quarta-feira, 17 de julho de 2019
terça-feira, 9 de julho de 2019
O classicismo francês: a época de Luís XIV
Em França, as guerras de religião
haviam rematado no século XVI pelo Edicto de Nantes (1598) e o advento da
dinastia bourbónica. Deste compromisso precário entre a burguesia huguenote e a
aristocracia católica resulta, como fiel da balança, a política absolutista de
Richelieu, Mazarino e Luís XIV, profundamente diferente, no seu significado
social, do absolutismo peninsular. A coroa sustenta, além da nova burocracia do
absolutismo, a velha aristocracia de sangue, que, domesticada depois do
esmagamento da Fronda, faz uma vida
ociosa de corte. A burguesia ascende, em parte, à categoria de cargo, prevalece
na administração central, enriquece com os fornecimentos e arrematações dos
impostos da Coroa, impõe a política mercantilista que permite o desenvolvimento
da manufatura (indústrias de luxo, mineração, construção naval, têxteis, etc.).
Batidos os Filipes na Paz dos Pirenéus
de1659, a França torna-se a potência hegemónica da Europa. Mas a «guerra do
dinheiro», de conquista surda dos mercados e do ouro, conduzida por Colbert e
as suas Companhias contra as outras potências, empurra Luís XIV a uma série de
lutas armadas que desprestigiam o absolutismo e dão lugar ao agravamento da
situação económica das massas populares.
Sob o ponto de vista cultural, o
grande foco é ainda então a corte, que deve à corte madrilena a iniciação em
muitos requintes. No campo literário, Honoré d’Urfé, com o início da Astrée e, 1608, introduz na corte
francesa o formalismo da alegoria pastoral anteriormente consagrada pela Diana de Montemor, dando o modelo para
as damas preciosas dos salões da
marquesa de Rambouillet e de M.lle. Scudéry; e Corneille, com o Cid
(1636-37), adapta o drama espanhol ao gosto francês, inaugurando o teatro
clássico em França. Mas a um estado de coisas político e social mais estável e
a um nível já superior corresponde um espírito mais analítico e racionalista,
um sentimento de vida mais confiante, mais equilibrado e menos patético que o
prevalecente em Espanha. Há uma enorme floração de doutrinadores e preceptistas
literários, cheios de ponderação sensata, entre os quais se destacam o poeta
Malherbe, à entrada do século, e Boileau, cerca do último quartel (Arte
Poética, 1674). Ao mesmo tempo a Academia Francesa (1635) e vários
gramáticos racionalistas desempenham o seu papel de codificação e apuramento
linguísticos.
No terreno filosófico, a figura
dominante do século XVII francês é Descartes, também um dos criadores da
álgebra, da geometria analítica e da mecânica. A sua filosofia, como a do seu
contemporâneo inglês Bacon, centra-se no problema da metodologia científica (Discurso
do Método, 1637). Em última análise, o método cartesiano reduz-se a interpretar
os fenómenos segundo esquemas mecânicos, geométricos e algébricos. Descartes,
por outro lado, acautela o idealismo tradicional e a teologia, e não discute as
instituições políticas e sociais do tempo; sustenta a imaterialidade e eternidade
do espírito, mas concebido como simples consciência das leis mecânicas do
mundo, e afirma a existência de Deus, mas como garantidor da realidade objetiva
das leis científicas – um Deus, aliás, que (pelo menos sob certa leitura de
Descartes) é a negação mesma do milagre.
Com Newton, Pascal e Leibniz, além
do método experimental, integram-se no pensamento científico os conceitos de
energia e de infinito. A preocupação da infinidade e da omnipotência divinas,
agora que a ciência impunha uma conceção infinitista e energética do mundo,
sente-se nos Jansenistas de Port-Royal, de que Pascal foi a figura dominante.
À ascensão do absolutismo em França
corresponde o teatro de Corneille (Horácio, Cinna, 1640), em que
se apresenta sempre a vitória da autodisciplina cívica do protagonista sobre as
paixões pessoais mais veementes. Com Racine, os conflitos da tragédia já lisonjeiam
mais as paixões, e a noção de dever desloca-se do clima cívico para o clima
familiar (Fedra, 1677). Um e outro levam à maior perfeição o esquema das
três unidades (ação, lugar e tempo), que ao teatro clássico francês uma grande
densidade psicológica e ideológica. Entretanto, a comédia de caracteres de
Molière, fundindo o racionalismo francês com a experiência de palco da Commedia
dell’Arte, critica penetrantemente a hipocrisia e a fatuidade do sistema
feudal remodelado sob o absolutismo, atingindo ao mesmo tempo a caça ao lucro,
ou ao prazer e várias deformações psicológicas, típicas não só da nobreza mas
também da burguesia dirigente, com um poder de apreensão que os ideólogos
burgueses perderão mais tarde no seu propagandismo revolucionário (Preciosas
Ridículas, 1659; D. João, 1665; Tartufo, 1669; As Sabichonas,
1672, etc.).
Os
sintomas de dissolução ideológica do regime de Luís XIV começam por se fazer
sentir nos meios aristocráticos. Tal como na aristocracia tory inglesa, desenvolve-se o ceticismo galante dos libertinos, que transvasa para as obras
de um estilo seco e cínico (Máximas de Rochefoucauld, 1665, Caracteres
de La Bruyère, 1688, Fábulas de La Fontaine, 1668); os espíritos
volvem-se para as pequenas coisas, registam efemérides e ditos, redigem
memórias, correspondência literária, mantêm o tom racionalista, mais virado
para o mundo psicológico ou para uma perspetiva pessimista do mundo social (Memórias
do cardeal de Retz e do duque de Saint-Simon; Cartas de M.me de Sévigné;
Princesse de Clèves, romance de M.me de Lafayette, 1678).
Entre 1680 e 1715 decorre o período que Paul Hazard denomina de «crise da
consciência europeia», no qual se confirma o descrédito das instituições e
formas culturais da época de Luís XIV.
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O papel da Inglaterra seiscentista
Na França e
na Inglaterra, o capitalismo comercial e a cultura burguesa não dominam tão
livremente, mas, por vias mais sinuosas, impõem a sua influência.
Na
Inglaterra, o absolutismo dos Tudors elimina desde Henrique VIII a alta
aristocracia feudal e o clero regular, mas a nobreza que ascende com as
secularizações (gentry) e a burguesia
de Londres mantêm o controlo do fisco pelo Parlamento. Os filhos segundos da gentry, vedado o acesso à carreira do
clero regular, das armas ou do funcionalismo, em resultado das secularizações e
da moderação do fisco régio, ingressam por isso na burguesia. A Coroa garante o
monopólio, a que se associa, das companhias criadas para fazer o corso às
frotas hispânicas e conquista os entrepostos do Báltico, do Mediterrâneo e
depois do Índico e da América do Norte. O reinado de Isabel (1558-1603) e ainda
o do primeiro Stuart, Jaime I, correspondem por isso, não apenas ao
desenvolvimento de uma cultura amaneirada de corte, em que se salientam a
poesia para canto e o pastoralismo convencional (Sidney, Spenser, John Lily,
autor do romance Euphues, 1579-80,
donde derivou o nome de eufuísmo para
o estilo culto inglês), mas também ao
surto de uma riquíssima escola teatral em que se fundem o naturalismo
renascentista, a cultura universitária de muitos dramaturgos, a ânsia de
aventura e domínio, as inquietações ideológicas da burguesia, o estilo floreado
da corte (Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Fletcher, etc.).
O
desenvolvimento posterior da burguesia e o endurecimento da sua ideologia puritana,
por um lado, a reação correspondente por parte dos monarcas Stuarts e da
aristocracia mais exclusivamente agrária, por outro lado, precipitam depois as
revoluções de 1648 e 1688, cujo saldo final é uma vitória sobre o absolutismo por
parte de uma coligação tácita entre a burguesia londrina menos puritana e a
aristocracia Whig, que lhe está
estreitamente ligada. Estas duas camadas vão realizar durante o século XVIII
uma dupla revolução: a revolução agrária da enclosure,
eliminação do pequeno campesinato feudal, já iniciada em começos do século XVI,
e a revolução industrial. Através das vicissitudes seiscentistas, o puritanismo
revolucionário exprime-se literariamente pela obra de Milton (Paraíso
Perdido, 1667) e Bunyan (Caminhada do Peregrino, 1678); a
aristocracia opõe ao zelo puritano um teatro e um lirismo profundamente cínicos
e intelectuais (Wycherly, Congreve, Lovelace, etc.).
Por meados do século XVII, a
Sociedade Real de Londres, ilustrada por figuras como Roberto Boyle e Newton,
torna-se o foco mundial da investigação científica, onde se lançam as bases de
uma nova disciplina da física, a dinâmica, articulada com o também recente cálculo
infinitesimal. No desenvolvimento do empirismo e sensualismo inglês, Hobbes e
Locke sucedem a Francisco Bacon, que em 1620, com o Novum Organum
Scientiarum, dera o primeiro tratado de metodologia científica
experimental. Locke, o filósofo da revolução de 1688, que escreve em inglês
para toda a gente, e não já em latim escolástico, é o pensador que mais
influência exerce na Europa por todo o século XVIII. Este conjunto de circunstâncias
sociais e culturais explicam que a Inglaterra, país onde a revolução burguesa,
embora menos radical e rematando num compromisso que dura até à época vitoriana
(reforma eleitoral de 1832), se antecipa de um século à da França e, em geral,
do Continente, seja no início do século XVIII a herdeira imediata das criações
holandesas de inícios do século XVII: jardins, conforto do lar, pintura de
paisagem, de retrato e de interiores, jornalismo, filosofia progressiva,
livre-cambismo, teoria dos direitos fundamentais do homem e da divisão dos
poderes do Estado.
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O papel precursor da Holanda
Enquanto os domínios ultramarinos
permitiam à aristocracia peninsular um reagrupamento defensivo em torno da
Coroa, mantendo na sociedade e na cultura de Portugal e Espanha certas características
feudais, e propiciavam depois uma hegemonia política mundial da Espanha que
atinge o apogeu sob Filipe II (1556-98), e se prolonga até ao desfecho da
Guerra dos Trinta Anos (1618-48) – em alguns países da Europa Ocidental, não
sujeitos ao seu domínio, a estrutura social e política sofre consideráveis
alterações. É que, afinal, a Bolsa de Antuérpia (1531), centro do comércio
continental das especiarias portuguesas, e os banqueiros da Alemanha do Sul,
principais financiadores das Coroas peninsulares, apesar das sucessivas
falências individuais, tinham exercido o real controlo da nova economia mundial
recém-nascida. Os recursos dos reinos de Portugal e Espanha esgotavam-se já no
século XVI, cada vez mais incapazes de ocorrer aos gastos da oligarquia administrativa
e militar e de satisfazer os juros de dívidas astronómicas. A nova aventura
cavaleiresca em Marrocos afunda-se em Alcácer Quibir (1578); a Casa da Áustria
acrescenta o império português aos seus domínios, mas em 1588 vê a sua
«Invencível Armada» batida pelos Ingleses. O século XVII vai assistir ao
triunfo de um grande capitalismo mercantil, constituído em companhias de acionistas
particulares que pertencem, indiferentemente, a vários credos ou nações e que
utilizam um Estado nacional como garantia do seu monopólio.
A inovação parte dos Holandeses,
cujos armadores, associando-se a capitais internacionais (em grande parte dos Marranos, ou Cristãos-Novos expulsos da Península), criam, a partir de 1592, as
célebres Companhias das Índias, primeiro para fazer a guerra de corso às frotas
filipinas, e depois para desalojar o império Habsburgo dos seus principais
entrepostos da Indonésia, Índia, África do Sul e Central. A expansão colonial
holandesa é facilitada por um tolerantismo comercialista, próprio de um Estado
federativo, descentralizado, dir-se-ia que ele próprio imagem de uma empresa
por ações. A Banca de Amesterdão (1611) torna-se o centro do capitalismo
internacional. O calvinismo, dominante entre a burguesia holandesa, reabilita o
juro e a especulação bancária.
A
Holanda torna-se na primeira metade do século a estante giratória com prateleiras
para as heresias que minam os estados monarco-feudais: refúgio dos judeus peninsulares,
dos dissidentes ingleses fugidos aos Stuarts, dos huguenotes franceses.
Giordano Bruno, Galileu, Descartes editam lá as obras que teorizam a mecânica
celeste e geral; impressores holandeses, como os Elzevir, erguem a arte
tipográfica a um novo nível; nasce das informações bolsistas a imprensa
periódica, com as Gazetas; o naturalismo
renascentista prolonga-se ali. Trata-se do culto da ciência experimental e algébrica
(Huyghens), que através da ótica e da criação do microscópio lança a
microbiologia com Leeuwenhoek; um judeu de origem portuguesa, Bento de
Espinosa, identifica Deus com a Natureza, critica a autoridade de quaisquer
Escrituras Sacras e do poder monárquico, concebe a liberdade moral como não
passando de uma consciência interiorizadora da causalidade universal,
considerando comportamento ético apenas aquele que só obedece a razões – depois
de armado com o conhecimento das causas. Grócio fundamenta o direito
internacional em regras que julga existirem, não por decreto sobrenatural, mas
na natureza humana (direito natural).
A escola holandesa de pintura inovadoramente naturalista, substitui a
iconografia religiosa por retratos, interiores burgueses e paisagens (Franz
Hals, Hooch, Vermeer, Hobbema, Ruysdael). Rembrandt, como veremos, representa
já algo para além desse naturalismo.
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Sermão de Santo António aos Peixes
Obra do Padre António Vieira
António Vieira legou-nos cerca de 200
sermões, que lhe valeram ser considerado o maior orador sacro de
Portugal, mais de 700 cartas, diversos tratados de caráter profético
e um conjunto de textos de natureza política e social, conjunto
este que simboliza o modo como o escritor se comprometeu com a vida e a cultura
do seu tempo. Destes textos destacam-se os referentes à venda ou à recuperação
de Pernambuco; os relativos à Inquisição e aos Cristãos-Novos; os que concernem
a liberdade dos Índios; e os dedicados ao seu próprio processo inquisitorial.
Nos textos de feição visionária – História
do Futuro, Livro Anteprimeiro (prólogo explicativo daquela), Esperanças
de Portugal, Clavis Prophetarum, Defesa perante o Tribunal do
Santo Ofício –, procura explicar o verdadeiro sentido das trovas do
Bandarra, as quais apontavam para a consumação do Quinto Império: um império
universal, harmónico, onde coubessem todas as raças e todas as culturas, unidas
espiritualmente num único reino cristão e católico.
As cartas, escritas entre 1626 e
1697, patenteiam o gosto de uma experiência vivida. Umas vezes é a longa
missiva, ordenada, sistemática, a antever já virtuais leitores, reveladora das
principais preocupações do autor; outras, é a carta dita “familiar”, dirigida
geralmente a um amigo, onde perpassam impressões fugazes, desabafos e episódios
da sua vida íntima; aqui e ali, breves discursos ou simples expressões de
amizade e cortesia. Descobrem-se, nestas epístolas, referências à vida militar
e económica do tempo; incorporam-se autênticos ensaios de administração
ultramarina; criticam-se certos pregadores e retratam-se homens e
individualidades de então; defendem-se os índios do Brasil; relatam-se as horas
de êxito vividas no púlpito ou os momentos amargos dos anos de pobreza;
observam-se e descrevem-se povos, costumes, lugares; e focalizam-se tantos
outros assuntos que mereciam ser mencionados.
Pejadas de pormenores e registando
os pontos fulcrais de um percurso biográfico, as cartas do Padre António Vieira
transformam-se num valioso testemunho quer dos diversos condicionalismos
político-sociais da época, quer da complexa personalidade do escritor.
Durante o século XVII, o sermão não
foi só o género literário predominante; foi também, e principalmente, a base da
mais importante cerimónia social: a pregação. Através dela, a palavra do orador
atingia todas as camadas sociais.
O púlpito transformara-se, na época,
no último baluarte da liberdade de expressão. Durante a dominação filipina,
apenas a alguns sacerdotes era dada a faculdade de falar livremente contra, por
exemplo, a opressão espanhola. Talvez daí, também, o hábito instituído de fazer
do púlpito a tribuna ideal do comentário crítico à vida pública. No século
XVII, o púlpito era um palco e o pregador um actor a tentar exibir do melhor
modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos
visados junto do auditório. A pregação era um espectáculo, tanto quanto
possível espectacular. Aliás, uma das tradicionais funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o
comportamento do ouvinte), e estava no espírito da Contrarreforma a captação e
catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando
perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer,
pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores (o argumento do
inferno era o mais poderoso equivalente imaginário dos autos-de-fé reais).
Tudo isto se relaciona com uma época
cultural que deslocou para múltiplos palcos – o teatro, a ópera, o púlpito, o auto-de-fé, as procissões, os
enterros – o seu sadismo doentio aí o descarregando. A própria existência de um
ritual social como o sermão, onde os ouvintes vão para serem, em princípio,
admoestados e culpabilizados, e os pregadores para os fustigarem como
intérpretes autorizados da Lei, é uma prática mórbida e fantasmagórica. Nos
sermões do Padre António Vieira, espelha-se fielmente a época conturbada em que
ele viveu, apegado a uma nação cada vez mais vulnerável, quer às arremetidas
dos adversários, quer às próprias tensões internas.
Os sermões mais conhecidos contam-se
entre os que, de uma forma mais directa, se prendem a processos ou factos
históricos específicos: o levantamento do sítio que os Holandeses haviam feito
à Baía (1638) e a situação aflitiva que esta cidade de novo enfrentou passados
dois anos determinam, respectivamente, o Sermão de Santo António e o Sermão
pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda (1640); para
incitar todas as classes da nação a contribuírem para a defesa nacional, surge
o Sermão de Santo António (1642), proferido na véspera da reunião das
cortes; o sermão Sobre as Verdades e Falsas Riquezas vem datado de 1656,
«na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança das minas,
que com grande empenho se tinham ido descobrir»; e lembremos ainda o Sermão
dos Bons Anos, pregado em Lisboa na Capela Real, no ano de 1642, onde
Vieira apregoa a sua confiança em Deus e na política do Rei (D. João IV).
Do missionário catequista
destacam-se os referentes à defesa dos Índios contra o egoísmo dos colonos, de
que ficou célebre o Sermão de Santo António aos Peixes. Os sermões de
mais alta inspiração religiosa, e os de maior fascínio artístico, desligados
das contingências espácio-temporais, são os menos conhecidos dos leitores.
É nesta actividade missionária que o
fervor evangélico de Vieira se impregna de uma doce e comovente humildade, que
a carta dirigida ao Padre Francisco de Morais (maio de 1653) deixa
transparecer: «Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano
grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco;
trabalho de pela manhã à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não
trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro
meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações,
levam-no os livros da madre Teresa e outros de semelhante leitura. Finalmente,
ainda que com grandes imperfeições, nenhuma coisa faço que não seja com Deus,
por Deus e para Deus, e para estar na bem-aventurança só me falta vê-lo, que
seria maior gosto, mas não maior felicidade.»
Neste género literário desenvolvido
por Vieira convergem, pois, o idealista, o político, o missionário, o
sebastianista, o patriota, enfim, a complexa e enigmática personalidade do
escritor. Por isso, os seus sermões ultrapassam o valor religioso para se tornarem
motor de meditação e estudo por parte de moralistas, sociólogos, linguistas e
historiadores.
Vida do Padre António Vieira
António Vieira foi uma personalidade
multifacetada: o insigne orador, que mereceu o título de “O Crisóstomo
Português”; o conselheiro real e diplomata a quem D. João IV gabava a “lábia”;
o missionário imbuído de profunda religiosidade; o “Payassu” (“O Padre
Grande”), como o alcunharam os Índios.
António Vieira nasceu em Lisboa, em
6 de fevereiro de 1608, numa casa da Rua dos Cónegos, situada perto da Sé, e
morreu na Baía em 18 de julho de 1697.
A sua ascendência é bastante modesta.
Filho primogénito de Cristóvão Vieira Ravasco, natural de Santarém (embora de
origem alentejana), e de Maria de Azevedo, natural de Lisboa, era neto de uma
mestiça pelo lado paterno. Tanto o avô como o pai tinham sido criados dos
Condes de Unhão. O pai, escrivão das devassas dos pecados públicos num tribunal
em Lisboa, servira na Armada antes do casamento. Em 1614 (tinha então Vieira
seis anos), Ravasco, nomeado para o cargo de escrivão na Relação da Baía,
partiu com a família para o Brasil.
Vieira iniciou o curso de
Humanidades, como aluno externo, no Colégio dos Jesuítas na Baía. Neste início
de aprendizagem escolar, o jovem não se teria revelado um aluno excepcional. Só
mais tarde é que os seus dotes, realmente notáveis, vieram à superfície quando,
mercê de uma inspiração providencial, se teria produzido na sua mente o
fenómeno que ficou conhecido como o célebre «estalo de Vieira».
Um testemunho escrito por ele
próprio revela-nos que o prenúncio da sua vocação religiosa se manifestou na
tarde de 11 de março de 1623 ao escutar uma pregação do Padre Manuel do Couto,
durante a qual este sacerdote deu uma vívida descrição dos castigos infernais
que, porventura, aguardariam os pecadores renitentes.
Na noite de 5 de maio desse mesmo
ano, Vieira, que contava então 15 anos, tomou a resolução de se evadir da casa
dos pais para o Colégio dos Jesuítas, onde foi acolhido com regozijo. Logo no
dia seguinte iniciou o noviciado, árduo treino de dois anos pelo qual se
pretendia que a individualidade de todo e qualquer aprendiz a sacerdote,
sujeita a um conjunto de regras inexoráveis, se fosse esfumando numa estrita
disciplina tendente a uma submissão total, tecida de humildade e modéstia.
Animado de sincero e entusiasta
espírito missionário aquando da sua transferência para a aldeia indígena do
Espírito Santo, situada a sete léguas da Baía, logo se empenhou em aprender a
fundo o tupi-guarani, ou seja, a língua geral do Brasil (instrumento então imprescindível
para a comunicação dos catequistas e comerciantes com os Índios), bem como o
quimbundo, língua utilizada com os escravos negros provenientes de Angola.
Após o período estipulado para o
noviciado, António Vieira fez os primeiros votos de obediência, pobreza e
castidade, renunciando à efemeridade dos prazeres terrenos.
Em setembro de 1826, graças aos seus
predicados estilísticos que já então se iam afirmando, foi incumbido de redigir
em latim a Carta Ânua que a Província costumava enviar ao Geral da
Companhia. Nesse relatório anual, além de estarem patentes as qualidades de
latinista de escol (fruto da sua formação cultural no colégio jesuítico), é
também de salientar, pelo interesse histórico de que se reveste, a descrição do
ataque holandês de que foi vítima a cidade da Baía, bem como da capitulação do
opressor nos anos agitados de 1624 e 1625.
Talvez no final de 1626, ou no
início de 1627, começou a ensinar Retórica no Colégio de Marim, cidade
aprazível situada junto ao mar, mais tarde denominada «Olinda a Bela», devido à
sua situação e clima privilegiados. Aí permaneceu e exerceu o magistério durante
três anos, findos os quais rogou aos seus superiores que o deixassem devotar-se
à tarefa missionária, prescindindo por isso do estudo de Filosofia e Teologia.
A Companhia, porém, tinha intenções bem diversas a seu respeito e logo lhe
impôs o imediato regresso à Baía para ali encetar os estudos filosóficos.
Ordenado padre em dezembro de 1634, Vieira continuou a sua obra de missionário,
percorrendo, durante cinco anos, as aldeias baianas mais longínquas, onde procurava
instilar os benefícios da civilização na mente do indígena ignaro.
A par das actividades desenvolvidas
para a conversão do gentio, que denunciavam uma perceção muito aguda dos
problemas sociais, despontavam já em Vieira as virtudes oratórias reveladoras
do pregador que iria seduzir os auditórios de Lisboa e Roma. A 16 de abril de
1638, sob o comando de Maurício de Nassau, os Holandeses, sequiosos de poder,
tentaram novo ataque à cidade da Baía que opôs resistência e conseguiu expulsar
o inimigo. Atento aos acontecimentos, Vieira interveio através da palavra,
suporte de uma dialéctica ágil e sagaz. Nos dois sermões que então proferiu,
vibrantes de entusiasmo pelo triunfo obtido, pressentia-se o tom profético que
iria nortear toda a sua acção.
A notícia da libertação de Portugal
da tutela castelhana, após a revolução de 1 de dezembro de 1640, só chegou a
Salvador em fevereiro do ano seguinte. Acompanhando D. Fernando de Mascarenhas,
filho do vice-rei, Vieira foi enviado a Lisboa, tendo por incumbência apresentar
saudações ao novo rei, D. João IV.
Novos caminhos se ofereciam agora ao
jesuíta. O monarca, confiado na lucidez deste homem e na sua extraordinária
sensibilidade aos negócios de Estado, designou-o seu conselheiro particular e
nomeou-o pregador régio. A 1 de janeiro de 1642 Vieira proferiu o Sermão dos
Bons Anos, na Capela Real. As palavras exaltadas do apaixonado patriota
incendiaram os ânimos e incutiram neles o desejo ardente da luta contra
Castela. Aproveitando os fumos do Sebastianismo que ainda pairavam nos ares,
Vieira projetaria em D. João IV os sonhos de grandeza de uma pátria à espera do
rei predestinado. Contudo, para que a Restauração se consolidasse, era
indispensável lançar mão dos recursos dos judeus portugueses expatriados e dos
cristãos-novos radicados em Portugal. Vieira dirigiu, nesse sentido, diversas
petições ao monarca, entre elas o regresso dos hebreus ao reino e o abrandamento
dos processos implacáveis do Santo Ofício. Homem de rara visão, procurava o
jesuíta com estas medidas atrair o capital necessário para a criação de
companhias de comércio na Índia e no Brasil.
Ia começar para Vieira uma intensa
actividade diplomática. Os anos de 1646 a 1650 vão vê-lo atarefado em missões
políticas em França, Holanda e Itália.
Como embaixador, Vieira não alcançou
o sucesso que outros êxitos anteriores tinham feito prever. De todas as
tentativas saldou-se apenas a criação da Companhia de Comércio para o Brasil,
em 1649. Se suscitara admiradores, havia também semeado muitos inimigos. Acusado
de sugestionar o monarca num assunto de divisão das províncias, que competia à
Sociedade, chegou a ser ameaçado de expulsão da Companhia de Jesus pelo próprio
Geral, que não acatava o facto de um seu membro ter atentado contra as duras
normas de disciplina jesuítica.
Desiludido, partiu em novembro de
1652 para S. Luís de Maranhão, com o propósito de aí reatar as actividades
missionárias.
O Índio era, nessa época, a vítima
apetecida dos colonos que o sujeitavam impiedosamente a um regime de escravidão
semelhante ao do negro. Considerados escravos por direito de conquista,
proporcionavam os naturais uma mão-de-obra excepcionalmente barata e
irresistível à cobiça dos governadores. A defesa da liberdade do indígena
empreendida pela Companhia de Jesus constituía um evidente obstáculo aos
desígnios do branco ambicioso e cruel, empenhado apenas em avolumar os
rendimentos com o metal reluzente à custa do sacrifício e, muitas vezes, da
vida de vítimas indefesas, «peças indispensáveis de uma máquina produtora de
riqueza.
Com o arrebatamento que o
caracterizava, Vieira lançou-se em arriscadas expedições. Tinha imposto a si
próprio a tarefa de proteger os Ameríndios, catequizá-los, criar aldeias para
os recolher, defendê-los das garras vorazes dos colonos brancos. Espírito desprendido
dos bens materiais, prescindiu do ordenado que lhe era conferido na qualidade
de pregador régio para com ele subsidiar a obra. A provisão de 17 de outubro de
1653, favorável à causa da liberdade dos Índios, suscitou o imediato desagrado
entre os colonos que teimavam em não reconhecer aos jesuítas outros direitos
que não fossem os de ordem espiritual.
Na solidão do denso Amazonas, Vieira
ia retomando, nos poucos momentos de lazer que a piedosa faina lhe concedia, a
leitura de textos sagrados. Mergulhado no sonho utópico do Quinto Império, que aflorara nas páginas da sua História
do Futuro, lançava-se na criação de outros escritos proféticos que iriam,
mais tarde, causar-lhe amargos dissabores por parte do Santo Ofício.
Em novembro de 1654, Vieira chegava
a Portugal, após uma curta estada nos Açores, e regressava pouco depois ao
Brasil.
Com o falecimento de D. João IV em
1656, o jesuíta perdia não só o protetor de todos os momentos, cuja indulgência
lhe evitara a expulsão da Companhia em 1649, como também o prestígio disfrutado
nos meandros da corte. Em setembro de 1661, após uma revolta dos habitantes do
Maranhão, foi forçado a recolher-se ao Pará e pouco depois preso e enviado para
Portugal. Sem brilho, amargurado, aparentemente vencido, foi o único jesuíta a
quem em, 1663, o rei negou autorização para voltar ao Brasil: «... excepto o
Padre António Vieira, por não convir ao meu serviço que volte àquele Estado».
António Vieira veio encontrar um
país vacilante cujos destinos, ardilosamente enredados pelo astucioso Conde de
Castelo Melhor, se anteviam pouco promissores. Só, desamparado e contrário à
causa de Afonso VI, o jesuíta estava agora inteiramente à mercê do santo
Ofício. Invocando as Esperanças de Portugal, escrito que Vieira dirigira
ao Bispo do Japão e onde profetizava a ressurreição de D. João IV, obreiro do
Quinto Império português no mundo, o Tribunal apressou-se a exercer sobre ele
as inevitáveis represálias. As suas atitudes intransigentes face ao problema
dos judeus foram também habilmente exploradas.
Após o desterro no Porto e
julgamentos humilhantes, a Inquisição encerrou-o num cárcere frio e húmido de
Coimbra a 1 de outubro de 1665. É então que se entrega com todo o afinco à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício.
A sentença foi proferida em dezembro
de 1667. Condenado à reclusão e sem a possibilidade de pregar, restava-lhe a
companhia da Bíblia e do breviário. Tolhido o movimento mas liberto o espírito,
Vieira aproveitou o silêncio do cativeiro para se devotar às suas congeminações
quiméricas.
No ano seguinte, D. Afonso VI foi
deposto pelas Cortes. A nova regência, confiada ao irmão, trouxe como
consequência a absolvição de Vieira. Descoroçoado, porém, perante a situação
desfavorável criada na corte pelos seus inúmeros inimigos, e também pela ostensiva
indiferença de D. Pedro II, partiu para Itália em 1669 em missão da Companhia.
Em Roma aguardava-o o sucesso. Nomeado pregador e confessor da rainha Cristina
da Suécia, lançava do púlpito poderosos torrenciais de eloquência às massas
aturdidas de admiração. O problema dos Cristãos-Novos continuava a merecer-lhe
o entusiástico empenho de sempre. Colaborou em Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição, relato das
injustiças e crueldades aplicadas às vítimas do Santo Ofício em Portugal, que
causou grande escândalo em toda a Europa. Conseguiu então que o Papa Clemente X
emitisse um Breve em outubro de 1674, pelo qual ficaram suspensos os processos
inquisitoriais em Portugal. D. Pedro II, despeitado porém pela imposição papal,
que prescindia deste modo da prévia consulta régia, e por outro lado receoso da
reacção popular que fanaticamente mais uma vez se iria insurgir contra os
Cristãos-Novos, apressou-se a pronunciar-se contra toda e qualquer reforma em
benefício da «gente da nação».
Também o seu plano para a fundação
de uma Companhia Mercantil para a Índia (à semelhança da Companhia Geral do
Comércio do Brasil), na qual a maior parte do capital seria proveniente de
cristãos-novos, sob condição de insenção de fisco, esbarrou contra a tenaz
oposição do reino. Foi então que os Judeus, desiludidos com a marcha dos
acontecimentos, renunciaram ao «perdão geral» que antes tinham solicitado ao
Papa, limitando-se por ora a um mero pedido de mudança de métodos do Santo Ofício
português. Nessa altura escreveu Vieira o Desengano Católico sobre a Causa
de Nação Hebreia.
Durante a estadia de cerca de seis
meses em Roma lutou ainda debalde pela revisão do seu processo. Em
contrapartida, quando em 1675 regressou à pátria por ordem expressa de D. Pedro
II, levava com ele um Breve do Pontífice que lhe dava a reconfortante garantia
de jamais vir a ficar sob a alçada da voraz inquisição portuguesa.
Foram de sofrimento os últimos anos
que passou em Portugal, num ambiente mesquinho que nada mudara e em que
triunfavam apenas os malabaristas da intriga, da calúnia e da intolerância. A
pretexto de problemas de saúde, Vieira regressou para sempre ao Brasil em 1681.
Na Quinta do Tanque, perto do
Colégio da Baía, encontrou a paz e a serenidade que lhe permitiram dedicar-se à
paciente tarefa de reconstituição dos seus Sermões, já antes iniciada em Lisboa
com o aparecimento em 1679 do primeiro volume. Nomeado aos 80 anos Visitador
das missões pelo Geral da Companhia, foi nessa altura residir para o Colégio da
Baía. Após o mandato, regressou em 1691 à Quinta do Tanque, onde decorreram os
derradeiros anos da sua vida, entre os manuscritos dos Sermões que ia enviando
para o prelo, e a elaboração da Clavis
Prophetarum que não chegou a concluir.
A correspondência com os amigos que
deixara em Portugal (na qual figura uma circular de despedida enviada em 1694)
proporcionava-lhe ainda a ilusão de contacto com os problemas da sua pátria, à
qual dedicou sempre um amor inalterável feito de ternura, desalento,
desesperança e revolta.
Entretanto, o lutador que havia em
si continuava a imiscuir-se nos mais variados problemas locais. Mais uma vez
teve ensejo de intervir na eterna questão de direito à liberdade que
reivindicava para os Índios, quando os paulistas os reclamavam para a
exploração das minas de ouro.
De resto, a Aventura que constituiu
toda a vida do Padre António Vieira reservara-lhe ainda o duro vexame de
acusação do assassinato do Alcaide-mor (ocorrido em 1683 na Baía), de
conivência com o seu irmão Bernardo Vieira Ravasco, então Secretário de Estado.
O processo só terminou passados quatro anos, com a absolvição de ambos os
acusados.
Não obstante a extrema idade e a
invalidez que lhe sobreveio após uma queda, guardou até ao termo da sua vida a
frescura de espírito, a rara lucidez, o domínio, enfim, da palavra e do
pensamento que sempre o caracterizaram.
Morreu com a idade avançada de 89
anos em julho de 1697 no Colégio da Baía, e com ele uma arte inimitável
patenteada sobretudo nos seus célebres Sermões.
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segunda-feira, 8 de julho de 2019
"Amo-te", de Bruna Tatiana, a pronominalização e o verbo «haver»
(2018)
Assim que atingimos o minuto 1:19, a cantora grita urbi et orbi "Darei-te o devido valor".
Pelo minuto 1:41 "houveram brigas e intrigas", felizmente superadas.
O que não é possível superar são os pontapés dados na gramática portuguesa pelo autor deste brilhante pedaço de poesia, apaixonadamente repetidos pela intérprete da peça.
Um pequeno contributo: pronome pessoal em adjacência verbal.
Um pequeno contributo: pronome pessoal em adjacência verbal.
Análise de "José", de Carlos Drummond de Andrade
“José” é um
poema da autoria de Carlos Drummond de Andrade, escritor nascido a 31 de
outubro de 1902 e falecido a 17 de agosto de 1987, um dos maiores vultos da
segunda geração de modernistas brasileiros, considerado por muitos o maior
poeta brasileiro do século XX.
A
composição em questão foi publicada pela primeira vez em 1942, integrada na
obra Poesias. Nela, o autor aborda a temática da solidão e do abandono
do indivíduo na cidade grande, bem como a desesperança e a sensação de estar
perdido na vida, sem saber que rumo seguir.
O texto
abre com uma interrogação que se repete, anaforicamente, ao longo do mesmo,
assumindo a forma de uma espécie de refrão: “E agora, José?”. Ou seja, agora
que os bons momentos terminaram (“a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo
sumiu”), o que resta? O que há a fazer?
Por outro
lado, a interrogação constitui o mote e o motor do poema: a procura de um
caminho, de um sentido para a vida. José, tal como João ou António, é um nome
muito comum na língua portuguesa, pelo que o seu uso neste texto pode ser
entendido como um sujeito coletivo, uma metonímia. A sua substituição pelo
pronome “você” significa que o sujeito poético se está a dirigir diretamente
ao(s) leitor(es), comos e este(s) fosse(m) o(s) interlocutor(es).
Esse “você”
não tem nome, mas “faz versos”, “ama, protesta” e “zomba dos outros”. A sua
característica de poeta pode ser interpretada como a sua identificação com o
próprio Drummond de Andrade.
A segunda
estrofe reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem
“mulher”, “discurso” e “carinho”. Além disso, já não pode “beber”, “fumar” e
“cuspir” (atente-se na sucessão de anáforas); “a noite esfriou”, “o dia não
veio”, tal como não veio “o bonde”, “o riso” e a “utopia”. Isto significa que
todas as formas de contornar o vazio, a ausência, o desespero e a realidade não
chegaram, nem mesmo o sonho (“a utopia”), nem a esperança de um recomeço, pois “tudo
acabou”, “fugiu” e “mofou” (nova sucessão de anáforas), como se o tempo
deteriorasse tudo aquilo que é bom.
Na terceira
estrofe, prosseguem as anáforas e as enumerações, nomeadamente das suas
características imateriais (“sua doce palavra”, “seu instante de febre”), “sua
gula e jejum”, “sua incoerência”, “seu tédio”), bem como daquilo que é material
e palpável (“sua biblioteca”, “sua lavra de ouro”, “seu terno de vidro”). Ou
seja, tudo desapareceu e nada restou, exceto a interrogação: “E agora, José?”.
A quarta
estrofe apresenta-nos um sujeito poético que não encontra saída/solução para a
sua situação: “Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta”. A
própria morte enquanto derradeira solução também não é possível – “quer morrer
no mar, / mas o mar secou – ideia que é reforçada mais adiante (José é obrigado
a viver) –, tal como a possibilidade de um regresso às origens: “quer ir para
Minas, / Minas não há mais”. Atente-se no facto de o poeta ser natural de Minas
Gerais (Itabira), o que pode indiciar nova possível identificação entre
Drummond de Andrade e José. Em suma, o passado também não constitui uma solução
para o drama vivido pelo sujeito poético.
A quinta
estrofe contém uma anáfora constituída por várias orações subordinadas
adverbiais condicionais, com as formas verbais no pretérito imperfeito do
conjuntivo. Todos estes recursos remetem para um conjunto de possíveis
escapatórias ou distrações que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam
em suspenso, ideia suscitada pelo recurso às reticências. O verso 7 desta
estrofe destaca novamente a ideia de que a morte não é solução: “Mas você não
morre”, pois “você é duro José!”. Estes dois versos sugerem que o sujeito lírico
possui uma grande força, uma resiliência e capacidade de sobrevivência que
constituem traços da sua personalidade, para quem desistir da vida não é uma
opção.
A última
estrofe do texto salienta o seu isolamento total (“Sozinho no escuro / qual
bicho-do-mato”), “sem teogonia” (não há Deus, não existe fé nem auxílio
divino), “sem parede nua / para se encostar” (sem o apoio de nada nem de
ninguém), “sem cavalo preto / que fuja a galope” (sem nenhum meio de fugir da
situação em que se encontra).
Ainda
assim, “você marcha, José!”, mas para onde? Ou seja, o sujeito poético segue em
frente, mesmo sem saber em que direção ou com que objetivo. O verbo “marchar”
remete para um movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à
sua rotina, às suas obrigações, afogados em questões existenciais que o
angustiam; faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, por isso tem de
manter o seu quotidiano.
Não
obstante, perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos
finais do poema parecem sugerir um raio de esperança: José não sabe para onde
vai, qual é o seu destino ou lugar no mundo, mas “marcha”, prossegue,
sobrevive, resiste.
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sábado, 6 de julho de 2019
Escola + Simples para Professores
Despacho n.º 6147/2019
Linhas orientadoras para visitas de estudo e outras atividades fora do espaço escolar: Despacho n.º 6147/2019.
quarta-feira, 3 de julho de 2019
A falácia da dita Escola Moderna
Depois da publicação dos famosos (ou infames?) 54 e 55, multiplicam-se as notícias e reportagens sobre escolas inspiradas pelo Movimento da Escola Moderna (tão moderna que as suas raízes já têm mais de cinco décadas).
A mais recente reportagem sobre a matéria visava a Escola Básica da Várzea de Sintra. Nela, encontramos, logo a abrir, uma síntese que nos fala em escola sem turmas, salas de aula, toques de campainha, etc., etc., etc.
Depois vamos procurar dados sobre o desempenho dos alunos desta escola, para podermos ter um termo comparativo com a dita escola do século XIX e encontramos estes referentes às provas de aferição:
Nem tudo o que é velho será, necessariamente, bom nem tudo o que pretensamente é novo corresponderá ao que se apregoa.
terça-feira, 2 de julho de 2019
"Uma fábrica de desigualdades"
27 de Junho de 2019, 2:05
“Ainda bem que já estou
de férias!”
A frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é
um rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia,
passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para
minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e
eu temperava a salada.
“Até que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro
a fazer projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros
ficavam a ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava
bem feito ou não, se tinha sido copiado da Internet ou escrito por nós... Além
disso, eu pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O
nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse
coisa alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua: “Os
professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como
querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a
mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o
que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas
assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai
dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que
as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
Perguntei-lhe se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã,
avançada um ano nos estudos, mas quis saber o que ele me responderia. “Não sou
o único a dizer isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não
se importam com nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer
nenhum. Trabalham uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda
a gente, porque sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano
nesta escola, mesmo que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que
chumbar dá mau nome à escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
A interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo
prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem
trabalhar?”
A opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do
ano lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das
“aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto
me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais
e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me
apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de um
grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas
tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas
de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem,
seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e
simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são
alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
Não foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado,
sabendo eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de
autonomia que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega
e militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora
tenha a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o
equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia
ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai
crescendo.
Com as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares
que estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo
pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os
problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes
ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na
distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União
Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria
que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação
da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou
mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para
estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de Estado
do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da
remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas
mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis,
como se diz por aí.
Vítimas de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta
anos, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e
continuará a existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que
vivem um autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas
consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia
evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo
isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de
compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de
agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa
é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão
vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as
desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão
social ao longo da vida.
Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se
alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que
deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que
não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que
são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as
suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e
dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e
converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo
que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à
atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e
sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso”
– ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de
oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de
todos os seres humanos.
Ruy
Ventura
Escritor e investigador
sábado, 29 de junho de 2019
Regência de "assistir"
1. Com o sentido de "ver, presenciar", «assistir» é um verbo transitivo indireto. pelo que rege a preposição a:
. No sábado, assisti ao programa de Ricardo Araújo Pereira.
2. Quando significa "prestar auxílio médio", "dar assistência", ou "servir de advogado ou procurador de alguém", seleciona um complemento direto, pelo que é usado sem preposição:
. O médico assistiu os doentes.
. O advogado que assiste Sócrates no processo veio de Marte.
3. Quando significa "caber a alguém, ser seu por direito, por justiça", rege a preposição a ou liga-se ao complemento indireto:
. Votar é um direito que assiste a todos.
. Meu amigo, votar é um direito que lhe assiste.
. O médico assistiu os doentes.
. O advogado que assiste Sócrates no processo veio de Marte.
3. Quando significa "caber a alguém, ser seu por direito, por justiça", rege a preposição a ou liga-se ao complemento indireto:
. Votar é um direito que assiste a todos.
. Meu amigo, votar é um direito que lhe assiste.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
"Presságio"
O poema “Presságio”
foi escrito por Fernando Pessoa em 24 de abril de 1928, já na fase final da sua
vida (13 de junho de 1888 – 30 de novembro de 1935).
O tema da
composição poética é o amor, mais concretamente a dificuldade em o revelar à
pessoa amada (em última análise a impossibilidade de viver um amor
correspondido), abordado em cinco quadras de redondilha maior (bem ao gosto
popular), com rima cruzada, segundo o esquema rimático ABAB.
Na primeira
quadra, o sujeito poético apresenta o mote do texto, isto é, o tema que vai ser
desenvolvido, bem como o seu posicionamento face ao mesmo: quando o sentimento
amoroso se revela, quando surge, não sabe como se revelar, como se confessar
(note-se a antítese construída em torno da repetição de formas do verbo “revelar”
nos dois versos iniciais: “revela” e “revelar”). Recorrendo à personificação,
ele representa o amor como uma entidade autónoma, que age independentemente da
vontade do sujeito. Assim, sem conseguir controlar aquilo que sente, apenas
pode olhar a mulher amada, mas não consegue conversar com ela, não sabe o que
dizer.
Na segunda
estrofe, o sujeito poético reforça a incapacidade de expressar devidamente o
seu amor, parecendo acreditar que o sentimento não pode ser traduzido por
palavras, pelo menos por ele: “Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há
de dizer.”. O «eu» é um inadequado relativamente ao «outro» e tem dificuldade em
comunicar com ele, a qual resulta na sensação de que está sempre fazendo algo
de errado.
A
observação e a opinião dos outros restringem os seus sentimentos. O sujeito
acredita que, se falar sobre eles, vai parecer que mente, mas, se os calar, vai
ser julgado por deixar (a amada? O amor?) cair no esquecimento. Assim sendo,
sente que não pode agir de nenhum modo.
Na terceira
estrofe, o sujeito lírico, triste e desalentado, lamenta-se e, socorrendo-se do
pretérito imperfeito do conjuntivo (modo verbal do desejo) e de uma oração
subordinada adverbial condicional, manifesta um desejo: que ela pudesse
compreender o amor que sente através do olhar. Atente-se na sinestesia dos
versos 9 e 10 (“Ah, mas se ela adivinhasse, / Se pudesse ouvir o olhar”),
que exprime a crença do sujeito, segundo a qual o modo como olha a amada
denuncia mais o seu sentimento do que qualquer declaração. O «eu» suspira (“Ah”),
imaginando como seria se ela percebesse, sem que ele tivesse de dizer por
palavras. Porém, a presença do conjuntivo (“adivinhasse”, “pudesse”) e da
oração condicional nega desde logo a possibilidade de se concretizar essa
vontade.
Na estrofe
seguinte, defende que “quem sente muito, cala”, ou seja, aqueles que estão
realmente apaixonados calam o seu sentimento. Para ele, quem tenta expressar o
seu amor “fica sem alma nem fala”, “fica só, inteiramente”. Falar do que sente
irá sempre levá-lo ao vazio e à solidão absoluta. Assim, é como se assumir um
amor fosse, automaticamente, uma sentença de morte para o sentimento, que
passaria a estar condenado.
A última
quadra é passível de diferentes leituras:
a) Se
o sujeito poético pudesse explicar à mulher a dificuldade que tem em exprimir o
seu amor, não mais seria necessário fazê-lo, porque já se estava a declarar,
mesmo que indiretamente. Porém, a realidade é que não consegue verbalizar o
sentimento nem discutir essa sua inabilidade. Assim sendo, o relacionamento
está condenado a não passar do plano platónico.
b) O
texto é, na verdade, uma declaração de amor. Neste caso, o «eu» usa a poesia
como forma de falar, de mostrar o que sente; o poema diz/fala aquilo que ele
não consegue. Porém, para que esta forma de comunicação se concretizasse, seria
necessário que ela lesse o poema e soubesse que lhe era dirigido. Como não o lê
não sabe, o relacionamento também não se concretiza deste modo.
c) O
verdadeiro amor é incomunicável, não pode ser expresso através de palavras,
caso contrário desaparece. O sujeito poético conclui que só conseguiria
declarar o seu amor, caso o sentimento não existisse mais.
A conjunção
coordenativa adversativa “mas” estabelece uma oposição entre aquilo que tinha
sido dito antes e a quadra que encerra o poema. Embora lamente não poder
expressar o seu sentimento, está conformado, pois sabe que não pode ser revelado,
sob pena de desaparecer.
Ao longo de
todo o poema, transparece a atitude derrotista do sujeito poético face ao amor.
https://www.culturagenial.com/poema-pressagio-de-fernando-pessoa/
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