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terça-feira, 8 de outubro de 2024

Análise do 2.º parágrafo do conto «A Aia»

 ● Ação


    A ação do segundo parágrafo gira em torno de dois acontecimentos: a derrota do rei numa batalha e a notícia da sua morte.
    O rei partiu em busca de conquistar terras e da consequente fama obtida no campo de batalha, porém a derrota destruiu esses sonhos.


Personagens


    O rei é apresentado como alguém sonhador e ambicioso, pois partiu para a guerra em busca de fama e de novas terras e reconhecimento. Os seus sonhos e esperanças, porém, são estilhaçados pela derrota na guerra, redundam em fracasso trágico. A sua morte simboliza o fim das ambições de conquista e fama, gerando uma sensação de perda profunda.
    A outra personagem focada no segundo parágrafo é o cavaleiro que traz a notícia da derrota na batalha e da morte do rei. A sua única função no texto é a de mensageiro, a do portador de más notícias, as quais introduzem uma mudança nos acontecimentos. A sua descrição física dá conta do seu estado deplorável: “com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos”. Ele está exausto, passou por grandes dificuldades, sobreviveu a uma batalha sangrenta, que lhe trouxe um grande sofrimento físico e emocional. O seu aspeto físico e as armas danificadas representam a violência da batalha: o sangue seco, por exemplo, sugere claramente que o combate foi brutal, causando inúmeras mortes e destruição. Ele é um sobrevivente, o único do exército do rei, mas traz consigo a marca da derrota e da tragédia; é um homem vitimado pelos horrores da guerra, refletindo o fracasso das expectativas de conquista e glória.


Tempo e espaço

    A esmagadora maioria dos acontecimentos do conto ocorre à noite, como se pode comprovar neste parágrafo, pois quer a partida do rei quer a sua morte têm lugar nesse momento do dia.
    No caso do espaço físico, há referência ao “pó dos caminhos” percorridos pelo cavaleiro desde o campo de batalha até ao palácio e à margem de um grande rio, o local onde o rei tombou e cuja simbologia é abordada no ponto que reflete sobre os elementos simbólicos do parágrafo.

Elementos simbólicos

     Quer a partida do rei para a guerra, quer a sua morte estão intimamente ligadas à Lua. De facto, quando embarca em busca do “seu sonho de conquista e fama”, a Lua está na fase cheia, o que simboliza o seu sonho e a ilusão da conquista e da fama; porém, a sua morte ocorre quando a mesma Lua está a minguar. Ora, a fase minguante é a que antecede os três dias em que não brilha, em que «morre», portanto o minguar da Lua simboliza / reflete exatamente a derrota das tropas do rei e a sua morte. Ou seja, o ciclo lunar constitui uma metáfora da trajetória do rei: um período breve de glória e ambição desagua na derrota e na morte.
    Por outro lado, o monarca pereceu trespassado por sete lanças, sendo que este número está associado à tragédia, à morte, neste caso, do rei, morte essa que é indiciada pelas armas rotas do cavaleiro e acentuada pelo sangue e pelo facto de regressar sozinho ao reino. Além disso, a morte tem lugar “à beira de um grande rio”, o qual representa o limiar entre a vida e a morte, neste caso concreto, do rei e da elite da sua nobreza guerreira.

Linguagem

    Neste parágrafo, a Lua é personificada, como se fosse uma testemunha muda da partida do rei: “A Lua cheia que o vira marchar…”. Posteriormente, já minguante, reflete a perda e a derrota. Os nomos «sonho», «conquista» e «glória» sugerem a ambição e o ideal do rei, o que contrasta com, por exemplo, o adjetivo «perdida» e o nome «morte», que dão conta da derrota do monarca e da destruição do seu ideal, sonhos e ambição.
    Por outro lado, as descrições pautam-se por um grande visualismo, como é o caso da do cavaleiro (“Com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos.”), que enfatiza a violência da batalha e o desgaste físico e o cansaço da personagem, motivados pela longa jornada que teve de fazer e que é refletida pela longa jornada que teve de fazer e que é refletida pelos nomes presentes na expressão «pó dos caminhos».
    Na expressão «trespassado por sete lanças», podemos eventualmente vislumbrar uma hipérbole, que enfatiza a violência que rodeou a morte do rei. Por seu turno, a metáfora “a flor da sua nobreza” sugere que os que pereceram na batalha eram a elite da nobreza, os melhores e mais nobres cavaleiros dentre os melhores, reforçando a magnitude da derrota e da perda.

domingo, 6 de outubro de 2024

Benfica vence a sexta Supertaça de polo aquático feminino


 

Análise do 1.º parágrafo do conto «A Aia»

O tempo cronológico e os contos de fadas

    O conto abre com a expressão “Era uma vez”, que transporta o leitor para o mundo dos contos tradicionais populares, caracterizados pela presença de reis, rainhas, príncipes e por um mundo de fantasia e imaginação.
    Por outro lado, a expressão situa a história num tempo indefinido e indeterminado, afastado do tempo concreto, criando, assim, uma noção de atemporalidade, ou seja, de uma época qualquer, reforçando o caráter simbólico da narrativa. Isto permite que a história seja percecionada não como um evento específico e situado num determinado local e tempo concretos, mas como algo que poderia acontecer em qualquer momento da história humana.
    Por outro lado, convém não esquecer que os contos populares veiculam uma lição ou ensinamento moral, transmitindo valores ou comportamentos, pelo que a fórmula de abertura, ao associar-lhes o conto de Eça de Queirós, sugere que a história que vai ser narrada contém um desfecho moralizante. No entanto, embora o texto pareça ter um início leve e fantasioso, na realidade prepara o terreno para a abordagem de temas profundos e um desfecho trágico, que contraria o típico «Casaram e viveram felizes para sempre».
    Além disso, a aia, uma humilde serva, normalmente um tipo de personagem secundária, assume grande relevância e um papel crucial no desenvolvimento da ação. O seu sacrifício heroico remete também para os contos populares e de fadas, nos quais por vezes figuras aparentemente secundárias e / ou desprovidas de profundidade psicológica desempenham papéis de enorme relevância e assumem um estatuto de grande importância moral ou heroica.

O tempo histórico

    Quanto ao tempo histórico, tal como sucede com o da história ou com o espaço físico, não encontramos, para já, qualquer notação que permita localizar a ação numa época concreta. No entanto, uma série de elementos presentes ao longo do texto permite situá-la na Idade Média. A existência de uma monarquia hereditária (o pequeno príncipe é o herdeiro do trono) sugere a existência de uma organização social característica da época medieval, marcada pela concentração do poder nas mãos do rei e pela continuidade dinástica. Em segundo lugar, a referência às searas abundantes aponta para uma economia de tipo agrário, onde a riqueza do reino estava associada ao cultivo da terra. Em terceiro lugar, a partida do rei para a guerra situa-nos no contexto das guerras medievais, de campanhas militares organizadas para defender ou conquistar territórios.

O espaço

    No que diz respeito ao espaço físico, a expressão “senhor de um reino abundante em cidades e searas”, por um lado, situa a ação num espaço indeterminado e indefinido (vide tempo); por outro, apresenta-no-lo como vasto e próspero / rico, simbolizando as cidades o poder político e a estrutura / organização social e as searas a fertilidade e a riqueza económica, o que indicia que o reino é bem governado e seguro, imagem que passa a estar ameaçada com a partida do rei para a guerra, facto que o deixa e aos súbditos, bem como a família (a rainha e o filho de ambos), numa situação de vulnerabilidade.
    Neste parágrafo, existe a menção a outro espaço físico – “terras distantes” –, o local para onde o rei e o seu exército partem, pois é aí que se vai desenrolar a guerra – outro espaço indefinido e indeterminado. Por um lado, o facto de o lugar ser distante enfatiza a separação e a distância enorme entre o rei e a sua família, o que acentua a situação de vulnerabilidade e o perigo crescente que a cerca. Por outro lado, estabelece-se aqui uma espécie de contraste entre o mundo externo, caracterizado pela violência e pela imprevisibilidade, e o espaço interior presumido, o palácio, que estaria conotado com a segurança, mas que agora, porém, também está ameaçado.
    No que se refere ao espaço social, a ação decorre essencialmente no ambiente da corte, representado pelo palácio real, pelo casal de soberanos e pelo seu filho bebé. Por outro lado, as personagens apresentadas neste primeiro parágrafo – o rei, a rainha e o filho – pertencem à realeza. De facto, a história desenrola-se na corte, no seio da nobreza, sendo que o monarca e a sua consorte ocupam o topo da estrutura social. O rei surge ligado ao exterior e à ação, ao estatuto de herói, enquanto a rainha é remetida para uma posição mais passiva e confinada ao lar. A sua solidão e tristeza refletem a saudade do esposo, mas também a sua posição subalterna enquanto mulher numa sociedade patriarcal, dominada por homens. Além disso, o reino é caracterizado como vasto, abundante e rico, quer em cidades, quer em riqueza. Por último, esta parte do texto indicia os diferentes papéis desempenhados pelo rei e pela rainha, que surge numa posição de dependência, juntamente com o filho, relativamente à figura do poder. De facto, a sua ausência cria uma lacuna de poder no espaço doméstico e abre caminho para que a fragilidade se instale no palácio.

Personagens

    O rei é apresentado como um nobre “moço e valente” (jovem e corajoso), o que permite, desde já, associá-lo à figura do herói que parte para combater em terras distantes. Por outro lado, é rico e poderoso (reina num “reino abundante em cidades e searas”) e ambicioso, dado que parte para a guerra em busca de fama e de novas terras, mas também imprudente, pois a sua partida deixa o reino e a sua família desprotegidos, logo vulneráveis. Note-se também que todos estes elementos permitem associar o conto ao mundo medieval e cavaleiresco, onde os monarcas tinham necessidade de defender os seus reinos através da guerra.
    Por último, há que notar que o rei não possui nome próprio, portanto é uma personagem anónima, outro traço herdado do conto tradicional popular e que caracteriza todas as restantes personagens do texto (a rainha, o príncipe, a aia, o escravozinho, etc.). De facto, todas elas são anónimas, sendo designadas pela sua condição social (o rei, a rainha, a aia, etc.) ou pelas suas características psicológicas. Este traço serve para conferir intemporalidade ao conto, à semelhança do que sucede com o tempo e o espaço.
    A rainha, igualmente nobre e jovem, é caracterizada como “solitária e triste”, traços que têm como causa direta o sentimento de abandono, pois o marido partiu para a guerra e deixou-a só. Para a sua tristeza, preocupação e saudade concorrerá também a responsabilidade de criar e proteger o filho de ambos. Por outro lado, a situação da rainha remete para o tema batido da espera e da solidão femininas. De facto, já na cantiga de amigo, encontramos a mulher que espera, ansiosa e preocupada, o homem, que partiu (para a guerra, por exemplo).É o caso, a título exemplificativo, de cantigas como “Sedia-m’ eu na ermida de San Simion” ou “Ai flores, ai flores do verde pino”. Ela enfrenta não apenas a saudade, mas também a responsabilidade de manter a estabilidade familiar e proteger o herdeiro do trono.
    Por último, o príncipe, igualmente nobre, é uma figura rodeada de carinho (diminutivo «filhinho»), mas apresentada como inocente e frágil, desde logo por ser um bebé de berço e, além disso, por causa da ausência do pai. Convém não esquecer, neste contexto, que se trata do herdeiro do trono, por isso carece de proteção constante. Ele simboliza o futuro e a continuidade do reino.

Narrador

    No que diz respeito à presença, o narrador é não participante e heterodiegético, visto que não é personagem e, por conseguinte, não participa na ação. Assim, a narração é feita na terceira pessoa (“partira”).
    Relativamente à focalização, o narrador parece ser omnisciente, visto que conhece os pensamentos e os sentimentos das personagens, como é o caso do estado de espírito após a partida do marido para a guerra: “solitária e triste”.
    Por último, no que diz respeito à posição, o narrador é predominantemente objetivo, ou seja, apenas se refere ao que observa ou conjetura, no entanto há várias passagens que o apresentam como subjetivo, como, por exemplo, o uso da interjeição “Ai”.

Linguagem

    No primeiro parágrafo, assume preponderância a dupla adjetivação. Assim, a expressão «moço e valente» caracteriza o rei de forma idealizada, quase heroica. Por outro lado, «solitária e triste» traduz a angústia, a solidão, o isolamento e a desproteção da rainha ao ver o marido ausente.
    Por sua vez, o diminutivo «filhinho» sugere o amor e o carinho que rodeiam o frágil príncipe. Por outro lado, aponta para a tenra idade da criança, que vive no seu berço, «dentro das suas faixas», protegido. Em terceiro lugar, o diminutivo acentua a inocência, a fragilidade, a vulnerabilidade do bebé indefeso, dependente dos cuidados maternos e das figuras que o cercam, como a aia. A combinação do diminutivo com a imagem do bebé enfaixado no berço acentua a sua absoluta incapacidade para se proteger ou agir por conta própria. Ele é um símbolo da vulnerabilidade do próprio reino, que depende da sua sobrevivência. Além disso, o recurso ao diminutivo contrasta com a imagem do pai, apresentado como jovem e valente. Assim, o rei é apresentado como símbolo do poder e da força e valentia, enquanto o filho é o oposto: indefeso e sem qualquer força ou poder político.
    Outro recurso muito importante é o determinante artigo indefinido («um» e «uma»):
- “Era uma vez”; “um reino abundante”, um rei”:
não permite determinar com precisão o tempo histórico e o tempo cronológico (intemporalidade);
não permite determinar com precisão o espaço físico:
contribui para a exemplaridade da história, cuja mensagem, cujo teor humano pode ser aplicado a muitos tempos e lugares;
traduz o anonimato das personagens.

sábado, 5 de outubro de 2024

Benfica vence a 8.ª Supertaça de râguebi feminino

 

O 5 de outubro

     O atual feriado do 5 de outubro deve-se à implantação da República em 1910.

    No entanto, este dia é associado também a outra efeméride importante da nação lusitana. Em 1143, D. Afonso Henriques proclamava-se rei do Condado Portucalense e procurava aumentar o território com incursões militares na Galiza.

    A 5 de outubro de 1143, sob a influência do enviado do Papa, o cardeal Guido de Vico, D. Afonso Henriques e D. Afonso VII, monarca dos reinos da Galiza, Castela e Leão, assinaram em Zamora um tratado (Tratado de Zamora) que muitos consideram o marco que estabelece a independência de Portugal como nação independente.

    Todavia, a independência só foi reconhecida pelo Papa Alexandre III, em 23 de maio de 1179, através da Bula Manifestis Probatum, a qual declara o Condado Portucalense independente do reino de Leão.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Análise do capítulo II de O Cortiço

     Apresentação de Miranda e sua família, caracterizados sempre pela negativa.

         Miranda: referência à sua relação com a mulher e com Romão. Sente inveja de Romão, porque o vê crescer à força do trabalho, enquanto ele enriquecera à custa de um casamento de uma mulher que o trai. No final do capítulo, mostra que tem ambições diferentes de Romão e que são o fulcro da sua vida: ascensão ao baronato.

        D. Estela: caracterização explícita e implícita, quando é encontrada no jardim com Henrique.

        Henrique: hóspede da família.

        Criados: Valentim, Isaura, Leonor.

        Zulmira: filha de Miranda e de D. Estela.

        Botelho: é visto como um parasita que não pertence à família, mas que se integra na sordidez resultante da caracterização das personagens. São importantes as metáforas, que visam a sua caracterização. É importante a relação que estabelece com as outras personagens. Miranda vê-o como amigo e a ele confia as suas misérias e o mesmo acontece com os outros. Ele conhece as fraquezas de todos. O seu retrato é ainda mais negativo, pois partilha a sordidez de todas as outras personagens. Tem, por isso, um papel importante no romance.

Análise do capítulo I de O Cortiço

     Apresentação de três personagens importantes:

        => João Romão: é a esta personagem que se deve o aparecimento do cortiço. Descreve-se a sua ascensão, que se pauta pela ambição com vista a uma situação futura. Todas as suas privações visam o seu enriquecimento futuro. Mas a sua atitude é dinâmica e evolutiva, porque o conduz a uma produção acelerada de riqueza.
    A descrição do espaço e suas ações visam a sua caracterização, surgindo assim um retrato bastante completo e individualizado.
    Ele leva Bertoleza a confinar em si e a sua ligação intensifica-se, sobretudo a partir da cena da alforria. Mas a ajuda à escrava não é desinteressada; ele faz uma burla, cujo objetivo é sacar-lhe o dinheiro. Este facto vai ser fundamental no final. Todos os factos referidos, por mais insignificante que pareçam, têm sempre uma função.
    A economia, o trabalho e a esperteza são aspetos positivos, mas que em Romão são negativos e fundamentais na sua caracterização. Este primeiro capítulo é uma iniciação à sua caracterização, que irá ser constante ao longo da obra.

        => Bertoleza: tem uma caracterização mais positiva, pois foi enganada e tem atitudes mais altruístas.
    É típico de Aluísio de Azevedo o recurso a um certo tipo de vocabulário e comparações com animais, o que dá a ideia de sordidez.
    Mesmo antes de se ligar a João Romão, era muito trabalhadeira, pois tinha que pagar a renda ao seu senhor e queria pagar a sua liberdade. Mas o seu trabalho forçado vai continuar após se ligar a Romão: "Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante." Agora trabalha por dedicação e em função do homem a quem se sente agradecida e ligada. Este par (Romão e Bertoleza), em que o trabalho sem descanso é a marca fundamental, é bem o exemplo desse mundo sórdido. Mas o caráter de Bertoleza é diferente do de Romão, que faz tudo por interesse económico, enquanto ela age por dedicação.
    Esta caracterização positiva de Bertoleza mantém-se inalterada. Ainda em relação a Bertoleza, há um outro elemento fundamental e que abrange quase todas as mulatas e negras do romance: veem o branco como forma de ascensão social; o negro ainda era sinónimo de escravo: "Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua."

        => Miranda e D. Estela: embora pertençam a um estatuto diferente de João Romão, a personalidade básica é a mesma. Romão ascende pelo trabalho; Miranda ascende através do casamento.
    Toda a caracterização deste par passa por aspetos do foro íntimo, de caráter sexual, onde se manifesta a sordidez de caráter, pelo desvio à norma.
    Há um dado novo que aparece na literatura brasileira e que não é comum em Machado de Assis (onde aparece o adultério de modo subtil): o comportamento sexual e o adultério são expostos de modo explícito e de forma sórdida. Daí a frequente comparação com animais.
    Temos, assim, de um lado Romão e Bertoleza e, do outro, Miranda e D. Estela, que pertencem a classes diferentes, mas com a mesma caracterização sórdida.
    A caracterização individual é acompanhada por uma caracterização de relação. Por exemplo, o modo como Romão se relaciona com Bertoleza pauta-se pelo desvio. Temos também a relação entre Miranda e Romão e a relação de Romão com as pessoas que habitam o cortiço e de quem ele se aproveita e explora. São relações que se pautam sempre pela negatividade.
    A visão do cortiço, além de provocar uma relação de causa-efeito, é uma visão sórdida. Todos os elementos têm uma função explícita. A descrição é um processo usado para a caracterização dos espaços e dos ambientes.

Contexto literário de O Cortiço

     O Cortiço é uma obra que se insere já no Naturalismo, que é uma corrente que procura cultivar a cientificidade.
    Machado de Assis fugia já ao Realismo, por causa da sua personalidade e referências ao leitor. Mas mais se afasta do Naturalismo, que tinha objetivos ainda mais científicos. O Naturalismo acaba por mostrar uma vertente diferente do Realismo. Os seus princípios não eram muito digferentes; ambos procuravam a objetividade. Mas tirando isto, há vários aspetos que os separam. O Naturalismo é como que uma mutação do Realismo:
        => O Realismo mostra uma visão neutra do homem; o Naturalismo traz consigo o romance experimental, que mostra o homem como o resultado de três elementos fundamentais: raça, meio e momento (Taine).
            => O alto grau de perfeição da ficção em Machado de Assis, vai ser substituído no Naturalismo por outros aspetos, como a necessidade de provar as teses apresentadas. Temos, assim, o drama de tese que aparece no Naturalismo devido à necessidade de explicar as causas e os porquês de determinadas atitudes e comportamentos.
    Paul Alexis, em relação ao Naturalismo, diz: "O Naturalismo é um método de pensar, ver, refletir, estudar, experimentar; uma necessidade de analisar para saber, mas não uma maneira especial de escrever."
    A qualidade ficcional é sacrificada a outros elementos fundamentais no Naturalismo.
            => O Realismo pautava-se por uma escrita económica, onde a personalidade das personagens estava implícita, insinuava-se; no romance experimental, não há essa economia. Há uma explicação explícita dos comportamentos, que se tornam mais evidentes quanto menor é o freio da educação, o condicionamento.
            => Personagens e sua classe social:
                    * O Realismo trata personagens da classe bueguesa.
                    * No Romantismo, privilegiam-se personagens da alta burguesia e da 
                        aristocracia.
                    * No Naturalismo, temos a escolha das classes mais baixas, porque estas
                        estão mais sujeitas às influências da raça, do meio e do momento. Há,
                        ainda, personagens pertencentes à burguesia, sobretudo mulheres, a
                        respeito das quais se fala em casamento por conveniência e adultério. A
                        sujeição ao casamento e à religião conduze-as à traição. Já em Machado
                        de Assis temos esta temática, mas aqui com maior incidência.
    Dentro das características do drama de tese, do romance experimental, temos O Cortiço, onde as personagens passam por um processo de transformação.

Obras de Aluísio de Azevedo

 
  • Uma Lágrima de Mulher, romance, 1879
  • Os Doidos, teatro, 1879
  • O Mulato, romance, 1881
  • Memórias de um Condenado, romance, 1882
  • Mistérios da Tijuca, romance, 1882
  • A Flor de Lis, teatro, 1882
  • A Casa de Orates, teatro, 1882
  • Casa de Pensão, romance, 1884
  • Filomena Borges, romance, 1884
  • O Coruja, romance, 1885
  • Venenos Que Curam, teatro, 1886
  • O Caboclo, teatro, 1886
  • O Homem, romance, 1887
  • O Cortiço, romance, 1890
  • A República, teatro, 1890
  • Um Caso de Adultério, teatro, 1891
  • Em Flagrante, teatro, 1891
  • Demónios, contos, 1893
  • A Mortalha de Alzira, romance, 1894
  • O Livro de uma Sogra, romance, 1895
  • Pegadas, contos, 1897
  • O Touro Negro, teatro, 1898

Biografia de Aluísio de Azevedo

    Aluísio de Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís do Maranhão, a 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
    Aluísio de Azevedo era filho do vice-cônsul português, David Gonçalves de Azevedo, e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e o irmão mais novo do comediógrafo Artur Azevedo. A sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português, porém o temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. A seguir à separação, D. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo pela sociedade maranhense.
    Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo, revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar as personagens dos seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur, e matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Passou a ganhar a vida fazendo caricaturas para os jornais da época, como, por exemplo, O FígaroO MequetrefeZig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
    A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Aí, começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajudou a lançar e colaborou com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres se mostravam contrários a ela. Em 1881, Aluísio lançou O mulato, um romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. Todavia, a obra teve grande sucesso, foi bem recebida na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde regressar ao Rio de Janeiro, para onde embarcou em 7 de setembro de 1881, decidido a triunfar como escritor.
    Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar os seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu uma nova preocupação no universo do escritor: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e a sua exploração pelos imigrantes, principalmente os portugueses. Dessa preocupação resultariam duas das suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895, escreveu, sem interrupção, romances, contos e crónicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
    Em 1895, ingressou na carreira diplomática, momento em que praticamente encerra a sua atividade literária. Inicialmente, foi colocado em Vigo, na Espanha, seguindo-se o Japão, a Argentina, a Inglaterra e, por último, a Itália. Nesse período de tempo, passou a coabitar com D. Pastora Luquez, uma senhora de nacionalidade argentina, juntamente com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1. classe, sendo transferido para Assunção. A capital da Argentina, Buenos Aires, foi o seu último posto, e nela faleceu aos 56 anos, tendo sido aí sepultado. Seis anos depois, graças a uma iniciativa de Coelho Neto, o seu corpo foi transferido para S. Luís do Maranhão, onde lhe foi dada a sua última morada.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Análise do conto «Missa do Galo», de Machado de Assis

     Este conto foi escrito cerca de dez anos depois de «Noite de Almirante» e «A Cartomante», daí que a técnica deescrita seja diferente. O discurso de Machado de Assis ganha maior perfeição.
    Este conto tem características específicas que resultam da quase inexistência de ação; relata apenas as impressões de um momento, sentidas pelo narrador, que é também personagem. Por isso,é homodiegético e autodiegético e tem uma relação mais estreita com a gistória do que nos contos anteriores.
    Aquilo que o narrador conta passou-se em 1861-62, numa noite de Natal, quando ele tinha 17 anos. Não nos é dado o tempo que medeia entre o facto acontecido e a sua narração. Mas em 1861, o «eu» personagem era um estudante vindo da província para continuar os seus estudos na grande cidade. Era ingénuo e sem qualquer experiência de vida. O «eu-narrador», pelo contrário, é mais maduro e experiente. É esta oposição que marca o conto e torna difícil para nós percebermos se estamos a ver as coisas pela visão dapersonagem ou do narrador. Fica-nos a dúvida de saber se esta visão é uma visão ingénua da personagem de 17 anos ou umavisão irónica do narrador. Isto resulta sobretudo da sobreposição de dois tempos ao mesmo narrador. A duplicidade nunca é resolvida e o conto oscila sempre entre a ingenuidade e a ironia. Muitas vezes, o lembrar-se do que se passou é do narrador, mas a forma como se lembra é da personagem de 17 anos.

    Linguagem

    Machado de Assis é muito influenciado pelo Impressionismo: nunca nos dá os contornos muito claros daquilo que escreve e da linguagem que usa.
    O Impressionismo, no seu início, tendia para um certo cientificismo e racionalismo. Depois é que se começou a tornar mais subjetivista.
    Assis, ao não dar os contornos nítidos do que narra, é fiel à sensação que tem das coisas. O próprio tempo surge-nos como impressão e, por isso, os factos e as personagens não nos aparecem muito nítidos, tal como a impressão não é clara.
    O Impressionismo tinha um objetivo realista e hoje estamos muito longe do que era esse Impressionismo nas suas origens, quando era uma técnica usada na literatura, pintura e escultura.
    Alguns aspetos que resultam desse Impressionismo são:
  • relação texto-tempo-narrador;
  • o foco / núcleo não está no objeto, mas na forma como o objeto é recebido (ex.: descrição de Conceição é feita a partir da forma como foi apreciada naquela noite);
  • relação objeto-sujeito;
  • caracterização do narrador.
    Estes são os elementos que concorrem para o Impressionismo no discurso de Machado de Assis.

    Tempo

    O tempo é uma categoria muito importante. Temos vários tipos de tempo:
  • tempo histórico: muito curto (cerca de 30 minutos);
  • tempo narrativo: ocupado pelo diálogo entre Conceição e o eu-personagem, que é o núcleo do conto. É muito alongado, porque é movido pela dimensão psicológica, pelo ritmo da vida interior das personagens.
    O final do conto é rápido e frio. O contraste é importante, porque corresponde ao objetivo do narrador: alongar a cena que, para ele, é mais importante e referir o resto apenas de passagem. O diálogo é também muito importante e leva-nos a tirar algumas conclusões sobre Conceição, que desaparecem no dia seguinte.

    Personagens

        => Nogueira: veio do interior para o Rio de Janeiro; é um provinciano ingénuo, o que podemos deduzir do seu comportamento e discurso. Era ainda muito jovem, pois ainda lia Dumas, e romântico, pois gostava de romances como Moreninha.
    A atitude para com Conceição é de respeito, mas o que principalmente o caracteriza é a sua forte sugestibilidade, ou seja, tem uma personalidade facilmente impressionável.
    Há uma constante dualidade entre o narrador e o eu-personagem e esta manifesta-se quando se levantam hipóteses em relação a Conceição. É difícil saber se são do narrador ou do eu-personagem. Estas hipóteses são geralmente seguidas de refutação.
    A ligação entre as atitudes de Conceição e o estado de Nogueira é fundamental no conto. Ele vai passar por uma evolução gradativa em relação a Conceição:
  • "Sendo magra, tinha um ar de visão romântica...";
  • "Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular.";
  • "... naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.";
  • "E não saía daquela posição que me enchia de gosto...";
  • "... em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima.";
  • "Concordei... para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos".
    As atitudes de Conceição surgem como elemento que vai causar a modificação psicológica de Nogueira. Mas a personalidade desta figura acaba por se apagar perante Conceição.
    
        => Conceição: há um contraste entre uma situação e um comportamento inicial de Conceição e o seu comportamento naquela noite. Sofre uma total reviravolta.
    O seu aparecimento passa por algumas fases: rumor, passos e aparecimento. Dela são focados os comportamentos e atitudes que surpreendem, pelo hábito que Conceição tinha imposto. São também focados os elementos que intensificam a impressão que Nogueira tinha dela.
    O discurso dileto livre é um processo realista que Machado de Assis explorou ao máximo.
    No ambiente criado por ambos, o Impressionismo é fundamental. Só nos são dadas as impressões e daí da ideia de vazio que fica do diálogo de ambos. Ao momento de exaltação, segue-se um ambiente calmo, de "sono magnético", que é significativo.
    O que se passa na manhã seguinte mostra que o comportamento dele fora condicionado pelas atitudes dela. O final é contrastante, quer pelo tempo que ocupa, quer pela situação. O tempo psicológico que alongou a narrativa é encurtado no final.
    O próprio narrador não consegue explicar o que se passou naquela noite. São narrados de modo minucioso o diálogo e as impressões, mas as causas e as consequências nunca são explícitas.
    Em relação a Conceição, mostra-se que a sua passividade é diferente de incapacidade. Durante uma escassa meia hora, ela revelou a capacidade de sedução que uma mulher tem quando quer. Há, nesta personagem, o contraste entre um íntimo sedutor e insinuante e um exterior passivo.
    O conto pode resumir-se a isto: instante de intimidade entre duas pessoas, onde o comportamento novo de uma tem reflexos na atitude da outra.

        => Conclusões:

            1. Ironia e desconcerto: processos muito usados por Machado de Assis.

            2. Possibilidade de mutabilidade da pessoa humana (ex.: Genoveva).

            3. Sobreposição de personalidades.

            4. Insegurança moral e angústia que dela resultam (ex.: Cartomante, Camilo).

            5. Falsa sensação de perenidade em relação ao amor: o amor é tratado não na fase da
                 paixão, nem na fase calma, mas no meio termo. Para ele, a paixão é muito negativa.

            6. Gosto do que resta, da cinza. O próprio Impressionismo mostra o gosto por tudo o
                que fica: o amor passa, ficando apenas a angústia de quem foi magoado.

            7. Redução de valores: não há o jogo ou a exceção, mas aquilo que existe de facto. O
                diálogo, algo tão banal no conto "Missa do Galo", é bem aproveitado e nele se
                chega a encontrar uma certa singularidade. É a procura da valorização do que é 
                mínimo, que caracteriza Machado de Assis e o seu microrrealismo, que é precisa-
                mente o gosto pelo mínimo, pelo que está escondido. É a busca de essências no
                comum. Machado de Assis tirou o maior partido estético deste processo. O tempo psi-
                cológico, tão importante no conto, resulta precisamente da associação tempo-micro-
                realismo.

            8. Maleabilidade do tempo (tempo psicológico). As próprias reflexões sobre o tempo são
                o leit-motiv da sua obra; o tratamento do tempo influi de forma decisiva na estrutura
                dos seus contos.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Análise do conto «A Cartomante»

     Tema: traição / adultério, temas comuns em Machado de Assis e preferidos do Realismo.

    Espaço: Machado de Assis é um autor essencialmente urbano e a referência às ruas do Rio de Janeiro é importante, pela relação que se estabelece entre o espaço e as personagens:
        => Bota-Fogo, bairro rico onde habitam Vilela e Rita;
        => Largo da Carioca, onde ficam as repartições públicas;
        => Rua dos Barbonos, onde se davam os encontros de Camilo e Rita;
        => Outras ruas com altos índices de prostituição. As ruas e os ambientes ajudam a definir
              as personagens.

    Tempo: é uma categoria que tem grande importância. O tempo da narrativa apresenta-se em fragmentos.
    Quando o conto começa, estamos "numa sexta-feira de novembro de 1869", temos depois uma analepse rápida e a seguir retoma-se a história, que tem como centro o desfecho, importante pelo inesperado e pelo contraste que se estabelece, sobretudo em relação a Camilo: ao sair da casa da cartomante, ele vai confiante e esperançoso de que tudo acabará bem, mas o final é bem diferente e trágico:
            "Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror, ao fundo sobre o canapé,
            estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola e, com dos tiros de
            revólver estoirou-o morto no chão."
    O tempo pode ser cronológico: sucessão de eventos, que é possível inserir num tempo real e datar; ou psicológico, tempo filtrado pela vivência subjetiva das personagens.O tempo psicológico acaba por alongar o tempo narrativo. De facto, o tempo da história será mais longo se for condicionado por um tempo psicológico, quando os eventos são filtrados pela subjetividade das personagens. O tempo do discurso pode estar sujeito a mecanismos de analepses ou prolepses, escolhidos pelo autor, de acordo com as suas intenções.

    Ação: esta é uma categoria fundamental nos contos de Machado de Assis. Neste conto, a ação é mínima e muito simples; resume-se a pequenos passos:
                    - encontros de Camilo e Rita;
                    - ida de Camilo à cartomante;
                    - morte de Rita e Camilo.

    Personagens:
        => Rita: caracterizada indiretamente ou diretamente, de foma sintética. A descrição física não e muito pormenorizada: "dama formosa e tonta"; "era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa" (caracterização direta sintética).
    A caracterização é dada pelos comentários do narrador ou através de factos e atitudes:
  • é supersticiosa e talvez não muito culta;
  • comparada a uma serpente que envolve e não deixa escapar a presa. Isto coloca-a numa situação ambígua e podemos perguntar se não será ela a culpada de tudo que perdeu Camilo.
        => Camilo: a sua caracterização é feita ao longo do conto, envolvido por uma longa ironia: é uma pessoa sem crenças, ingénua que se deixa envolver e acomodar e não acredita em nada. Todas as características são enunciadas com grande ironia e é este facto que o leva a seguir as pisadas de Rita, consultando também a cartomante. É o medo que o leva a isto e depois sente o sossego. Há uma contradição só possível no espírito fraco e ingénuo de Camilo.

        => Vilela: praticamente não é retratado, mas é da maior importância, pois é a sua ação que marca o final do conto. Resolve as coisas de modo prático e frio: mata os dois amantes.

        => Cartomante: é a personagem mais enigmática e nela está a maior ironia: Rita e Camilo não estavam sossegados em relação à sua ligação. Então, Rita resolve ir à cartomante e fica sossegada e segura. O mesmo se passa com Camilo, mas a sua segurança élogo confrontada com a morte de ambos. Tudo o que Machado de Assis pensa do amor está representado nesta mulher: oposição entre segurança e morte. Ela é a síntese da crençaque constitui a crítica do autor.

    Machado de Assis é muito cético em relação à religião e ao amor: o amor faz as pessoas perderem totalmente a razão. Assim se integram no Realismo. O seu realismo resulta ainda de:
  • uso de frases curtas e frias;
  • objetividade no uso do vocabulário;
  • linguagem filosófica e sentenciosa, sobretudo no campo amoroso;
  • linguagem também irónica: destrói todos os mitos do amor com a ironia, que se acentua no final do conto, marcado pelo inesperado e ironia, aspetos fundamentais em Machado de Assis.
    Há também crítica social à instituição das cartomantes, mas sobretudo crítica à segurança resultante da ida à cartomante. O objetivo mais eminente de Machado de Assis não parece ser a crítica, mas antes mostrar um sentimento pessoal perante as situações.

Análise do conto «Noite de Almirante»

     O discurso de Machado de Assis pauta-se pela ironia, pela coloquialidade na linguagem e, em relação ao enredo, há um clima de desconcerto. Este desconcerto vive de uma sucessão de contrastes. Deolindo e os colegas criam uma série de expectativas, que geram uma certa esperança, devido à jura de fidelidade. O clima de expectativa é aumentado pelo juramento.
    As expectativas criadas, o clima de segurança são radicalmente alterados. A primeira mudança revela-se com o anúncio que faz a velha Inácia, de que Genoveva tinha ido viver com José Diogo, logo todas as expectativas são goradas.
    Outro contraste apresenta-se no seguinte: quando recebe esta notícia, surge nele um desejo de vingança. Este desaba quando encontra Genoveva e ela o recebe, facto que cria de novo esperanças.
    O tema é a traição a um sentimento, a uma jura / um juramento, que aparece filtrada por um desconcerto. O tema da traição não é novo, mas torna-se invulgar pelos termos em que é abordado. Isto faz do conto um conto invulgar - aqui reside a sua especificidade.
    De que resulta o desencanto?
        = contraste
        = ironia
        = comentários do próprio narrador, que vêm do seu próprio estatuto.

    Qual o tipo de narrador?

    É difícil caracterizá-lo. Usa a primeira pessoa e participa do discurso, conhecendo a história. Mantém-se, no entanto, a um nível exterior, o que lhe confere uma certa objetividade perante aquilo que narra. Mas esta objetividade perde-se quando fala na primeira pessoa. Temos sempre dúvidas quanto ao tipo de narrador. Mas o tipo de narrador e o seu discurso são causas do desconcerto.
    A ironia é subtil, nomeadamente quanto ao comportamento de Genoveva: "Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras." Ela não se apercebe de que está a provocar Deolindo. O seu comportamento é comparado às pedras.

    Estrutura do conto

    Grande parte do conto é ocupada com a criação de expectativas. De que modo se criam? Com o juramento, com os comentários dos colegas, com a esperança de Deolindo em relação à jura. Isto cria um clima de expectativas, que são ocupadas com uma analepse, que mostra como o relacionamento de Genoveva e Deolindo anteriormente era intenso. É de notar a distância que aparece entre convenções e atitudes e expectativas (agente: Deolindo) e quebras (agente: Genoveva).
    Há uma grande diferença entre Deolindo e Genoveva: um simboliza as convenções, outro as atitudes. O principal fator na criação de expectativas é o juramento, que dá uma certa dimensão em relação aos dois.
    A noção de juramento no contexto acaba por ser o núcleo do conto. Neste domínio, o juramento é o conjunto de convenções que se sobrepõem a sentimentos pré-existentes. Exige-se através do juramento algo que não existe.
    Será que se pode exigir o juramento de uma coisa como o amor? Existirá, em matéria afetiva, a exigência de cumprir algo?
    Esta questão provoca um certo clima de desconcerto entre uma pessoa que faz a jura e espera tudo (Deolindo) e outra que ignora totalmente (Genoveva). Há, pois, um desencontro de valores.
    O núcleo do conto é a validade do juramento num campo amoroso / afetivo.
    Machado de Assis é negativo em relação ao amor: não acredita em matéria afetiva, na relação amorosa entre duas pessoas.
    De certo modo, o conto acaba por ser uma alegoria. Recorre-se a convenções que, a todo o momento, são destituídas pela própria evolução e pela impossibilidade de exigências no campo afetivo. O conto representa uma história que tem como objetivo definir a inutilidade de recorrer a convenções num campo sujeito a modificações.
    Há, no conto, momentos determinados:
  1. Criação de expectativas, com as motivações de Deolindo.
  2. Quebra que começa com o diálogo de Deolindo com a velha Inácia. Daqui nasce o sentimento de vingança.
  3. No diálogo com Genoveva, há o reativar de esperanças que caem novamente por terra.
    Não há, em Machado de Assis, o amor-paixão: o que fica são cinzas, desilusão, indiferença, algo que não vale a nada.
    O conto vive quando há uma quebra de expectativas. O momento do conto em que há mais vivência é quando Deolindo recebe a notícia acerca de Genoveva por Inácia.

1.º momento:
    Deolindo surge confiante, facto que lhe confere uma caracterização positiva: na página 179, descreve-se Deolindo confiante; na página 185, Deolindo surge na praia cabisbaixo e triste.
    Há um contraste entre a imagem de Deolindo e Genoveva. Ela está inatingível: passa pelos acontecimentos e não os sente. Não há propriamente uma caracterização física, nem descrições, pois não são necessárias para a economia da história. A analepse é necessária à criação de expectativas. É o juramento que dá uma certa segurança e que justifica a atitude confiante de Deolindo.

2.º momento:
    Representa o primeiro desconcerto causado pela revelação da velha Inácia. Na sua descrição, há uma economia de meios. Inácia é importante, porque representa o bom senso (que Deolindo também partilha), a norma e a convenção.

3. º momento:
    Se o segundo momento representa o primeiro desconcerto, o 3.º é a totalidade do desconcerto. São as atitudes de Genoveva que funcionam como núcleo de desconcerto, opondo-se ao valor da convenção.
    Deolindo deixa a velha Inácia, que se sente culpada pela notícia que lhe deu. Apesar de tudo, o autor utiliza uma certa imagética romântica, com um objetivo irónico.
    Note-se a importância do acaso, que coloca Genoveva à janela no momento em que Deolindo passa e faz com que ela um dia acorde a gostar de outro. A calma e simplicidade de Genoveva desarmam Deolindo quando se encontram. Os comentários do narrador são objetivos. Há um crescer de esperança e emitir de raiva.

4.º momento:
    O último momento do conto corresponde ao crescer da esperança e ao diminuir da raiva. Mas cai novamente e o que fica é a desilusão. Isto advém da análise psicológica, característica fundamental de Machado de Assis. A análise psicológica é subtil, fundamental e não é explícita como na Senhora, de Alencar; é dada pelas atitudes e palavras das personagens. O desenvolvimento psicológico de Deolindo resulta da mistura do pensamento do narrador com os de Deolindo. Esta mistura é um processo inovador em Machado de Assis, constituindo o chamado discurso indireto livre (não se sabe quando são os pensamentos do narrador e da personagem). Este discurso está ao serviço da análise psicológica.
    A personagem que marca mais o desconcerto é Genoveva. A base de Deolindo é a convenção. A atitude frontal de Genoveva desarma Deolindo e o seu desejo de vingança.
    O narrador caracteriza Genoveva: pela simplicidade, pelo cinismo, insolência e pela leviandade. Estes são os seus predicados. É caracterizada de forma negativa. É realista em matéria de convenções e sentimentos; tem o valor verdadeiro das coisas: as coisas são o que são e não o que pensamos. Assume uma posição de descrédito em relação às convenções. Machado de Assis é um realista sobre as convenções.
    A única vitória que Deolindo tem é a sensação de ter dado um presente a Genoveva: os brincos. A outra verifica-se quando conta as suas histórias a Genoveva, que aos olhos da vizinha faz dele um pequeno herói. O seu último argumento é a chantagem emocional: matar-se. Pas perante a frontalidade de Genoveva nem isso tem efeito.

    Conclusões do conto:

    1. Inutilidade de convenções e palavras, perante um campo em que tudo é inconstante.

    2. Inocência de ambos: agem em coerência com o que sentem, com os valores que enformam a sua mentalidade. Deolindo acredita na convenção e espera que ela se cumpra. Genoveva não acredita na possibilidade de se exigir algo dessa convenção. Deolindo está mais próximo da convenção social, representada pelo juramento, pela mentira (final do conto). Genoveva representa a impossibilidade de obedecer a convenções. Ela não obedece a uma moral. Ela é amoral e não imoral, já que não reconhece a moral. Está perto da natureza, obedece a circunstâncias. Natureza opõe-se a convenção e não abdica dos seus sentimentos a favor das convenções.
    Uma característica de Machado de Assis em relação ao amor é a inutilidade de convenções e o tom cinza que fica.
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