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sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Análise da cena 1 do ato V de Hamlet

    Antes de mais, convém esclarecer o seguinte: os coveiros são designados por um termo que podemos traduzir por «palhaços», contudo, na época de Shakespeare, o vocábulo não tinha o mesmo significado que no século XXI (um artista de circo ou uma pessoa brincalhona e engraçada), antes se referia a uma pessoa rústica ou a um camponês. Deste modo, os coveiros representam um tipo humorístico comumente presente nas peças de Shakespeare, ou seja, o plebeu astuto e matreiro que «vence» personagens de um estrato social superior através da sua astúcia e inteligência, o que fazia com que as peças / representações atraíssem pessoas de classes sociais inferiores, nomeadamente os chamados «groundlings», isto é, aqueles que não tinham possibilidades de pagar assentos e, por isso, se sentavam no chão. Dito isto, nesta cena em particular, os coveiros são figuras macabras, pois os seus ditos jocosos e provocações são produzidos no cemitério enquanto abrem a sepultura que constituirá a derradeira morada de Ofélia, rodeados de ossos de mortos. Não obstante, o diálogo que travam a propósito da jovem, cuja identidade desconhecem, foca um tema importante: a questão do suicídio e a forma como a religião e a sociedade o encaram e tratam.
    De facto, o suicídio é fortemente condenado na época, o que decorre das raízes, da influência, cristãs da sociedade. O cristianismo encarava-o como uma renúncia, uma rejeição da vida, considerada uma dádiva divina, constituindo, portanto, um desrespeito a Deus. Assim, na sequência desta visão da questão, a maioria das pessoas que se suicidava era privada de um sepultamento cristão. É isto que explica a pressão de Laertes sobre o padre para proporcionar um enterro digno e adequado à irmã, bem como a relutância do religioso em o fazer, pois seria contrário à prática cristã. Por outro lado, o facto de o padre fazer alguma concessão evidencia a importância do status social na época, ou seja, como Ofélia era nobre e pertencia a uma família respeitada e com ligações ao poder, o religioso fez o possível para lhe proporcionar um enterro condigno, mesmo que essa atitude contrarie os princípios cristãos.
    Esta cena levanta outra questão presente ao longo da obra: a figura da mulher numa sociedade patriarcal. No início da peça, tanto Polónio como Laertes aconselham Ofélia no sentido de proteger a sua honra e a sua inocência, tidas como fundamentais para as mulheres nobres da época. É esse mesmo sentimento que anima Laertes a tentar convencer o padre a enterrar Ofélia como uma jovem inocente, sem pecado. Sucede, porém, que ela se suicidou, pelo que o irmão não pode mais proteger a sua irmã nem exercer a sua vontade sobre a rapariga. Deste modo, podemos concluir que é na morte que Ofélia se liberta finalmente da influência e do domínio dos homens na sua vida.
    Após a descoberta do crânio de Yorick, Hamlet faz uma reflexão filosófica e mórbida sobre a morte. Ao recordar o quão cheio de vida e alegre era o bobo da corte, essa recordação desperta nele o reconhecimento de que não importa o estrato social, o poder ou a forma de ser da pessoa, pois todos acabarão por morrer e transformar-se num amontoado de ossos. Quando se apercebe de que o crânio fede, conclui que mesmo os grandes vultos e heróis da humanidade, como, por exemplo, Alexandre, o Grande, morrem e apodrecem. Deste modo, Hamlet conclui que ninguém é imune à passagem e devastação do tempo e à morte. Nesta cena, o príncipe imagina o pó do cadáver decomposto de Júlio César a ser usado para remendar uma parede, o que se relaciona com uma fala sua proferida no ato IV, quando declara que um homem pode pescar com o verme que comeu de um rei e comer do peixe que se alimentou daquele verme, uma imagem que, no fundo, ilustra a ideia de que um rei pode passar pelas entranhas de um mendigo. Estamos na presença de temas abordados já na literatura da Antiguidade e retomados pelos autores do Renascimento. Em última análise, o príncipe conclui que nada importa – o que é ou o que fizer –, pois inevitavelmente morrerá. Essa noção liberta-o de alguma forma, daí que finalmente dê um passo em direção à vingança na cena seguinte. Ele sempre se preocupou em fazer o que é correto e honrado, o que leva a hesitar constantemente sobre como agir, contudo, ao interiorizar a inevitabilidade da morte, as suas preocupações sobre o modo certo de agir parecem-lhe insignificantes. O que importa se ajo corretamente ou não, se vou morrer de qualquer forma?
    Outro ponto interessante é o facto de, em nenhum momento, Hamlet expressar qualquer sentimento de culpa relativamente à morte de Ofélia, de que é indiretamente culpado, não só por causa da forma fria e desconcertante como a tratou, mas também por ter assassinado o seu pai. O único momento em que se nota algum traço de arrependimento está presente na cena seguinte, concretamente no momento em que se desculpa perante Laertes antes do duelo, culpando a sua «loucura» pela morte do pai. No entanto, este passo parece incoerente, visto que Hamlet já declarara anteriormente estar apenas a fingir que estava louco. Tudo isto questiona a sua moralidade, porém, tendo em conta as suas constantes hesitações e indefinições, bem como a dor e o conflito interior que sempre o dilaceraram, é possível que, se assumisse a totalidade da sua responsabilidade e culpa nos acontecimentos, nomeadamente na morte de Polónio, fosse incapaz de suportar o tormento psicológico daí resultante. Seria, provavelmente, um peso demasiado grande para ele suportar. Neste caso, nem a descoberta recente do efeito equalizador da morte e da decomposição física (tanto os grandes homens como os mendigos se transformam em pó) o levam a desprender-se da sua «persona» e a agir corretamente.
    Por último, o confronto de Hamlet e Laertes no túmulo de Ofélia antecipa o confronto final que está iminente. O facto de ter lugar num cemitério, mais concretamente numa sepultura, constitui um presságio de morte de ou de ambos. Eles vão enfrentar-se num combate de esgrima, portanto a morte pode atingir qualquer um dos dois.

A escola do século XIX em imagens - X


Gerrit Dou, Escola nocturna (c. 1660)


    Este quadro foi pintado no século XVII e foca o tema da escola noturna.
    Antes da invenção da eletricidade, estudar à noite exigia ainda mais esforço e sacrifício do que aquele que ainda hoje implica a escola em regime pós-laboral. A iluminação era fraca, dependente da luz bruxuleante de velas e lamparinas, e esse constrangimento ao labor de alunos e professores é aqui magistralmente explorado pela mestria do pintor, que introduz no quadro nada menos de que quatro distintas fontes de luz.
    A penumbra em que a cena se desenrola esbate contornos e pormenores: percebemos o professor e uma aluna debruçados em torno de um texto que esta lê, enquanto o mestre lhe chama a atenção para algo importante. Em volta, outros alunos leem, escrevem, estudam as matérias.
    Contudo, o esquematismo da cena transporta consigo uma ideia poderosa; a luz e as trevas são uma metáfora feliz e recorrente da eterna luta do conhecimento contra a ignorância. As luzes que aqui se iluminam representam a vontade de aprender, de vencer a escuridão do desconhecimento, da superstição e do preconceito. E essa sempre foi e será a missão fundamental da escola, em todos os tempos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Resumo da cena 1 do ato V de Hamlet

    Esta cena, também conhecida como “A cena do cemitério”, apresenta dois coveiros (também designados como palhaços ou rústicos) a cavar a sepultura de Ofélia e a discutir se uma mulher que se tenha suicidado poderá ter um funeral cristão. De facto, de acordo com os preceitos religiosos cristãos, um suicida não o poderia ter, pois o suicídio era considerado um pecado capital. O segundo coveiro responde afirmativamente e insta o outro a cavar mais depressa. Ele considera que Ofélia se suicidou e terá um enterro cristão exclusivamente por se nobre, o que suscita a concordância do companheiro, que aproveita o ensejo e expressa o seu descontentamento relativamente às diferenças de tratamento de que são vítimas as classes sociais mais baixas. Este último coveiro propõe uma charada ao colega, perguntando-lhe quem é que faz construções mais fortes do que o pedreiro, o construtor naval ou o carpinteiro. O outro coveiro alvitra que deverá ser o fabricante de forcas, visto que a sua construção dura mais do que mil inquilinos, mas é corrigido pelo parceiro, que lhe diz que é o coveiro, pois são as construções durarão até o Juízo Final.
    Enquanto os dois homens trabalham, Hamlet e Horácio observam à distância e o primeiro não percebe que estão a preparar a sepultura de Ofélia. Os coveiros, fazendo uso de humor negro, como atrás foi exemplificado, e brincam sobre o trabalho de abrir sepulturas e conversam sobre a inevitabilidade da morte, o que constitui um nítido contraste com o momento trágico que o passamento de Ofélia constitui: Hamlet, curioso sobre o crânio que um deles desenterra, pergunta a quem pertencia e o coveiro esclarece que é Yorick, o bobo da corte do rei, que o príncipe conheceu na infância. O homem acrescenta que exerce a sua profissão desde que o rei Hamlet derrotou o velho Fortinbras numa batalha, no mesmo dia em que o príncipe Hamlet nasceu. Este pega, horrorizado, no crânio e reflete sobre a mortalidade e a transitoriedade da vida, lamentando o facto de todos os seres humanos acabarem transformados em pó, independentemente da classe social a que pertencem ou da riqueza que possuem, mesmo homens como Alexandre, o Grande, ou Júlio César.
    Subitamente, chega o cortejo fúnebre de Ofélias, liderado por Laertes, seu irmão, e por Cláudio, a rainha Gertrudes e outros membros da corte. Ao observar a simplicidade da procissão, Hamlet declara que o falecido, quem quer que seja, deve ter tirado a própria vida, mas ainda conserva o seu estado de nobre. De seguida, pede a Horácio que se escondam e observem o desenrolar dos acontecimentos.
    Laertes questiona o padre sobre as cerimónias a realizar e o religioso responde que incluiu o máximo que pôde, tendo em conta que o defunto se suicidou. Dado que era uma nobre, garantiu que fosse sepultada como uma virgem com flores no seu túmulo. Finalmente, Hamlet percebe que a sepultura é para Ofélia, no mesmo instante em que Laertes se enfurece com o padre, que acaba de lhe dizer que dar à morte um funeral cristão adequado profanaria os mortos, lhe diz que espera que as violetas brotem do túmulo da irmã enquanto o religioso arde no inferno, e salta para dentro da cova de Ofélia, dominado pela dor, dizendo que gostaria de ser enterrado com ela.
    Aflito e indignado, Hamlet sai do esconderijo e aproxima-se do cortejo, proclamando o seu amor pela defunta e que o seu amor e a sua dor são maiores e mais profundos. De seguida, imita Laertes e salta para dentro da cova. O filho de Polónio amaldiçoa-o e dos dois começam a lutar, mas são separados. O rei e a rainha declaram que Hamlet está louco. Este sai furioso e Horácio segue-o. Cláudio pede a Laertes que seja paciente e recorda-lhe o plano que gizaram para matar Hamlet, dizendo-lhe que a sua oportunidade de vingança chegará em breve.

Análise da cena 7 do ato IV de Hamlet

    Não há tempo a perder: os acontecimentos encaminham-se velozmente para o clímax da peça, por isso o ritmo da ação acelera. Algo muito importante está prestes a acontecer; o leitor apercebe-se disso, apenas não sabe integralmente o quê, onde e quando.
    No início da cena, encontramos Cláudio e Laertes juntos quando a carta de Hamlet chega, discutindo a inocência do rei na morte de Polónio, na qual o segundo agora acredita. No entanto, este último quer saber o motivo por que o soberano não castigou o sobrinho pelo seu crime. Nestas circunstâncias, as duas personagens tornam-se aliadas por um objetivo comum, embora por razões diferentes: a morte de Hamlet. Cláudio age de forma astuta, manipuladora, calculista e tortuosa, trabalhando minuciosamente para despertar em Laertes a raiva que conduzirá ao confronto com o jovem príncipe e à sua morte. No seu plano, embora inocente e inconscientemente, colabora a própria rainha, quando confirma a inocência do marido na morte de Polónio. Além disso, aproveita-se do temperamento impulsivo do seu aliado.
    O plano que ambos traçam para eliminar Hamlet é pensado e estruturado de modo a parecer que a morte do príncipe será acidental: partindo de um confronto de esgrima amigável, os dois conseguirão matar Hamlet sem levantar suspeitas sobre si. Todavia, o plano apresenta evidentes falhas de conceção. Por exemplo, ninguém suspeitaria do facto de tal morte ocorrer por envenenamento, a técnica preferencial de Cláudio e um recurso tradicionalmente associado às mulheres assassinas? Este facto pode explicar-se de duas formas: por um lado, é possível que o desejo e a ansiedade em assassinar Hamlet sejam tão grandes que não tenham refletido ou preocupado com isso; por outro, se alguém suspeitasse de um crime, seria relativamente fácil para o monarca atribuir todas as culpas a Laertes. Além disso, é interessante notar que o tema da vingança alcança novos patamares: os dois aliados engendram não um, mas três formas de eliminar Hamlet. Em todo o processo, o papel dos dois fica bem claro: Cláudio é o cérebro da trama, enquanto Laertes é o músculo. Note-se ainda que ambos parecem conhecer bem a personalidade de Hamlet, contando que a sua vaidade e o seu sentido de honra não lhe permitirão recusar a partida de esgrima. Em todo o plano, como de costume, Cláudio age de forma que, mesmo que aquele falhe, nada o afete.
    Todavia, a morte trágica de Ofélia, conhecida após a elaboração do plano, não estava nas contas de Cláudio e pode constituir o grão de areia na engrenagem que poderá fazê-lo descarrilar. Desde logo, esse evento adia a colocação do plano em prática, pois terá que esperar que Laertes faça o luto pela irmã, como o próprio anuncia de imediato. Além disso, o rei, que não sente qualquer tristeza ou preocupação relativamente a Ofélia e ao seu destino, receia o impacto imprevisível que a raiva de Laertes possa vir a ter nos acontecimentos seguintes e, por consequência, no plano para matar Hamlet.
    O passamento de Ofélia, embora não relacionado com a morte do rei Hamlet, parece sustentar a tese segundo a qual a violência gera mais violência e a morte mais morte. No fundo, a jovem é uma vítima inocente apanhada no fogo cruzado trocado entre Cláudio e o seu sobrinho. A responsabilidade deste vai mais longe, porém, dado que o seu comportamento imprevisível e errático a levou ao limite da sua sanidade, culminando no facto de ele ter assassinado Polónio, seu pai. Todos estes aspetos enfatizam o modo como o comportamento insensível de Hamlet impacta terrivelmente na vida das outras personagens, nomeadamente nas femininas. Quando a peça tem início, Ofélia e o príncipe parecem caminhar no sentido de uma relação amorosa frutuosa – no mínimo, de uma amizade saudável –, no entanto rapidamente o pai e o irmão começam a interferir no relacionamento de ambos, e o próprio Hamlet principia a usá-la como um peão no seu projeto de vingança. As consequências de todos estes jogos macabros tornam-se agora visíveis.
    A imagem de Ofélia a afogar-se no meio das suas flores é fortíssima, tanto que foi sendo representada inúmeras vezes ao longo dos séculos. Convém notar que a associação da personagem às flores é recorrente ao longo da peça. Ma sua primeira cena, por exemplo, o pai oferece-lhe uma violeta; à medida que começa a enlouquecer, entoa canções sobre flores. A beleza e a fragilidade de Ofélia são bem simbolizadas pela beleza frágil das flores, bem como a sua sexualidade emergente e a sua inocência.
    Ofélia morre, de facto, de forma trágica. As circunstâncias exatas são descritas por Gertrudes: a jovem estava a tentar pendurar coroas de flores numa árvore próxima de um riacho, quando um galho se partiu, fazendo com que ela caísse na água. Aparentemente perturbada e incapaz de reagir, flutuou durante alguns momentos na água e depois afogou-se. A presença das flores parece representar a sua incapacidade de processar a dor causada pela morte do pai e, possivelmente, também a confusão que sentia por causa do comportamento de Hamlet para consigo.
    Em suma, a morte de Ofélia é rodeada de grande simbolismo e pode ser interpretada de diferentes maneiras, incluindo como um acidente ou como um possível suicídio, motivado pelo seu estado de loucura e confusão mental.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Resumo da cena 7 do ato IV de Hamlet

    Cláudio explica a Laertes as circunstâncias da morte de Polónio, vincando a sua inocência, na qual o interlocutor acredita. No entanto, o jovem questiona por que motivo o rei não tinha procurado vingança contra Hamlet, o assassino. O monarca retorque, apresentando duas razões: o amor de Gertrudes pelo filho e a popularidade deste na Dinamarca. Enquanto marido e rei, Cláudio não queria aborrecer nenhum deles. Laertes comenta que a reputação de Hamlet não o preocupa e acrescenta que em breve se vingará.
    Nesse instante, entra um mensageiro com uma missiva de Hamlet para Cláudio e outra para a rainha. O monarca lê-as em voz alta para Laertes: o príncipe revela que regressou à Dinamarca sem quaisquer pertences e que deseja encontrar-se com ele no dia seguinte, para lhe explicar o seu regresso. Laertes mostra-se satisfeito pelo retorno do príncipe, pois tal significa que poderá executar a sua vingança. Os dois gizam, então, um plano para a consumar. Cláudio, desejoso de se ver livre de Hamlet, pois este constitui uma ameaça à sua pessoa e ao seu reinado, relembra a Laertes que, no passado, o príncipe sentiu ciúmes da destreza de Laertes na arte da esgrima, o que foi elogiado na corte por um francês que o viu em ação. O rei alvitra que, se o filho de Polónio desafiasse Hamlet para um duelo, teria aí a oportunidade para se vingar. Todo o diálogo revela a astúcia e a mente tortuosa de Cláudio, que conduz o diálogo e a ação no sentido de tudo ser feito de modo a deixar a sua pessoa imaculada em todo o processo. O plano final é estabelecido: Laertes usará uma espada afiada, em vez da tradicional lâmina cega característica da esgrima. O filho de Polónio concorda e acrescenta um extra: ele untará a ponta da espada com veneno, para garantir a morte do rival, mesmo que só o consiga arranhar. Astutamente, Cláudio traça um plano B: se Hamlet sair vitorioso do duelo, oferecer-lhe-á uma taça de vinho envenenada para celebrar a vitória.
    Logo após, Gertrudes entra em cena para dar uma notícia horrível: Ofélia, louca de dor, afogou-se num riacho próximo. Desesperado com o falecimento da irmã, ocorrido logo após o do pai, Laertes declara que, quando terminar o luto, está pronto para a vingança e sair da sala.

Análise da cena 6 do ato IV de Hamlet

    Esta cena constitui uma reviravolta súbita dos acontecimentos: Hamlet vai regressar à Dinamarca, após ter sido capturado por piratas que, no entanto, o trataram bem. Este inusitado evento é curioso, pois um ato contrário à lei – o ataque pirata e a captura de Hamlet –, em vez de ser punido, é recompensado, pois o príncipe pretende retribuir os piratas por o terem trazido de volta ao seu país.
    Um outro aspeto interessante prende-se com as palavras escritas por Hamlet a Horácio, nomeadamente quando refere que tem palavras para lhe dizer ao ouvido que o deixarão mudo. Pode ver-se aqui uma alusão ao modo como o velho rei Hamlet foi assassinado: Cláudio derramou-lhe veneno no ouvido (ato IV, cena 6).

Resumo da cena 6 do ato IV de Hamlet

    Noutra parte do castelo, Horácio é abordado por um par de marinheiros que lhe entregam uma carta de Hamlet. Na missiva, o príncipe diz-lhe que o seu navio tinha sido capturado por piratas dois dias apenas após o início da viagem e ele tinha sido feito prisioneiro. Além disso, pede-lhe que conduza os marinheiros à presença do rei e da rainha, pois eles têm outras cartas para lhes entregar, e depois deve ir busca-lo imediatamente. Hamlet acrescenta que tem muito que contar-lhe, nomeadamente acerca de Ronsencrantz e Guildenstern, que estão a viajar para Inglaterra. Horácio leva os marinheiros até o rei e, posteriormente, segue-os ao encontro do jovem príncipe.

Análise da cena 5 do ato IV de Hamlet

    Há algo muito podre no reino da Dinamarca: Polónio morreu e foi sepultado em segredo; Hamlet prepara-se para partir, forçado, para Inglaterra; Ofélia parece cada vez mais ensandecida; o povo está perturbado e murmurando entre si. Para compor o ramalhete, Laertes está de volta à Dinamarca e possui a legitimidade moral que falta a Cláudio por vários motivos e a que Hamlet perdeu ao assassinar Polónio.
    O regresso de Laertes é muito significativo. Desde logo, intui que Cláudio é um assassino, embora pelo ângulo errado, ou seja, supõe que o rei assassinou Polónio, o que não é verdade, pois a sua vítima foi o velho rei Hamlet. Por outro lado, é nítido o contraste que existe a sua figura e a do príncipe dinamarquês. De facto, este é muito reflexivo e hesitante, daí as enormes dificuldades que manifesta em agir, enquanto Laertes é ativo e menos reflexivo. Além disso, não é atormentado pelas questões morais que inundam o jovem príncipe, daí que o seu único pensamento seja o de vingar a morte do seu pai. Por outro lado, Laertes parece uma figura desequilibrada e irrefletida, daí que o desejo de vingar o pai a todo o custo será a sua ruína, arrastando consigo outras personagens para o precipício. Ele só pensa em vingar o pai o mais rápido possível e considera tal um dever e uma questão de honra, daí que se precipite, por exemplo, quando tira conclusões apressadas sobre quem terá sido o homicida. Seja como for, é quase certo que a sociedade dinamarquesa da época prefira a postura de Laertes à de Hamlet, pois acreditava no castigar das injustiças.
    Cláudio, astuto, aproveita as circunstâncias para o manipular e cativar, tendo na mente a possibilidade de o aproveitar para a sua trama com Hamlet, por isso comporta-se como um amigo solidário e sensato de Laertes, procurando que este seja seu aliado e um oponente do príncipe. Quando, mais tarde, o rei o questiona, querendo saber até onde está disposto a ir para vingar o pai, o filho de Polónio é claro e decidido, afirmando que está disposto a cortar a garganta de Hamlet na igreja (ato IV, cena 7), o que contrasta com a postura do príncipe, que se recusou a matar Cláudio enquanto este estava ajoelhado em oração. A questão da religião e da religiosidade é muito importante na época.
    Outro dos temas que perpassa a peça, nomeadamente esta cena, é a loucura, nomeadamente a de Ofélia, marcada pela perda do pai e do amor de Hamlet. Essa sua instabilidade emocional manifesta-se de várias formas, concretamente da distribuição de flores e das canções que entoa. Nesta cena, a jovem distribui flores a várias pessoas, atribuindo-lhes vários significados: o alecrim representa lembrança e os amores-perfeitos pensamentos. Dito isto, a representatividade das flores é mais profunda, visto que se associam a várias ideias e conflitos que atravessam a sua mente e o seu progressivo afastamento da realidade e da razão. Por outro lado, como as suas canções estão conectadas com amores e morte, as flores podem ser associadas à morte, concretamente à de Polónio.
    As canções de Ofélia, embora possam parecer aos outros não ter sentido, na verdade traduzem a sua obsessão com a morte do pai e do amor de Hamlet, bem como com um desejo sexual algo ambíguo, com o qual ela parece lutar, depois de ter sido desencorajada do desejo sexual pelo pai, pelo irmão e pela sociedade de forma genérica. A temática das canções centra-se em homens infiéis: no início da peça, parecia haver a possibilidade de se desenvolver uma relação amorosa entre a jovem e Hamlet, no entanto a partir de certo momento vê-se confrontada com um príncipe manipulador, desconcertante, aparentemente dominado pela loucura e cruel. Quase em simultâneo, ela perde a figura paterna, sempre presente, e um irmão preocupado e amoroso. Isto é tão mais importante quanto as mulheres, na época, tinham pouca importância e valor, estando sistematicamente dependentes dos homens. É também o caso de Ofélia. Todavia, neste momento, todas as figuras masculinas morreram ou estão distantes, daí que ela esteja sem balizas e apoios.
    Por outro lado, a temática das canções pode associar-se à decadência, não só dos corpos, mas da situação política. Numa delas, refere-se a um homem que é levado para o túmulo num caixão aberto, o que representa a ideia de que violência gera mais violência, depravação moral gera mais depravação moral. Convém sempre recordar as palavras de Marcelo, quando afirma que algo está podre no reino da Dinamarca. Ora, a canção da jovem retoma esse tópico, visto que a letra fala da morte como se esta estivesse em exposição em Elsinore. Assim sendo, é lícito concluir que o desejo e a busca de vingança apodrecem a monarquia dinamarquesa, acelerando a decadência moral já existente há muito.
    Voltando à loucura, é curioso observar que este tema faz contrastar Hamlet com outra personagem: Ofélia. Com efeito, o príncipe tem fingido estar louco como estratégia para atingir os seus objetivos, ao passo que a jovem é levada a esse estado por um conjunto de circunstâncias externas.

Resumo da cena 5 do ato IV de Hamlet

    A ação retorna ao castelo de Elsinore. Ofélia solicitou uma audiência a Gertrudes, porém a rainha está relutante em a receber, pois teve conhecimento de que a jovem tem agido estranhamente desde a morte do pai. No entanto, Horácio diz-lhe que Ofélia é merecedora de pena, explicando-lhe que a sua dor a deixou enlouquecida e incoerente. A rainha consente, embora comente que a deterioração da filha de Polónio poderá constituir o prenúncio de uma grande calamidade.
    Ofélia entra, entoando uma canção de amor e adornada de flores. Educadamente, a rainha questiona-a sobre o significado da canção, porém a jovem prossegue cantando sobre um homem falecido, enterrado e adornado com flores doces. Entrementes, chega Cláudio e, ao ouvir a cantoria e o discurso desconexo de Ofélia, comenta que a sua dor decorre da morte do pai. De facto, tudo em torno da jovem sugere a sua loucura. Por exemplo, quando a cumprimenta e lhe pergunta como está, ela refere-se a uma história enigmática sobre a filha de um padeiro que foi transformada em coruja, querendo significar que as pessoas sabem quem são, mas não necessariamente aquilo em que se tornam.
    Ofélia prossegue, interpretando músicas sobre amor não correspondido e mulheres derrotadas por homens desleais. Subitamente, interrompe a canção para afirmar que não consegue parar de pensar no seu pai, deitado no chão frio, e declara que irá informar o irmão sobre estes acontecimentos. Seguidamente, despede-se do casal real e sai do salão. Cláudio pede a Horácio que olhe pela jovem e o homem sai também.
    A sós, Cláudio informa Gertrudes que Laertes regressou secretamente da França após ter tomado conhecimento do passamento do pai. Enquanto dialogam, ouve-se uma grande comoção no exterior, seguida da entrada de um mensageiro no salão. Este dá conta que Laertes, acompanhado por uma multidão de plebeus, pegou em armas contra Cláudio e que o povo está do seu lado, gritando pelas ruas que o filho de Polónio deve ser rei. Gertrudes fica chocado com a notícia. Logo de seguida, Laertes entra, furioso, no salão e declara que quer vingar a morte de seu pai. O rei e a rainha procuram acalmá-lo: Cláudio reconhece que Polónio está morto, enquanto a esposa, nervosa, esclarece que o marido não tem nada a ver com essa morte. Entretanto, Ofélia retorna, cantado uma canção sobre um homem levado para o túmulo num caixão exposto e oferecendo flores imaginárias (alecrim, amores-perfeitos, erva-doce, margaridas), num estado claro de insanidade. Ao observar o estado da irmã, Laertes, triste e enraivecido, jura vingança. O rei aproveita o momento e convence-o a ouvir a sua versão dos factos e promete que lhe entregará a sua coroa e o reino se se provar que ele ou a esposa tiveram culpa na morte de Polónio. Uma vez provada a sua inocência, promete ajudar Laertes a vingar-se do responsável pelo crime.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Análise da cena 4 do ato IV de Hamlet

    Esta cena recupera a personagem de Fortinbras, para o fazer contrastar com Hamlet, fornecendo a este um exemplo da vontade de ação que lhe escasseia. De facto, mostra-se espantado e impressionado com a obstinação com que o príncipe norueguês mobiliza um exército, correndo o risco de condenar centenas ou milhares de vidas e arriscando até a sua, para conquistar um pedaço de terra sem valor. Esta constatação faz com que Hamlet se sinta fraco e inútil, porém a mesma estimula-o a agir na sua busca de vingança contra Cláudio, encontrando inspiração, portanto, na figura contrastante de Fortinbras, um homem decidido, confiante e agressivo. Curiosamente, a sua situação presente parece a oposta da que lhe possibilitaria tal desiderato, visto que ele está prestes a partir para Inglaterra.
    Interiormente, Hamlet sempre pareceu relutar relativamente ao uso da violência, daí o constante adiamento da vingança, todavia a sociedade em que vive celebra os jovens ambiciosos e determinados como Fortinbras. Nada disto é novo ou surpreendente, pois são inúmeros os exemplos da História que celebram a ambição, o poder, o desejo de conquista. Assim sendo, a determinação do príncipe norueguês e a consciência de que a sua postura é amplamente celebrada constituem uma pressão extra para Hamlet, para vingar o assassinato do seu pai.
    À medida que a peça se vai desenrolando, o jovem príncipe ganha consciência da sua fraqueza e incapacidade de agir, e o solilóquio que finaliza esta cena mostra-o claramente, quando constata que todos os acontecimentos da sua vida enfatizam a sua indecisão e inação. Deste modo, não há grande distinção relativamente aos animais, pois a linha que os separa prende-se com o sentido de propósito e motivação. Por outro lado, Deus deu ao ser humano o uso da razão, que lhe permite viver de forma elevada.
    Estas reflexões são, obviamente, espoletadas pelo encontro com o emissário de Fortinbras, que reuniu vinte mil homens para conquistar a Polónia, um território sem valor, porém ele, que tem razões para agir (o pai assassinado e a mãe desrespeitada), nada fez, não obstante toda a sua ira e ressentimento. O seu único ato foi o assassinato de Polónio, um alvo fácil e não intencional.

Resumo da cena 4 do ato IV de Hamlet

    Fortinbras marcha à frente do seu exército a caminho da Polónia, perto de Elsinore. Chegado aí, envia um emissário ao castelo para transmitir os seus cumprimentos ao rei da Dinamarca e lhe pedir permissão para atravessar as suas terras, relembrando-lhe o acordo que permitia às suas tropas atravessar território dinamarquês. No caminho, o emissário encontra Hamlet, Rosencrantz e Guildenstern a caminho do navio com destino a Inglaterra. Questionado pelo príncipe, o capitão informa-o que estão a caminho da Polónia sob o comando de Fortinbras e acrescenta que o território que pretendem conquistar é insignificante e seu valor. Hamlet evidencia o seu espanto com a possibilidade de se travar uma guerra sangrenta por algo insignificante, de que se percam vidas humanas por questões fúteis ou triviais. O enviado despede-se de Hamlet e segue em direção a Elsinore.
    Num solilóquio, Hamlet reflete que, ao contrário de Fortinbras, ele tem muito a ganhar com a sua vingança sangrenta contra Cláudio e, não obstante, passa o tempo a adiar a sua execução. Dito de outra forma, ele falhou até ao momento na procura de vingança por o seu pai ter sido assassinado, enquanto Fortinbras, que perdeu igualmente o progenitor, está decidido à guerra por motivos de honra por causa de um pedaço de terra sem valor. A encerrar este solilóquio, compromete-se de novo com o ato de que o fantasma o incumbiu.

domingo, 4 de agosto de 2024

O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie


 Capítulo I: Enquanto o Dr. Sheppard almoça

    A obra é narrada pelo Dr. James Sheppard, o médico da pequena vila inglesa de King's Abbot.
    A história começa com a apresentação de King's Abbot, um lugarejo onde todos se conhecem e os mexericos são o passatempo e a ocupação preferidos da maioria. O Dr. Sheppard é um dos habitantes e é uma figura bem integrada na comunidade que conhece bem os seus pacientes e vizinhos.
    Uma notícia abala a localidade: a morte de Mrs. Ferrars, uma viúva rica bem conhecida que tinha a reputação de ser reservada, sobretudo depois de ter perdido o marido há cerca de um ano. A sua morte é inicialmente atribuída a uma overdose de soníferos, mas logo surgem especulações sobre se se tratou de um acidente ou de um suicídio.
    A comunidade logo se enche de comentários e rumores, especialmente porque se diz à boca cheia que a mulher estaria num relacionamento com Roger Ackroyd, um dos homens mais influentes e ricos do lugar, graças aos seus negócios, proprietário de uma fábrica que vende rodas para comboios.
    O Dr. Sheppard é chamado para atestar a morte. Quando regressa a casa, tem de enfrentar a sua irmã Caroline, uma personagem curiosa que adora coscuvilhar a vida alheia. De facto, ela é a principal fonte de coscuvilhices na vila, graças essencialmente a uma rede de informantes que a mantém informada sobre tudo o que acontece. Assim, ela interroga o irmão de imediato sobre o que aconteceu e especula que Mrs. Ferrars estaria a ser chantageada por alguém que sabia que a mulher teria envenenado o próprio marido. Caroline acredita que a defunta estaria prestes a confessar o seu crime a Roger Ackroyd na noite que antecedeu a sua morte e que a pressão de ser descoberta levou-a ao suicídio.

Capítulo II: O anuário de King's Abbot

    O capítulo II começa por fazer uma apresentação genérica de King's Abbot, uma pequena localidade rural inglesa cuja principal ocupação são os mexericos. A população jovem sã parte para outras personagens na sua maioria; pelo contrário, a vila é procurada por solteirões e militares aposentados.
    O narrador, de seguida, apresenta Roger Ackroyd, um homem rico, com cerca de 50 anos, íntimo do padre, generoso nas doações à igreja, mas com fama de forreta nos gastos pessoais. Com cerca de 21 anos, apaixonara-se e casara com uma mulher cinco ou seis anos mais velha, chamada Paton. Tratava-se de uma viúva com um filho pequeno, Rudolph, que possuía um lado negro - era alcoólica - e que faleceu quatro anos após o casamento, vitimada pelo álcool. Depois da morte da esposa, Ackroyd criou o enteado como seu filho, no entanto, presentemente, parecia ter-se dedicado à malandragem. O doutor Sheppard dá conta também da proximidade que se foi estabelecendo entre Ackroyd e a Sr.ª Ferrars após a morte do marido desta, há pouco mais de um ano. Ao longo dos tempos, Roger teve várias governantas, pois serviam-no durante pouco tempo. A exceção é a última, que se encontra ao seu serviço há aproximadamente cinco anos, tendo-se criado entre ambos um clima que poderia redundar numa relação amorosa e quiçá em matrimónio, não fosse a chegada súbita de uma cunhada viúva de Roger Ackroyd, juntamente com o seu filho, diretamente do Canadá, que termina com as veleidades da governanta.
    Na véspera, o narrador vira Mrs. Ferrars a caminhar com Rudolph, quando o padrasto, segundo o Dr. Sheppard, o julgava em Londres. A finalizar o capítulo, Roger Ackroyd convida o médico para jantar essa noite em sua casa, pois tem algo para lhe contar.

Capítulo III: O cultivador de abóboras

    Na realidade, Rudolph tinha chegado na véspera a King's Abbot e instalado no hotel Três Javalis. Entretanto, tinha-se encontrado com a prima (na verdade, não existe qualquer grau de parentesco entre ambos, pois Rudolph não era filho de Roger Ackroyd, portanto não era da família), Flora Ackroyd, sua noiva secreta.
    Um forasteiro tinha arrendado a villa dos Lariços, a casa pegada à do Dr. Sheppard. Nessa tarde, o médico quase é atingido por uma abóbora lançada precisamente do jardim do lado. Esse forasteiro conhece Roger Ackroyd e sabe que o enteado deste está noivo da sobrinha do industrial, que tem conhecimento do facto e aprova a relação e o casamento. Aliás, o homem até terá feito pressão para que o matrimónio se concretize. Uma nota dissonante chega-nos pela boca do próprio Randolph: os seus negócios não correm bem e ele enfrenta dificuldades financeiras.

Capítulo IV: A villa Farnley

    O Dr. Sheppard vai jantar à villa Fernley, a residência de Roger Ackroyd. Pelo meio, encontra Flora Ackroyd, que anuncia para breve o seu casamento com Rudolph. Pouco depois, faz a sua aparição Mrs. Ackroyd, que é retratada como uma mulher antipática de olhos azuis duros e olhar frio e calculista. Segue-se a entrada de Roger Ackroyd e do seu amigo, o major Blunt, um notável viajante e caçador, alguns anos mais velho do que o dono da casa e de temperamento oposto.
    O jantar não é agradável, pois o anfitrião está preocupado e abatido e quase não come. Pouco depois, fica a sós com o médico, usando dores estomacais como desculpa para fazer sair o criado. O diálogo que ambos travam esclarece o motivo do convite para jantar. Roger Ackroyd declara que Mrs. Ferrars lhe confessou no dia anterior ter envenenado o próprio marido. No entanto, havia alguém que conhecia esse segredo e que a chantageou por isso, mas a mulher não revelou a sua identidade. Ao ver o impacto que a revelação teve em Roger, a mulher pediu-lhe que não fizesse nada, não contactasse as autoridades durante vinte e quatro horas. O anfitrião acrescenta que, após o falecimento do marido da defunta, foi despertando uma relação afetiva entre ambos, que levou Roger a pedi-la em casamento havia três meses, tendo ela recusado. Passado algum tempo, reiterou o pedido e, desta vez, foi aceite, porém os dois mantiveram segredo do facto.
    Seguidamente, o criado Parker entra na sala com o correio da tarde. No meio dos vários papéis, Roger avista um sobrescrito azul que o deixa petrificado, pois reconhece nele a letra de Mrs. Ferrars. O industrial abre-o e começa a ler a carta, onde a defunta promete revelar o nome da pessoa que a tem chantageado, contudo para a meio a leitura, afirmando que pretende ler o resto quando estiver sozinho, por isso repõe a missiva no sobescrito para concluir a leitura mais tarde. O médico ainda insiste que leia o que falta, mas Roger, bastante teimoso, não o faz. Pelas 21 horas, o Dr. Sheppard abandona a residência, apercebendo-se que Parker tinha estado a escutar a conversa entre ambos. À saía cruza-se com um desconhecido que procura o dono da casa.
    Às 22 horas e 15 minutos, quando se prepara para dormir, o Dr. Sheppard recebe um telefonema de Parker a anunciar que Roger Ackroyd acaba de ser assassinado.

Capítulo V: O crime

    O Dr. Sheppard desloca-se, de imediato, para a residência de Roger Ackroyd e é recebido por Parker, o criado, que, espantado, lhe diz que não foi ele quem telefonou ao médico e que tudo não deve passar de uma brincadeira, pois o patrão ainda está no escritório, portanto vivo. Os dois homens dirigem-se, então, para os aposentos do industrial, batem à porta repetidamente, porém não obtêm resposta. Tentam abri-la, todavia não conseguem, por isso espreitam pelo buraco da fechadura e verificam que aquela se encontra fechada por dentro. Arrombam-na e descobrem Roger Ackroyd sentado numa poltrona perto da chaminé, com punhal cravado nas costas. Ao observar o quarto, o médico constata que nada está remexido ou fora do lugar. A única coisa que, segundo o criado, falta é o sobescrito azul que continha a carta escrita por Mrs. Ferrars. Além disso, nada de valor foi levado, portanto não se tratou de um roubo. O criado revela que o secretário, Raymond, ouvir Roger a falar com alguém por volta das 21 horas e 30 minutos. A conversa versava dinheiro, nomeadamente pedidos de dinheiro feitos ao falecido, que declarara nessa conversa com pessoas desconhecida que não poderia continuar a satisfazer esses pedidos. Fica-se também a saber pelo mordomo que, nessa noite, ninguém entrou pela porta principal da villa, pelo que terá sido o próprio Roger a dar entrada ao assassino em sua casa. Parker acrescenta que Miss Flora, a sobrinha, viu o tio depois das nove e meia, isto é, após a conversa com o desconhecido. O inspetor interroga Flora, que confirma que foi a última pessoa a ver o tio, mas nada mais de significativo acrescenta sobre o caso.

Capítulo VI: O punhal

    O inspetor questiona o médico a propósito da extorsão e este narra-lhe tudo o que sabe, incluindo a questão da carta.
    Ao examinar o corpo, o Dr. Sheppard conclui que o punhal foi manobrado com a mão direita do assassino, que estava situado atrás de Roger Ackroyd, tendo a morte sido instantânea. Por outro lado, a expressão da vítima mostra surpresa. O inspetor aponta as suas baterias para Parker enquanto suspeito do crime. No cabo do punhal, são visíveis impressões digitais, desconhecendo-se a quem pertencem. O objeto tinha sido oferecido à vítima pelo major Blunt, que o trouxe de Marrocos, e estava guardado numa mesinha, concretamente aquela que o médico tinha ouvido abrir e fechar quando estivera previamente na residência. Depois de interrogarem a criadagem, recolhem as impressões digitais de Parker, do Dr. Sheppard e do major Blunt.
    De regresso a casa, o médico confidencia à irmã que a polícia considera Parker o suspeito número um do crime, mas Caroline considera que se trata de um disparate.

    Capítulo VII: A profissão do meu vizinho

    Na manhã seguinte, Flora pede ao Dr. Sheppard que a acompanhe à villa dos Lariços para pedir ao seu ocupante, Hercule Poirot, um detetive reformado há cerca de um ano, que investigue a morte do tio. A jovem justifica o pedido, alegando que o médico esteve na cena do crime, observou o tio, portanto conhece todos os pormenores acerca do assassinato. Por outro lado, tem conhecimento de que, nessa manhã, chegou à localidade o inspetor Raglan, de Crunchester, que suspeita que o assassino seja Rudolph, o filho adotivo de Roger, tendo-se já deslocado até o hotel onde se havia hospedado, no entanto o hóspede tinha desaparecido sem deixar rasto.
    Flora e o Dr. Shappard deslocam-se, pois, até à villa dos Lariços. Poirot, inicialmente, aconselha-a a confiar na polícia, porém acaba por aceitar a empreitada: investigar o caso. De seguida, o detetive e o médico deslocam-se até o posto da polícia local, onde são recebidos pelo inspetor Davis, pelo intendente - o coronel Melrose - e o inspetor Raglan. À exceção de Davis, os demais polícias recebem mal Poirot, por causa da inveja indisfarçável da fama que possui enquanto investigador com sucesso de diversos casos criminais. No entanto, a disposição muda um pouco após Poirot assegurar que todo o sucesso que resultar da sua investigação será creditado à polícia. Os agentes policiais contam então que as impressões digitais recolhidos não correspondem a nenhuma das pessoas testadas. De seguidas, deslocam-se até casa de Roger Ackroyd para verificar as pegadas detetadas na área exterior da casa e as comparar com dois pares de sapatos pertencentes a Rudolph. Por sua vez, Poirot analisa o gabinete onde foi cometido o crime e conclui que o morto deixou entrar o seu assassino pela janela do compartimento, pelo que seria alguém seu conhecido.
    Entretanto, fica a saber-se que o telefonema que o Dr. Sheppard recebeu na noite anterior a anunciar o crime foi feito às 22 e 15 da estação de King's Abbot, tendo o comboio direto para Liverpool partido às 22 e 23.

Capítulo VIII: O inspetor Ragglan sabe o que faz

    A polícia quer saber se alguém visitou Roger Ackroyd e Parker informa que, na quarta-feira, tinha vindo alguém representante de uma empresa de ditafones, pois a vítima queria adquirir um aparelho.
    Entretanto, chega Mr. Hammond, um advogado. Raglan considera que foi Rudolph quem cometeu o crime, visto que as pegadas encontradas em volta da casa correspondem às salas dos seus sapatos de borracha, embora também sejam visíveis marcas de sapatos femininos. Além disso, a porteira, Mary Black, afirma ter visto passar Rudolph, quinze minutos depois, terá ouvido alguém no escritório a pedir dinheiro a Roger Ackroyd, que nega o pedido. De seguida, terá saído pela janela, entrado pela janela aberta da sala às 21 e 5, apoderado do punhal que estava na mesinha da sala, voltado ao escritório e cometido o crime. Depois, terá trepado o peitoril e fugido. No regresso ao hotel, terá ido pela estação de caminho de ferro e feito o famoso telefonema a anunciar o crime.
    Quanto às outras personagens, à hora do crime, o major Blunt estava na sala de bilhar com Mr. Raymond; Mrs. Ackroyd, às 21 e 45, assistia à partida de bilhar e, dez minutos depois, foi dormir; Flora Ackroyd subiu do escritório do tio diretamente para o quarto; Parker foi para a despensa às 21 e 47, o que é confirmado pela governanta, Mrs. Russel, a governanta, que, por sua vez, falou com a criada Elsa Dale às 21 e 45, a qual se encontrava no andar superior, onde foi vista pela primeira e Flora; a criada Ursula Bourne ficou no seu quarto até às 21 e 5 e depois encaminhou-se para as dependências de serviços; Emma Cooper, a cozinheira, esteve sempre nas dependências de serviços, tal como outra criada, Mary Tripp. A cozinheira está ao serviço de Roger Ackroyd há seis anos, a primeira criada há dezoito meses, Parker há pouco mais de um ano e os demais há pouco tempo.
    Poirot e o Dr. Sheppard caminham pelo local. O detetive mostra ao companheiro um pedaço de tecido e, pouco depois, apanha do chão um tubo de uma pena de pato.

Capítulo IX: O lado dos peixes dourados

    Poirot e o médico passeiam pela propriedade de Roger Ackroyd. Em determinado ponto da passeata, avistam uma jovem alegre e bem-disposta: Flora. Pouco depois, surge o major Blunt e os dois conversam: a rapariga fala com ele de forma zombeteira, mas, quando o ex-militar lhe anuncia que tenciona regressar em breve a África, perde o ar feliz e trocista. Gera-se um silêncio entre ambos e, para o quebrar, Flora manifesta a sua preocupação pelo facto de o suspeito principal do assassinato do tio ser o seu noivo e ter desaparecido. O major procura tranquilizá-la, dizendo-lhe que tal suposição é absurda. De seguida, a jovem informa-o que de Roger lhe deixou vinte mil libras de herança, o que lhe garantirá a liberdade de que nunca dispôs até ao presente e a desobriga da necessidade de um casamento forçado e por interesse, acrescenta Blunt. Subitamente, este corta o fio da conversa, porque lhe parece ter avistado algo no fundo do lago de que estão próximos. De imediato, Poirot sai do seu esconderijo e dirige-se ao par, questionando o major sobre a última vez que esteve com Roger Ackroyd. Blunt responde que o último encontro entre ambos ocorreu ao jantar, mas acrescenta que o ouviu a falar mais tarde com alguém enquanto passeava no exterior e que, pouco depois, viu passar entre os arbustos um vulto branco. Acrescenta ainda que é possível que a pessoa com quem a vítima conversava era Raymond, pois tinha-os ouvido combinar um encontro por causa de uns papéis, mas clarifica que ouviu apenas a voz de Roger. De seguida, o detetive pergunta a Flora se, no dia anterior, tinha visto o punhal dentro da mesinha onde era habitual estar guardado e ela responde negativamente. Então, Poirot enfia a mão dentro do lado para apanhar o objeto que o major vislumbrara, mas, quando retira a mão, esta vem vazia. De seguida, Flora convida-os para almoçarem na villa.
    Quando o detetive e o médico ficam sós, o detetive belga mostra-lhe uma aliança de mulher com a seguinte inscrição no seu interior: R - 13 de março. Sorrateiramente, quando retirara a mão da água, tinha trocado o objeto para o outro, de modo que Flora e o major não se apercebessem de que tinha encontrado algo.

Capítulo X: A criada

    No vestíbulo, encontram Mrs. Acroyd e Mr. Hammond, o seu advogado. A cunhada do falecido afirma que não se tratou de um crime, mas, sim, de um mero acidente, pois Roger Ackroyd era bastante desastrado com os objetos, portanto, ao manejar o punhal, deverá ter-lhe escorregado da mão e cravado no corpo. O advogado pronuncia-se sobre Rudolph, dizendo que era um dissipador de dinheiro e que o pedia constantemente ao padrinho, Roger. Interrogado por Poirot acerca de como obteve essas informações, o advogado responde que foi Mrs. Ackroyd quem o informou acidentalmente. O detetiva questiona-o também acerca das disposições do testamento: Roger deixou mil libras para a governanta, 50 para a cozinheira, 500 para Raymond e vários donativos a hospitais. Além disso, Mrs. Ackroyd ficará com o ususfruto de dez mil libras em ações enquanto for viva; Flora receberá a quantia de 25 mil libras e o remanescente, incluindo a propriedade e as ações da firma Ackroyd & Filho, será para o filho adotivo e sobrinho, Rudolph Paton.
    Novamente a sós, Poirot faz um estranho pedido ao Dr. Sheppard: o médico deverá perguntar-lhe, quando estiverem de novo juntos, se o major Blunt se encontrava em King's Abbot quando o marido de Mrs. Ferrars faleceu, e observar a reação do homem nesse instante. Quando questionado, o major responde que tinha ido visitar a mulher na terça-feira anterior e que a considerara fascinante, bela, mas misteriosa, sendo muito difícil adivinhar o que ela estaria a pensar. Acrescenta que conhecia os Ferrars desde o tempo em que o casal se instalara naquele local, coincidente com a época em que ele, Blunt, estivera ali pela última vez. O major, falando sobre si, afirma que perdera bastante dinheiro obtido por meio de herança na bolsa, todavia possui ainda o suficiente para viver desafogadamente. Por sua vez, Mrs. Ackroyd manifesta o seu descontentamento pelo facto de o cunhado ter deixado 25 mil libras a Flora em vez de a si.
    Continuando-se a falar em dinheiro, a propósito do pagamento das despesas da casa, Raymond confirma que Roger tinha levantado, na manhã do dia anterior, 100 libras para pagar salários e outros encargos financeiros. De imediato, encaminham-se todos para o escritório para verificar se o dinheiro se encontra aí. Quando abrem a bolsa onde o defunto tinha guardado a quantia, constatam que faltam quarenta libras. Poirot questiona se o pessoal da casa é de confiança e asseveram-lhe que sim. No entanto, dá-se o caso de uma criada, Elsa Dale, se ter despedido no dia anterior. A governanta, quando questionada, afirma nada saber sobre esse assunto, acrescentando que se devem estar a referir a Ursula Bourne, que foi despedida por ter mexido e desarrumado uns papéis de Roger Ackroyd. A própria criada confirma o seu despedimento por ter alterado a ordem dos papéis que o patrão tinha sobre a secretária quando efetuou a limpeza do local. Inquirida sobre se esteve no local onde foi guardado o dinheiro, mostra-se perturbada, embora afirme que não sabe nada sobre a pecúnia. Acerca do despedimento, declara que ocorreu na tarde do dia anterior e que demorou entre vinte minutos a meia hora. De seguida, vão falar com Elsa Dale, uma rapariga loura, algo apatetada, que se mostra aflita quando lhe mencionam o desaparecimento do dinheiro.
    Mais tarde, Poirot pergunta ao clínico o que pensa de Ursula Bourne e acrescenta que lhe parece estar na presença de uma criada demasiadamente bem educada, que fala corretamente inglês e aparenta uma elegância e um aspeto físico assinaláveis, o que significa que a considera alguém que deveria possuir uma posição bem distinta de uma mera criada. Poirot acrescenta que Ursula é a única criada cujo alibi não foi confirmado.
    O detetive convida o médico a visitar Marby, no dia seguinte, domingo, e falar com Ada Folliot acerca de Ursula, pois esta teria trabalhado anteriormente na sua casa.

Capítulo XI: Uma visita de Poirot

    Cumprindo o pedido de Poirot, o médico fala com a Sr.ª Folliot, mas estas mostra-se hostil e reticente em responder às perguntas que aquele lhe dirige, por isso nada de relevante se fica a saber sobre a criada Ursula.
    De regresso a casa, fica a saber pela irmã que Poirot esteve em sua casa e lhe falou de um príncipe da Mauritânia que casara com uma bailarina, que supostamente estaria a fugir de assassinos bolcheviques. Além disso, trocaram impressões sobre o assassinato de Roger Ackroyd, tendo-a o detetive questionado a propósito de doentes do irmão. Ela enumera os que o consultaram no dia do crime e, dentre a lista, focam-se sobretudo em Mrs. Russel, na qual o protagonista vislumbra algo equívoco.

Capítulo XII: Uma reunião íntima

    Na segunda-feira seguinte, realizou-se o inquérito público. O inspetor Raglan continua a suspeitar de Rudolph, que parece ter parece ter-se evaporado da face da Terra, pois ninguém o consegue encontrar sem sítio nenhum. No que diz respeito às impressões digitais presentes no punhal, o detetive belga desvaloriza-as, dizendo que até podem pertencer ao próprio Roger, ou seja, é possível que o assassino, consumado o crime, tenha limpado o cabo da arma e, de seguida, impresso os dedos da vítima no mesmo. Para sustentar a sua ideia, acrescenta que essas mesmas impressões mostram que quem empunhou a adaga o fez como quem pega num talher e não como quem pretende cravá-lo nas costas de alguém.
    Pouco depois, reunem-se na alsa de jantar da villa Fernley Poirot, Mrs. Ackroyd, Flora, o major Blunt, Raymond e o Dr. Sheppard. O detetive solicita aos presentes que lhe indiquem onde se encontra o capitão Paton, mas recebe como resposta apenas silêncio. Flora diz que, no dia seguinte, anunciará publicamente o seu casamento. O capítulo termina com a acusação de Poirot de que todos lhe estão a esconder algo.

Capítulo XIII: A pena de pato

    Nessa noite, após o jantar, o médico desloca-se à residência do detetive, correspondendo ao seu convite, e os dois conservam sobre a misteriosa personagem que o Dr. Sheppard vira na noite do crime. Poirot informa-o de que esse homem pediu informações sobre o caminho a seguir para a villa Fernley a uma criada, Mrs. Ganett, o que significa que desconhecia a área e, por outro lado, não procurava ocultar a sua figura nem a sua visita. Acrescenta que o indivíduo esteve hospedado no hotel Três Javalis, que possuía sotaque norte-americano e que afirmava ter chegado dos Estados Unidos.
    Poirot puxa da pena de pato e, subitamente, o médico recorda que os cocainómanosse serviam usualmente de uma pena de pato para cheirarem cocaína, algo comum nos EUA e no Canadá. Outra questão prende-se com a pessoa com quem o desconhecido se terá vindo encontrar. Convém não esquecer que Mrs. Ackroyd e Flora vieram precisamente do Canadá antes de se instalarem em King's Abbot. Além disso, há o pormenor do tempo referente ao despedimento da criada: meia hora é um período excesso para proceder a uma dispensa. Por outro lado, Poirot considera que a razão apontada para o despedimento - a arrunação de uns papéis importantes - é pouco verosímil. Relativamente à pessoa que estaria a extorquir Mrs. Ferrars, é possível tratar-se de Rudolph, já que, de acordo com o advogado Hammond, havia algum tempo que não recorria aos pedidos de dinheiro a Roger Ackroyd, o que indicia que teria outra fonte de angariação monetária. No entanto, Poirot não acredita na sua culpabilidade.

Capítulo XIV: Mrs. Ackroyd

    Mrs. Ackroyd solicita a presença do Dr. Sheppard a pretexto de se encontrar doente, na sequência da conversa do dia anterior com o investigador belga. A velha senhora conta que, na sexta-feira, à tarde, fora ao escritório de Roger e dera por si a procurar o testamento do dono da casa, mas acabara surpreendida pela criada Ursula Bourne. Pouco depois, aparecera Roger e ela abandonara o espaço, deixando patrão e empregada a sós, Na sequência, Mrs.Ackroyd comenta com o clínico que a criada possui algo que a distingue das demais (por exemplo, é muito instruída), e confessa que foi ela quem deixou a mesinha da sala aberta,que abrira para retirar uma peça de prata que pretendia levar a um leilão em Londres. Porém, ao aperceber-sedo ruído de passos no terraço, precipitou-se a sair dali, deixando o móvel aberto. Em suma, estas confissão da mulher comprovam que o estratagema de Poirot (acusar várias personagens de estar a ocultar algo) começa a resultar.

Capítulo XV: Godofred Raymond

    Raymond procura Poirot para lhe confessar que possuía dívidas, por isso a herança de 500 libras recebida de Roger o tinha tirado de apertos financeiros.
    O detetive revela desconfiar que o extorsionista seja Parker, mas foi ele quem assassinou Ackroyd, porém provavelmente será o responsável pelo desaparecimento da carta de Mrs. Ferrars.
    De seguida, desloca-se até à villa Fernley, para falar com Flora e, a seu pedido, recriam uma cena ocorrida na noite do crime e que envolvia Parker e a jovem.

Capítulo XVI: Uma partida em família

    Nessa noite, um casal amigo junta-se ao Dr. Sheppard e a Caroline para jogarem Mah Jong. Inevitavelmente, enquanto jogam, conversam sobre o assassinato de Roger Ackroyd, trocando diversas informações: a criada da villa Fernly que foi despedida chora muito à noite; os talentos de Poirot; o local onde poderá estar Rudolph (talvez em Cranchester, de onde viram regressar o detetive de automóvel).

Capítulo XVII: Parker

    No dia seguinte, têm lugar as exéquias de Mrs. Ferrars e Mr. Ackroyd. Enquanto isso, Poirot confessa ao Dr. Sheppard que tem de interrogar e infundir terror em Parker.
    Já na villa dos Lariços, o detetive diz-lhe que é uma extorsionista, pois a última pessoa para quem tinha trabalhado, o major Ellerby, havia estado envolvido no assassinato de um homem nas Bermudas. O criado estava ao corrente do envolvimento do seu patrão, que se vira forçado a pagar o seu silêncio. Parker confirma as palavras de Poirot, mas jura nada ter a ver com o assassinato de Roger Ackroyd. De seguida, explica que, quando o defunto se reunira com o Dr. Sheppard, lhe chegara aos ouvidos a palavra «extorsão», por isso tinha escutado à porta do escritório na esperança de ficara  saber algo que lhe rendesse proveitos em termos financeiros, isto é, que lhe permitisse extorquir alguém, provavelmente o próprio patrão atual.
    A seguir, vão visitar o advogado Hammond, que revela que Mrs. Ferrars gastou, no último ano, 20 000 libras, sendo que a herança que o major Blunt proclama ter recebido equivale sensivelmente a essa quantia, o que o torna suspeito de chantagear a velha senhora.
    Poirot explica, então, a sua teoria: um homem comum, sem ideias criminosas, mas com algum defeito moral, vê-se certo dia em dificuldades económicas. Nesse ponto, fica a conhecer o segredo de alguém e acaba por, necessitado de dinheiro, chantagear essa pessoa. A passagem do tempo faz crescer a avidez por pecúnia e, inebriado, quer mais e mais, até ultrapassar os limites. Receando o escândalo de se ficar a saber do seu crime, caso a vítima se canse de ser explorada e ameace expô-lo publicamente, mata-a. O telefone toca em casa do Dr. Sheppard: a polícia prendeu um indivíduo em Liverpool, chamado Charles Kent,que se crê ser o desconhecido que foi avistado em Fernly na sexta-feita à noite, e quer o médico na cidade para o identificar.

Capítulo XVIII: Charles Kent

    Meia hora depois, Poirot, o inspetor Raglan e o Dr. Sheppard apanham o comboio para Liverpool. De acordo com o inspetor, o indivíduo é um cadastrado e consumidor de estupefacientes. Além disso, confirma que o detetive está certo relativamente às impressões digitais encontradas no punhal: efetivamente, pertencem a Roger Ackroyd.
    Charles Kent tem cerca de 22 ou 23 anos. O médico, ao escutar a sua voz, confirma que se trata da pessoa que efetivamente encontrou perto do portão da villa Fernly.O detetive confronta-o com a pena de pato encontrada no quiosque do jardim, que lhe pertencia e que ele perdeu no dia em que se deslocou até à propriedade. O rapaz indaga sobre o motivo da sua prisão e, ao ser esclarecido, afirma-se inocente, pois à hora en que se deu o crime, entre as 21 e 45 e as 22 horas, encontrava-se na taverna Coroa Larga,que dista cerca de dois quilómetros de Fernly.Questionado sobre a razão da sua presença na villa, responde que se foi encontrar com alguém, mas não o identifica.

Capítulo XIX: Flora Ackroyd

    Na manhã seguinte, o inspetor Raglan encontra o D. Sheppard quando este regressa das suas consultas e informa-o de que o alibi de Charles Kent foi confirmado por uma criada da Coroa Larga, chamada Salvina Jones,que estabelece que eram precisamente 21 horas e 45 minutos quando o suspeito entrou na taberna, acrescentando que estava bem provido de dinheiro.
    O ponto de paragem seguinte é a villa dos Lariços, onde Poirot toma conhecimento das novidades. A encenação promovida pelo detetive teve como finalidade provar que Parker viu Flora no exterior do escritório do tio. De facto, ele viu-a com a mão na maçaneta da porta e não no interior do cómodo. Provavelmente, a rapariga não estava a sair de dentro do escritório, mas da escada, proveniente do quarto do tio, ao qual se terá deslocado para lhe roubar dinheiro que nele houvesse, em virtude das dificuldades que passava, juntamente com a mãe. Assim, em desespero, terá entrado no quarto de Mr. Ackroyd, descido as escadas e, surpreendida pelo tilintar de copos no vestíbulo (era Parker dirigindo-se ao escritório), precipita-se para a sua porta, agarra a maçaneta e finge que vem a sair do compartimento, exatamente no momento em que o criado surge na soleira do corredor. De seguida, diz o que lhe ocorre à cabeça e sobe para o seu quarto. Posteriormente, quando toma conhecimento de que houve um furto e que a polícia chegou para investigar, Flora conclui que o descobriram o seu roubo e decide sustentar a história que engendrou para proteger o seu crime.
    De seguida, na villa Fernly, entrevistam a jovem, na sala de bilhar. Ela está acompanhada do major Blunt e o inspetor Raglan narra-lhe as deduções de Poirot: Flora não entrou no escritório do tio, pelo que não pode ter visto o tio para lhe desejar boa noite. Quando ouviu Parker a atravessar o vestíbulo, encontrava-se na escada que conduzia ao quarto do tio.
    Flora, confrontada desta forma, confirma o seu furto e mostra-se aliviada por ter sido descoberta. O major intervém, dizendo que o dinheiro em questão lhe tinha sido dado por Roger para deterninado fim e que a rapariga nunca lhe mexeu, tendo inventado aquela mentira para proteger o namorado, o capitão Paton. Na verdade, o major está apenas a tentar defender Flora por amor. Poirot diz-lhe que sabe que ele está apaixonado pela jovem e que lhe deve manifestar os seus sentimentos, pois ela não está enamorada de Rudolph Paton, tendo-o aceitado unicamente para agradar ao tio e para, através do casamentio, abandonar uma situação insustentável.

Capítulo XX: Mrs. Russel

    Poirot marca um encontro com Mrs. Russel no consultório do Dr. Sheppard. Num breve diálogo que trava com o médico, observa que esteve atento à sua fisionomia aquando da revelação da autoria do furto, acrescentando que notou que Sheppard não ficou surpreendido com a novidade, ao contrário do inspetor. De seguida, dá nota da publicação, no dia seguinte, de uma notícia que rezaria o seguinte: "Há dias que a polícia procura o capitão Paton, residente na villa Fernly, em King's Abbot, sobrinho de Mr. Ackroyd, morto, como se sabe, na sexta-feira,em trágicas circunstâncias. O capitão foi visto em Liverpool, onde estava para embarcar com destino à América.". O detetive não clarifica o que espera alcançar com a publicção de semelhante notícia falsa.
    O detetive observa a paixão que o médico possui pela mecânica, quando a governanta chega. Poirot começapor a informar que prenderam Charles Kent em Liverpool, mas a mulher fica impassível perante a informação. O detetive acrescenta que Roger Ackroyd foi assassinado entre as 20 e 50, quando o Dr. Shppard o deixou, e as 21 e 45, o que causa nervosismo e palidez em Mrs. Russel. Declara ainda que Kent é o indivíduo que procuram, visto que esteve em Fernly na altura do assassinato e não apresenta qualquer justificação para a sua presença. A governanta, em pânico, declara que o rapaz se foi encontrar com ela no quiosque, onde lhe deixou previamente uma nota escrita a avisá-lo da hora do encontro: 21 e 10. No regresso do quiosque, encontrou o médico. Poirot, para maior surpresa da governanta, diz-lhe que ela é mãe de Charles Kent e a mulher confirma. Quando o deu à luz, era solteira, por isso deu-lhe o nome da província em que nasceu. Mrs. Russel acrescenta outros dados ao pronunciamento do detetive, nomeadamente que nunca lhe disse que era mãe dele e que o filho cresceu vicioso e mau, tendo-se entregado ao álcool e à toxicodependência, apesar de ter feito tudo o que pôde pelo rapaz, inclusivamente enviá-lo para o Canadá. Durante cerca de dois anos, não teve qualquer notícia de Charles, que, entretanto, descobriu onde a mãe se encontrava a trabalhar e escrever-lhe a pedir dinheiro. Posteriormente, a mulher deslocara-se a casa do Dr. Sheppard para saber se era possível fazer algo pelo filho, nomeadamente no que dizia respeito aos seus vícios. Mãe e filho encontram-se: ele tratou-a muito mal, tendo recorrido inclusive ao insulto, e levou todo o dinheiro que ela possuía. Por último, estabelece que a partida do rapaz terá ocorrido entre as 21 e 20 e as 21 e 25. Deste modo, o invidíduo que, pelas 21 e 30, foi ouvido a dialogar com Roger Ackroyd não poderia ser Charles Kent.

Capítulo XXI: A notícia do jornal

    No dia seguinte, o jornal local publica a notícia inspirada por Poirot. Caroline observa que chegou alguém à residência do detetive. Por seu turno, este comunica ao Dr. Sheppard que, nessa noite, pelas 21 horas, terá lugar uma pequena reunião em sua casa, onde deseja que marquem presença o próprio médico, Mrs. Ackroyd, Flora, o major Blunt e Mr. Raymond.
    Entretanto, fica a saber-se pela mãe que Flora Ackroyd estánoiva de Hector Blunt. Além disso, a velha senhora dá nota de que a polícia de Liverpool, quando contactada por Raymond, desmentiu a prisão de Rudolph.
    Ursula Bourne desloca-se a casa do médico para falar com Poirot. Quando entram na sala onde ela os espera, o detetive diz que estão na presença de Ursula Paton, a legítima esposa de Rudolph Paton.

Capítulo XXII: As vicissitudes de Ursula

    Ursula era uma das muitas filhas de uma família nobre irlandesa arruinada de nome Folliot que, após o falecimento do pai, teve de encontrar uma forma de subsistência, empregando-se como criada, dando como referência o nome da irmã. Nesse interém, conheceu Rudolph, com quem casou secretamente, porque ele lhe dissera que o seu padrinho era contrário a que desposasse uma mulher pobre. O rapaz prometeu-lhe pagar todas as suas dívidas e, quando fosse independente de Roger Ackroyd, assumir publicamente o casamento entre ambos. Para que tal fosse possível, confiava que o industrial lhe acudisse e saldasse as suas dívidas, porém, quando tomou conhecimento da quantia avultasda que o afilhado devia, ficou tão furioso que lhe recusou qualquer auxílio financeiro. Passados alguns meses, chamou-o a Fernly e propos-lhe que desposasse Flora Ackroyd. Os futuros noivos concordam com a proposta e combinam manter o noivado secreto, todavia Mr. Ackroyd resolve torná-lo público, mas comunica a sua intenção somente a Flora, que se mostra indiferente perante tal resolução. Já Ursula ficou absolutamente estupefacta e chamou Rudolph da cidade. Os dois encontraram-se no bosque e o rapaz pediu à esposa que mantivesse secreto o casamento de ambos por mais algum tempo, mas a esposa procura Roger Ackroyd e conta-lhe a verdade. O homem fica furioso com os dois,considerando que Ursula está a dar o golpe do baú, procurando desposar alguém com acesso a riqueza. Ambos trocam palavras violentas entre si e tudo termina com o despedimento dela. Ursula encontra-se novamente com o marido, porém o encontro é tumultuoso: Rudolph censura-a por ter ido falar com o padrinho e ela censura-o pela sua falta desinceridade. Meia hora depois de terminado o encontro, um pouco antes das 21 e 45, é descoberto o cadáver de Roger Ackroyd. Além disso, desde essa noite, a jovem não voltou a ter notícias do esposo.
    Ursula decidiu fazer esta confissão depois de ter lido a notícia falsa publicada por Poirot, considerando que já nada tinha a perder; pelo contrário, talvez pudesse contribuir para a salvação do marido.

Capítulo XXIII: Uma reunião em casa de Poirot

    O Dr. Sheppard tem vindo a fazer um registo do caso, dividido em 20 capítulos e culminando com a visita de Mrs. Russel, que forneceu a Poirot para este o ler.
    A reunião inicia-se às 21 horas na casa de Poirot e nela marcam presença Mrs. Ackroyd, Flora Ackroyd, o major Blunt, Mr. Godofred Raymond, Mrs.Ursula Paton, John Parker e Elisabeth Russel, além do Dr. Sheppard. Poirot começa por revelar que Ursula e Rudolph são casados. Flora reage muito bem à notícia e as duas mulheres apoiam-se mutuamente.
    De seguida, o detetive informa que, na noite do crime, tiveram lugar dois encontros perto do quiosque: entre Mrs. Russel e o filho e entre Rudolph e Ursula. Sabendo-se que os dois últimos são um casal, está encontrada a explicação para a aliança encontrada no local com os dizeres gravados: um R e uma data, a do casamento entre ambos. Este encontro foi motivado, como sabemos, por Ursula ter ficado a saber nesse mesmo dia do noivado entre o seu marido e Flora Ackroyd. Ora, assim sendo, o assassino não poderia ser o capitão Paton, pois às 21 e 30, quando se deu o crime, estava a falar com a esposa. Por outro lado, também não poderia ser Charles Kent, uma vez que já se havia afastado do local.
    As palavras ouvidas a Roger Ackroyd pouco antes de ser assassinado são muito semelhantes às que usava por vezes em cartas ditadas, o que leba Poirot a deduzir que, efetivamente, o homem não estava a falar com ninguém, mas talvez a ler uma carta em voz alta. O detetive recorda que, na quarta-feira anterior, tinha estado na villa um representante da firma Ditaphone Company,o qual vendeu ao industrial um ditafone. Às 21 e 30, Roger ainda estava vivo, visto que falava ao dito aparelho, enquanto Rudolph e Ursula conversavam no exterior e Charles Kent já se encontrava bem distante do local.
    O capítulo encerra com Poirot a fazer um gesto teatral, apontando para o umbral da porta, onde se encontra Rudolph Paton, de mão dada à esposa.

Capítulo XXIV: A narrativa de Rudolph Paton

    Hercule Poirot recoda a sessão, semelhante àquela que fizera anteriormente, na qual acusara os cinco presentes de lhe ocultarem algo: quatro revelaram o seu segredo entretanto, mas o Dr. Sheppard não. O médico explica-se: naquele dia, fora visitar Rudolph, de quem se diz amigo, e este contara-lhe do seu casamento e da embrulhada em que se envolvera. Após a descoberta do crime, Paton tornara-se suspeito e o Dr. Sheppard escondera-o numa casa de saúde para alienados. O detetive, entretanto, através de Caroline, obteve o nome de dois sanatórios próximos de Cranchester para onde o irmão costumava enviar alguns pacientes. Num deles, no sábado de manhã, Poirot descobriu que o clínico tinha internado um doente sob um nome falso, porém rapidamente descobriu que se tratava de Rudolph, por isso trouxe-o para a villa dos Lariços no dia anterior. Está assim explicado quem era o indivíduo que Caroline dissera ter visto em casa de Poirot.
    De seguida, o detetive declara que o assassino se encontra entre eles e que, para salvar Rudolph, terá de confessar o crime. Ora, quem é que estaria disposto a salvá-lo, incriminando-se? A esposa ou um amigo, dirá o leitor. De imediato, entra a criada com um cabograma para Poirot, proveniente de um transatlântico que se dirige para os Estados Unidos. Ele lê-o e diz que, a partir desse momento, tem a certeza de quem é o assassino. A seguir, dá por encerrada a reunião e anuncia que, no dia seguinte, comunicará a verdade ao inspetor Raglan.

Capítulo XXV: Toda a verdade

    Terminado o encontro, saem todos, à exceção de Poirot e do Dr. Sheppard, que questiona o motivo pelo qual o detetive não expõe de imediato a verdade ao inspetor Raglan. Poirot expõe-lhe as suas deduções. Primeira: o telefonema feito para casa do clínico significa que o assassino pretendia que o crime fosse descoberto nessa mesma noite e não apenas no dia seguinte, ou seja, desejava que a descoberta ocorresse a uma hora em que o criminoso estivesse presente quando a porta do escritório fosse aberta. Segunda: a poltrona desencostada da parede relaciona-se com a mesinha com livros e revistos que se encontrava junto à janela do escritório, a qual ficava oculta pelo espaldar da cadeira. O detetive supõe que houvesse nela algo que o assassino desejava ocultar que não tinha podido levar consigo após o crime, mas que deveria desaparecer antes que alguém o encontrasse. Ora, antes da chegada da polícia só haviam entrado no gabinete de Roger Ackroyd o médico, Parker, o major Blunt e Raymond. O criado, com o seu olhar treinado, foi quem assinalou a deslocação da poltrona, pelo que foi eliminado como suspeito. Terceira: que objetos eria o que a mudança de lugar da poltroba pretendia ocultar? O ditafone, algo que não poderia ser transportado numa algibeira, por exemplo. As pessoas creem que a voz ouvida antes de ocorrer o crime era a de Roger Ackroyd a ditar para o gravador de voz, mas também poderia dar-se o caso de a máquina estar a fazer o oposto, ou seja, a reproduzir a voz do homem. Poirot coloca ainda outra hipótese: a adaptação de um instrumento de relojoaria ao ditafone, de maneira a pô-lo a funcionar após a saída do assassino. Quem tem interesse por mecanismos? Quarta: as marcas de sapatos no peitoril da janela. Alguém retirou do hotel Três Javalis um par de sapatos de Rudolph Paton. Quem o foi procurar à hospedaria?
    Finalizando o seu discurso, Hercule Poirot recapitula os factos: o assassino é alguém que conhecia bem Roger Ackroyd; sabia que adquirira um ditafone; tinha certa prática com engenhos mecânicos; tirara o punhal da mesinha antes de Flora chegar; levara consigo uma maleta para transportar o ditafone; pôde permanecer sozinho uns minutos no gabinete, após a descoberta do crime, enquanto Parker telefonava à polícia. Quem poderia ser essa pessoa? O Dr. Sheppard.

Capítulo XXVI: ... E nada mais do que a verdade

    O médico ri-se do detetive e chama-o louco, mas este não se detém. Para percorrer a distância entre a estarada e a villa gastavam-se no máximo cinco minutos. Ora, o Dr. James Sheppard partira da moradia às 20 e 50 e atingira o portão da estrada às 21 horas, ou seja, tinha gasto o dobro do tempo no trajeto. Nesses dez minutos, teve tempo de correr em volta da casa, mudar de sapatos, entrar no gabinete através da janela, matar Roger Ackroyd e sair pelo portão. Esta tese apresenta, no entanto, uma dificuldade: o industrial tê-lo-ia ouvido galgar o peitoril, por isso Poirot coloca outra hipótese, isto é, o médico cometeu o crime antes de sair do escritório, tirou da sua maleta de médico os sapatos de Rudolph, calçou-os, passou-os sobre a lama e reentrou no gabinete saltando pela janela, na qual deixou as marcas do calçado enlameado. A seguir, fechou a porta do cómodo pelo lado de dentro, saiu pela janela, deslocou-se até ao quiosque, descalçou os sapatos furtados, colocou os seus e saiu pelo portão. De seguida, foi para casa descansado, pois ajustara o ditafone para as 21 e 30. O detetive esclarece que já tinha feito a reconstituição da cena que acabara de narrar e demorara exatamente dez minutos.
    O que teria o médico a ganhar com o crime? Impunidade, pois fora ele quem chantageara Mrs. Ferrars. De facto, o Dr. Sheppard tinha tratado do marido da senhora, pelo que era a única pessoa que poderia saber a verdade sobre a sua mpprte, daí ter começado a extorqui-la, porém, quando a extorsão se tornou asfixiante, Mrs. Ferrars resolveru contar a Mr. Ackroyd. Se este tomasse conhecimento dos factos, o médico ficaria arruinado para sempre.
    Falta, porém, esclarecer ainda uma questão: o telefonema feito para casa do médico na noite do crime. Um dos seus pacientes era criado num transatlântico americano que estava fundeado em Liverpool na altura do assassinato. Ora, o Dr. Sheppard pedira-lhe que telefonasse da estação para sua casa. Foi isso que o cabograma recebido por Poirot confirmou. A ideia era genial: o médico recebia o telefonema na sua residência, na presença da irmã, mas, quanto ao conteúdo, só se teria a versão do clínico.
    Finda a exposição, Hercule Poirot sugere ao Dr. Sheppard que finalize o seu manuscrito e, depois, recorra ao suicídio, caso não deseje ser preso.

Capítulo XXVII: Apologia

    Cinco horas da manhã: o médico concluiu o manuscrito, que, no início, tencionava publicar como anarrativa de um desaire de Poirot.
    Nele, o clínicp acrescenta alguns dados: quando viu Rudolph Paton e Mrs. Ferrars a conversar, receou que a viúva lhe tivesse confiado o seu segredo. Na noite do crime, Roger Ackroyd tinha contado ao Dr. Sheppard o que conhecia do caso referente a Mrs. Ferrars, isto é, da chantagem a que esta estava sujeita, ignorando ainda, no entantom a identidade do extorsionista. O ditafone tinha avariado e o médico induzira-o a confiar-lho para o compor. O médico adaptou-lhe um mecanismo que o fizesse funcionar às 21 e 30. A poltrona tinha sido deslocada para o ocultar por completo.
    O Dr. Sheppard confia que Poirot conseguirá «compor as coisas» junto do inspetor Raglan, de modo a poupar a irmã, Caroline, à vergonha da verdade, de ter um irmão assassino.

    Concluído o manuscrito, veronal.

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