefa de preparar a criança para o mundo adulto e de protegê-la das violências desse mundo exterior,
[...] acentua a divisão entre o indivíduo e a sociedade, ao retirar o aluno da família e da coletividade, encerrando-o numa sala de aula em que tudo contraria a experiência que até então tivera. Em vez de uma hierarquia social, vive uma comunidade em que todos são igualados na impotência: perante a autoridade do mestre e, mais adiante, da própria instituição educacional, todos estão despojados de qualquer poder. Em vez de um convívio social múltiplo, com pessoas de variada procedência, reúne um grupo homogeneizado porque compartilha a mesma idade […] O sistema de clausura coroa o processo: a escola fecha as portas para o mundo exterior […] As relações da escola com a vida são, portanto, de contrariedade: ela nega o social, para introduzir, em seu lugar, o normativo. […] é por omitir o social que a escola pode-se converter num dos veículos mais bem-sucedidos da educação burguesa […] Neste momento, a educação perde sua inocência, e a escola, sua neutralidade, comportando-se como uma das instituições encarregadas da conquista de todo jovem para a ideologia que a sustenta, por ser a que suporta o funcionamento do Estado e da sociedade. […] Desarmada, a criança não reage; e sua impassibilidade é tomada como sinal de aceitação da engrenagem.
    Ainda durante o século XVII, ressalta Ariès (1981), o sentido da imposição do conceito de inocência infantil desembocou numa atitude moral de caráter duplo com relação à faixa etária infantil: “[...] preservá-la da sujeira da vida [...] e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão.” (ARIÈS, 1981, p. 146). Nesse âmbito surge a preocupação crescente com a decência tanto na escolha das leituras adequadas às crianças como no nível das conversas que se pode ter diante delas. “Ensinai-os a ler em livros onde a pureza de linguagem coincida com a seleção de bons temas.” (VARET, 1666 apud ARIÈS, 1981, p. 143).

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