Certo enfermo, homem sisudo,
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Deixou por condescendência
Chamar um doutor, que tinha
Entre os mais a preferência.
Manda-lhe o fofo Esculápio
Que bote a línguas de fora,
E envia dez garatujas
À botica sem demora.
«Com isto (diz ao paciente)
A sepultura lhe tapo.»
Replica o pobre a tremer:
«Aposto que não escapo».
(IV, 143)
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Outro
grande tema da sátira epigramática de Bocage são os erros dos médicos, ou dos
falsos cirurgiões da sua época.
No
caso deste texto, eis que um homem adoece e decide recorrer, com temor e
hesitação (“Deixou
por condescendência...”), aos serviços da medicina. Na 2.ª estrofe,
Bocage apresenta ironicamente a figura do pretensioso médico (designado, com ironia,
por “fofo
Esculápio” – Esculápio era o deus da Medicina) observando o doente,
mandando-lhe deitar a língua de fora, e aviando uma receita ilegível (“dez garatujas”),
actos que consubstanciam a sua pretensiosa ciência/sabedoria. Finalmente, na
última estrofe, atente-se na irónica ambiguidade da afirmação do médico. Ao dizer
que tapa a sepultura ao doente, tanto afirma que o vai salvar da morte certa,
como pode significar que o mata definitivamente. E é nesta segunda acepção que
o pobre e desenganado paciente entende a declaração do médico. Em suma, a
sátira caricatural de que esta figura-tipo é alvo, incide sobre o tema dos
doentes que morrem mais depressa por causa dos erros da classe médica do que
por causa da própria doença e que, em alguns textos, leva Bocage a afirmar que
a Medicina é filha da própria Morte. Como diz a sabedoria popular, se não
morrem da doença, morrem da cura.
Por
vezes, como é o caso do texto em análise, Bocage serve-se de um breve mas
cómico diálogo entre médico e paciente, dando assim maior vivacidade e graça ao
cómico de situação ou de linguagem. Também é comum referir-se, algo jocosa e
metaforicamente, aos médicos como os descendentes de Galeno (anatomista grego),
os filhos de Esculápio (deus da Medicina) ou alunos de Hipócrates (médico
célebre).