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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Caracterização de Bertoleza

1. Origem e Condição Social

  • Bertoleza é uma mulher negra e escravizada, descendente direta de africanos escravizados, que simboliza a opressão e a exploração do sistema escravocrata.
  • A sua trajetória como escrava é marcada pelo trabalho árduo, desumanização e falta de acesso a qualquer direito básico
  • Enganada com a promessa de liberdade, acredita poder comprar a sua alforria com o dinheiro acumulado após anos de trabalho, com o apoio de João Romão, mas descobre mais tarde que ainda é legalmente escrava e que foi intencionalmente ludibriada por ele.
  • A sua condição social é caracterizada pelos seguintes traços:

·         Subalternidade e exploração:

·         Bertoleza vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais, sendo retratada como uma figura subalterna, vítima de exploração contínua, seja como escrava de direito ou como trabalhadora livre de facto.

·         Apesar de acreditar ter conquistado algum grau de independência, permanece submetida à opressão de João Romão, que usufrui do seu trabalho sem oferecer contrapartidas justas.

·         Trabalho excessivo: a sua trajetória é marcada pelo trabalho exaustivo, nomeadamente como cozinheira e responsável por diversas atividades que sustentam os empreendimentos do amante.

·         Ausência de direitos:

·         A personagem acredita ser livre, porém, na realidade, não possui autonomia real nem proteção social, pois depende de João Romão, o que a coloca numa posição de vulnerabilidade extrema, tanto emocional como material.

·         Relação com o sistema escravocrata e o racismo estrutural:

·         Formalmente, a escravatura está próxima do seu fim, todavia a sociedade perpetua a marginalização de pessoas negras como Bertoleza, que continuam sujeitas a relações de trabalho similares à escravidão.

·         Na prática, ela é duplamente explorada – como mulher e como negra –, sendo excluída do progresso que ajuda a construir.

·         Desamparo social:

·         Bertoleza não encontra qualquer suporte em nenhuma estrutura da sociedade: não tem familiares ou membros da comunidade que se preocupem com ela e a protejam; o sistema legal apenas reforça a sua condição de mulher explorada, permitindo que João Romão a denuncie como escrava fugitiva.

  • Vive numa situação de extrema subalternidade, tanto no âmbito social quanto nas relações pessoais.

2. Aparência Física

  • Cor da pele:
    • Bertoleza é descrita como uma mulher negra, o que, no contexto da obra, indicia a sua origem e condição social marginalizada.
  • Constituição física:
    • É uma mulher robusta e corpulenta, com um corpo moldado pelo trabalho árduo e constante.
    • A sua força física constitui um reflexo das tarefas pesadas que desempenha diariamente, como cozinhar, transportar pesos e tratar do cortiço.
  • Marcas do trabalho:
    • As suas mãos são grossas e calejadas, evidenciando anos de serviço braçal.
    • A pele apresenta cicatrizes e rugosidades, sinais claros da vida de esforço incessante e de privação.
  • Traços faciais:
    • Os seus eus traços são descritos como ásperos e marcantes, espelhando o sofrimento que pauta a sua vida.
    • Os olhos, cansados e fundos, transmitem um misto de resignação e dureza, resultado das dificuldades enfrentadas.
  • Vestuário:
    • Bertoleza geralmente aparece vestida com roupas simples, pobres e gastas, adequadas à sua condição social e às funções que exerce no dia a dia.
    • As roupas, frequentemente, estão sujas ou marcadas pelo trabalho na cozinha, reforçando a sua associação com o esforço físico constante.
  • Postura:
    • A sua postura demonstra cansaço crónico, refletindo o peso literal e figurativo que marca a sua existência.
    • Apesar disso, há na sua figura uma energia prática, característica de quem está habituada a viver para o trabalho.
  • Cabelos:
    • Os cabelos são crespos, frequentemente presos de maneira funcional, sem qualquer preocupação estética, dado o foco da sua vida ser a sobrevivência e o trabalho.
  • Idade aparente:
    • Apesar de não ser idosa, Bertoleza aparenta ser mais velha do que realmente é, pois o trabalho exaustivo e as condições adversas a que sempre esteve sujeita desgastaram-lhe a aparência.
    • A expressão do rosto evidencia uma vida de privações e sacrifícios.
  • Em suma, o retrato físico de Bertoleza não é apenas um momento descritivo do romance, mas também uma forma de simbolismo naturalista, visto que o seu corpo é apresentado como uma extensão da sua condição social: uma ferramenta explorada até ao limite. Cada detalhe físico reforça a ideia de que atua como representante da classe trabalhadora e do grupo social marginalizado pela sociedade escravocrata e patriarcal da época

3. Caracterização psicológica

1. Trabalhadora e abnegada: É um símbolo da classe trabalhadora, sendo incansável nas suas funções e no seu apoio ao desenvolvimento do cortiço.


2. Resignada e submissa

·         Bertoleza é profundamente resignada ao seu destino, aceitando sem resistência explícita as adversidades e opressões que enfrenta. Por outro lado, aceita passivamente as circunstâncias da sua relação com João Romão, deixando-se explorar tanto como companheira quanto como trabalhadora.

·         Sua submissão está enraizada no condicionamento social e histórico, típico de uma sociedade escravocrata que negava a agência de pessoas como ela.

·         Confia cegamente em João Romão, mesmo quando ele a explora e manipula, evidenciando sua falta de perspetivas de autonomia emocional.


3. Forte e resiliente

·        Apesar de ser submissa, Bertoleza demonstra uma força interior marcante, enfrentando com coragem as dificuldades da vida e aceitando sua condição sem revoltas explícitas.

·        A sua capacidade de suportar o trabalho árduo, os maus-tratos e a exclusão social é um testemunho de sua resiliência psicológica.

·        Essa força, no entanto, é muitas vezes canalizada para o trabalho incessante e não para questionar ou resistir à exploração.


4. Ingénua e vulnerável

·         Bertoleza é apresentada como uma personagem ingénua, especialmente na sua relação com João Romão, em quem confia, mesmo sendo vítima da sua ambição desmedida.

·         Acredita ter alcançado a liberdade e vê no companheiro um protetor, sem perceber que ele a explora para alcançar os seus próprios objetivos.

·         A sua vulnerabilidade emocional impede-a de ver a traição iminente e a manipulação contínua de que é vítima por parte de João Romão.


5. Dedicada e com espírito de sacrifício

·         Bertoleza é extremamente dedicada ao trabalho e à relação com João Romão, muitas vezes em detrimento de si mesma.

·         O sacrifício pessoal é uma característica central da sua personalidade, pois entrega-se completamente ao objetivo de ajudar João Romão a prosperar.

·         Essa dedicação cega faz dela uma personagem trágica, pois tudo o que constrói acaba sendo usado contra si.


6. Solitária e Carente Afetivamente

·         A vida de Bertoleza é marcada pela solidão, dado que não tem família ou apoio comunitário, o que a torna emocionalmente dependente de João Romão.

·         A sua carência afetiva é evidente na maneira como se agarra à relação com ele, vendo-o como sua única fonte de estabilidade e segurança.


7. Grata

·         Bertoleza nutre um sentimento de gratidão ilusória em relação a João Romão, acreditando que ele a ajudou a conquistar sua liberdade.

·         Essa gratidão é manipulada pelo companheiro para a manter submissa, alimentando um ciclo de exploração emocional e material.


8. Medrosa e Desamparada

·         Ao longo da narrativa, Bertoleza demonstra um medo profundo de perder o pouco que acredita ter conquistado, como, por exemplo, a sua liberdade e a relação com João Romão.

·         Esse medo deixa-a desamparada, especialmente quando descobre que foi enganada sobre a sua alforria.


9. Digna: dignidade Trágica

·         Mesmo sujeita à submissão e ao sofrimento, Bertoleza mantém uma certa dignidade trágica, especialmente na sua decisão final de tirar a própria vida.

·         O suicídio é um ato de desespero, mas também de resistência, pois ela recusa-se a ser recapturada como escrava e a perder sua humanidade.


10. Alienada e sem Consciência Crítica

·         Bertoleza é alienada em relação à própria condição de exploração, não desenvolvendo uma consciência crítica sobre a sua situação.

·         Essa alienação reflete o sistema opressor em que vive, que não oferece meios ou possibilidades para que questione o seu lugar na sociedade.


11. Simbolismo Psicológico

·         Psicologicamente, Bertoleza representa o arquétipo da mulher negra escravizada e explorada, cuja força e sacrifício são usados por outros para prosperarem.

·         A sua trajetória psicológica reflete a crítica naturalista à sociedade brasileira, mostrando como os indivíduos mais vulneráveis eram esmagados por um sistema opressor e desumano.


Em suma, Bertoleza é uma mulher forte, porém aprisionada pelas circunstâncias históricas e sociais. Alguns traços, como a submissão, a dedicação e a ingenuidade tornam-na uma personagem profundamente trágica, enquanto a força e a dignidade perante o sofrimento a transformam num símbolo da exploração e resistência das classes oprimidas.


4. Relação com João Romão

1. Início da Relação

·         A relação de Bertoleza com João Romão começa de forma utilitária:

    • João Romão oferece ajuda a Bertoleza para comprar a sua suposta alforria, consolidando um vínculo que se baseia na dependência emocional e material.
    • Para Bertoleza, João Romão representa inicialmente uma possibilidade de liberdade e estabilidade, o que faz com que confie nele cegamente.

·         Já para o amante, Bertoleza é um instrumento de trabalho e um meio para alcançar os seus objetivos económicos.


2. Dependência e Submissão

·         Submissão de Bertoleza:

    • Bertoleza submete-se completamente a João Romão, tanto emocional quanto fisicamente, tornando-se sua companheira e trabalhadora incansável.
    • Acredita que deve lealdade a João Romão por ter "comprado" a sua liberdade, mesmo que isso a mantenha num estado de constante exploração.

·         Dependência emocional:

    • A solidão de Bertoleza leva a que crie uma relação afetiva com João Romão, mesmo que ele não demonstre reciprocidade.
    • O homem torna-se o centro da sua vida, consolidando a sua dependência emocional em relação a ele.

3. Exploração e Desequilíbrio de Poder

·         João Romão vê Bertoleza como uma ferramenta de trabalho, explorando a sua força e dedicação para expandir o seu património. Ela trabalha sem descanso, seja na cozinha, no comércio ou na manutenção do cortiço, contribuindo diretamente para o enriquecimento de João Romão.

·         Há um desequilíbrio extremo de poder na relação: João Romão detém o controle económico, emocional e até legal sobre Bertoleza, manipulando-a sem oferecer qualquer contrapartida justa.


4. Ausência de Amor Verdadeiro

·         A relação não é baseada em amor ou afeto recíproco:

    • Bertoleza nutre sentimentos de gratidão e apego emocional, acreditando num vínculo afetivo com João Romão.
    • João Romão, por outro lado, nunca demonstra amor ou cuidado genuíno por ela, tratando-a como um recurso útil para atingir os seus objetivos materiais.

5. Traição e Abandono Final

·         A traição de João Romão é o clímax da relação:

    • Quando toma consciência de que Bertoleza representa um obstáculo para as suas ambições de ascensão social, denuncia-a às autoridades como escrava fugitiva, para se livrar dela e consolidar um casamento com Zulmira, que lhe garante entrada na elite social.
    • A traição revela a natureza calculista e desumana de João Romão, que descarta Bertoleza quando deixa de ser útil para os seus planos.

6. Papel Simbólico da Relação

·         Simbolismo de exploração:

    • A relação entre os dois é uma metáfora das dinâmicas de exploração de classe, raça e género.
    • João Romão representa o capitalista ambicioso, enquanto Bertoleza simboliza a classe trabalhadora e as mulheres negras exploradas no Brasil do século XIX.

·         Crítica à hipocrisia social:

    • A relação expõe a hipocrisia de uma sociedade que permite a ascensão económica de João Romão, mas às custas da exploração e do sofrimento de pessoas como Bertoleza.

Em suma, a relação entre Bertoleza e João Romão é profundamente desigual, marcada pela exploração, submissão e ausência de reciprocidade emocional. Para João Romão, a escrava é apenas um meio para satisfazer as suas ambições, enquanto, para ela, ele representa segurança e uma esperança ilusória. O desfecho trágico da relação ressalta as injustiças sociais e raciais da época, alinhando-se com a crítica naturalista presente em O Cortiço.


5. Papel no Desenvolvimento do Cortiço

1. Trabalhadora

a.       Trabalho físico e incansável:

a.    Bertoleza é a principal força de trabalho na vida de João Romão, desempenhando tarefas essenciais como cozinhar, lavar, limpar e cuidar da organização geral.

b.   Ela assume também responsabilidades na manutenção do comércio que abastece o cortiço, garantindo o sustento e o lucro que permitem a João Romão expandir os seus negócios.

b.      Instrumento de acumulação de capital:

a.    O trabalho árduo e praticamente gratuito de Bertoleza é uma das bases da prosperidade de João Romão.

b.   Ela representa a classe trabalhadora explorada, cujo esforço e sacrifício alimentam o crescimento do patrimônio alheio.

  1. Estímulo para a ambição de João Romão

a.    Bertoleza, ao unir-se a João Romão, contribui diretamente para que ele concentre a energia e ambição no desenvolvimento do cortiço.

b.    O seu trabalho permite que João Romão poupe recursos e os invista na expansão do cortiço, como a construção de novas casas para arrendar e a ampliação dos negócios.

c.    Figura que facilita o empreendedorismo de João Romão: enquanto Bertoleza se ocupa com as tarefas quotidianas, ele pode dedicar-se exclusivamente à acumulação de riqueza.

3.         Símbolo de continuidade e estabilidade do cortiço

a.    Bertoleza é um dos pilares do funcionamento cotidiano do cortiço. Por um lado, a sua presença garante a alimentação dos trabalhadores e moradores, fortalecendo a dinâmica de produção e sobrevivência no espaço. Por outro, representa a força constante que sustenta a vida no cortiço, mesmo no meio às adversidades e à pobreza.

b.    Estabilidade invisível: embora seja fundamental no desenrolar da narrativa, Bertoleza permanece invisível para o público, sendo entendida apenas como uma peça funcional no mecanismo do cortiço.

4.       Papel no contexto social do cortiço

a.    Bertoleza, como mulher negra e subalterna, simboliza o elo entre a base explorada e os interesses dominantes.

b.    A sua presença reforça a crítica social de O Cortiço, mostrando como a ascensão econômica de figuras como João Romão depende da exploração de trabalhadores como Bertoleza.

  1. Desencadeadora do desfecho da narrativa

a.    O papel de Bertoleza não se limita ao crescimento inicial do cortiço, mas também influencia o desfecho trágico da narrativa. Por um lado, quando João Romão decide traí-la, entregando-a às autoridades como escrava fugitiva, a atitude dele reflete a dinâmica de exploração levada ao extremo. Por outro, esta atitude, que culmina no suicídio de Bertoleza, simboliza o caráter predatório do sistema social e econômico do cortiço.

6.       Simbolismo de classe e raça no desenvolvimento do cortiço

a.    Bertoleza é um símbolo da mão de obra explorada, que sustenta tanto o crescimento material do cortiço quanto a crítica social naturalista de Aluísio Azevedo.

b.    Representa também a confluência das opressões de raça, género e classe, sendo a figura que trabalha incessantemente para um sistema que a descarta quando deixa de ser útil.

c.    A relação entre Bertoleza e o cortiço é uma analogia direta com o funcionamento do capitalismo nascente no Brasil: a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho e o sacrifício dos mais pobres.

7.       Impacto final no cortiço

a.    O suicídio de Bertoleza tem um impacto simbólico no cortiço:

                                           i.          marca o ponto culminante da denúncia social de Aluísio Azevedo, evidenciando o custo humano do progresso material;

                                         ii.         o seu sacrifício final expõe as injustiças do sistema social e encerra a trajetória de uma personagem que deu tudo, mas não recebeu nada em troca.

Em suma, o papel de Bertoleza no desenvolvimento do cortiço é essencial tanto do ponto de vista prático quanto simbólico. Ela é a força invisível que sustenta a prosperidade económica de João Romão e a estrutura quotidiana do cortiço. No entanto, a sua trajetória também denuncia a exploração de classe, raça e género, expondo as desigualdades sociais e económicas que marcam o romance. A sua presença reforça a crítica naturalista ao sistema opressor que subjuga os mais vulneráveis para alimentar o progresso de poucos.


6. Simbolismo

a) Símbolo de exploração

·         Bertoleza é um símbolo vivo da exploração:

    • Trabalha incansavelmente sem receber benefícios proporcionais ao seu esforço.
    • A sua dependência emocional e económica de João Romão mantém-na numa situação de servidão disfarçada.

·         Representa o sistema socioeconómico desigual que caracteriza a sociedade brasileira da época, onde a riqueza de poucos é construída sobre o trabalho de muitos.

·         É uma metáfora para a opressão das classes mais baixas, destacando a desigualdade social e racial da época

b) Figura de sacrifício

·         A sua vida é marcada pelo sacrifício constante: sacrifica a liberdade, a saúde e, finalmente, a vida em benefício de João Romão e do sistema que ele representa.

·         O suicídio de Bertoleza é um ato final de resistência e tragédia, destacando a ausência de alternativas reais para os oprimidos.

c) Símbolo da Transição Histórica

·         Bertoleza reflete a transição histórica entre o sistema escravocrata e o trabalho assalariado precário no Brasil:

    • Embora formalmente livre, continua a viver como escrava, subordinada a um sistema que perpetua a desigualdade racial e económica.
    • A sua figura denuncia o facto de a abolição da escravatura não ter trazido mudanças imediatas para a população negra e trabalhadora.
    • A sua trajetória reflete a realidade das mulheres negras escravizadas no Brasil do século XIX.

7. Representatividade social

a) Representação da mulher negra e escravizada

·         Bertoleza simboliza a condição das mulheres negras no Brasil pós-escravidão, ainda profundamente marcadas pela exploração e pela marginalização.

·         Apesar de acreditar estar livre, a sua vida reflete uma escravidão velada, onde o trabalho incessante e a submissão continuam a definir a sua existência.

·         Constitui uma síntese das opressões cruzadas de raça, género e classe, sendo relegada para o papel de servidora e trabalhadora incansável, sem direitos ou reconhecimento.

b) Retrato da classe trabalhadora

·         Como parte da classe trabalhadora explorada, Bertoleza é o motor que impulsiona o desenvolvimento do cortiço e a ascensão económica de João Romão.

·         Representa a massa de trabalhadores anónimos que sustentam o progresso material da sociedade, mas que são descartados quando deixam de ser úteis, recordando, por exemplo, a figura de Bailote em Aparição, romance de Virgílio Ferreira.

c) Exclusão social e invisibilidade

·         Bertoleza vive à margem da sociedade, sem acesso a qualquer suporte institucional ou comunitário.

·         A sua condição reflete a exclusão estrutural de mulheres negras, que, mesmo após o fim da escravidão formal, continuam presas a relações de trabalho abusivas e desiguais.

d) Crítica social:

i) Crítica ao racismo estrutural

·         Bertoleza é um símbolo do racismo estrutural:

o    A sociedade retratada no romance é construída sobre a desumanização, a exploração e a exclusão de pessoas negras.

o    A exploração e traição final de Bertoleza reforçam a ideia de que as relações raciais permanecem baseadas na opressão e na desigualdade.

ii) Desigualdade de género

·         Além de ser negra e pobre, Bertoleza é uma mulher, o que a coloca em uma posição de vulnerabilidade ainda maior.

·         A sua relação com João Romão é marcada pela dependência e pelo abuso, refletindo as dinâmicas de género características de uma sociedade patriarcal.

iii) Representação da exclusão económica

·         A personagem simboliza a classe trabalhadora que vive em condições miseráveis, enquanto os frutos de seu trabalho enriquecem uma elite económica, como João Romão.

·         A sua exploração reflete a crítica naturalista ao capitalismo nascente, onde os mais pobres são reduzidos a ferramentas para o lucro.


8. Desfecho trágico

1. Contexto do suicídio

·         O suicídio de Bertoleza ocorre após João Romão, na sua busca desenfreada por ascensão social, decidir entregá-la às autoridades como escrava fugitiva.

·         Ao perceber que será capturada e devolvida à condição formal de escrava, Bertoleza opta por se suicidar.

·         A cena final é carregada de dramatismo e extremamente simbólica, refletindo o fim de uma existência marcada pela exploração e desamparo.

2. Significado imediato do suicídio

a) Resistência final

·         O ato de suicídio pode ser interpretado como a última forma de resistência de Bertoleza:

o   Ao cometer suicídio, ela recusa submeter-se novamente à condição de escrava, preservando a dignidade frente à brutalidade do sistema opressor.

o   Por outro lado, o suicídio configura um gesto de desespero, mas também de afirmação da sua humanidade diante de uma sociedade que a reduzia a uma mercadoria.

b) Desamparo Absoluto

·         O suicídio evidencia o desamparo total de Bertoleza, que, ao longo da narrativa, é explorada e traída por aqueles em quem confia.

·         Sem família, comunidade ou apoio social, encontra-se completamente isolada, sem alternativas para escapar ao seu destino trágico.

3. Simbolismo social do suicídio

a) Denúncia da exploração

·         A morte de Bertoleza é o culminar da crítica social do romance, simbolizando os custos humanos da exploração.

·         Ela é o retrato do trabalhador que, após ter a sua força física e emocional explorada até o limite, é descartado quando deixa de ser útil.

b) Reflexo do Racismo e da Escravidão

·         O suicídio de Bertoleza escancara a permanência do sistema escravocrata, mesmo após a sua abolição formal: a morte simboliza como as estruturas racistas e opressoras ainda aprisionam as pessoas negras, negando-lhes qualquer possibilidade de liberdade ou dignidade.

·         É um ato de denúncia contra a desumanização promovida pelo racismo estrutural da época.

c) Crítica ao individualismo e à ganância

·         O desfecho também reflete a crítica ao individualismo e à ganância, personificados em João Romão:

o   Ele ascende e enriquece à custa de Bertoleza e, no final, não hesita em a sacrificar para atingir os seus objetivos sociais e económicos.

o   O suicídio expõe a brutalidade das relações humanas no contexto de um sistema marcado pela ambição desmedida e pela falta de solidariedade.

4. Relação com o Naturalismo

a) Determinismo e Tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é coerente com a perspectiva naturalista do romance:

o   A personagem é apresentada como vítima das forças sociais e históricas que determinam o seu destino, como o racismo, o machismo e a exploração económica.

o   A sua morte é inevitável dentro desse contexto, reforçando a ideia de que os indivíduos mais vulneráveis não têm escapatória no sistema opressor.

b) Animalização e Desumanização

·         Ao longo do romance, Bertoleza é frequentemente descrita de forma desumanizada, quase como uma extensão das máquinas e do trabalho.

·         O seu suicídio marca a rutura final com essa lógica: ao tirar a própria vida, ela recupera uma dimensão humana, recusando-se a continuar a ser tratada como um objeto.

5. Impacto narrativo e simbólico

a) Clímax da tragédia

·         O suicídio de Bertoleza é o ponto culminante da tragédia do romance, encerrando a sua trajetória com um gesto de forte impacto emocional.

·         Serve como uma espécie de grito silencioso contra a injustiça, denunciando as condições desumanas impostas aos mais vulneráveis.

b) Reflexão sobre a sociedade

·         A morte de Bertoleza força o leitor a confrontar as desigualdades e violência estruturais que permeiam a sociedade retratada na obra.

·         Ela é uma metáfora do sistema que destrói aqueles que mais contribuem para o seu funcionamento, mas que nunca recebem o devido reconhecimento ou justiça.

Em suma, o suicídio de Bertoleza é uma das cenas mais poderosas e simbólicas de O Cortiço. Ele representa a denúncia final de Aluísio Azevedo contra o racismo, a exploração económica e a desumanização das classes trabalhadoras, bem como o desamparo total dos oprimidos na sociedade da época. Para Bertoleza, é tanto um ato de desespero quanto de resistência, marcando o desfecho inevitável de uma vida de opressão. A sua morte destaca a injustiça de um sistema que a explorou até o limite e, finalmente, a descartou.

Análise da cantiga "Abadessa, oí dizer", de Afonso Anes de Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso Anes de Cotom, é constituída por quatro sétimas, num total de 28 versos de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático ABBACCA, e octossílabos. Nela, encontramos outra sátira dirigida a uma abadessa não identificada.
    Assim, o sujeito poético apresenta-se como recém-casado e órfão [“ogano [há pouco tempo] casei” – v. 5; “nem padre nem madre nom hei.” – v. 13) e dirige-se à abadessa, solicitando-lhe que lhe ensine as técnicas do amor / sexo, pois tinha ouvido dizer que ela era muito conhecedora dessa arte: “Abadessa, oí dizer / que érades mui sabedor / de tod’o bem; e, por amor / de Deus, querede-vos doer / de mim, que ogano casei, / que bem vos juro que nom sei / mais que um asno de foder.” Na última, tanta é a experiência e o conhecimento da abadessa na matéria que o trovador alvitra que as mulheres inexperientes poderiam também recorrer às aulas da religiosa: “e per ensinar a molher / coitada, que a vós veer, / senhor, que nom souber ambrar” (vv. 26 a 28). A expressão “de tod’o bem” indicia o vasto conhecimento da abadessa acerca das práticas sexuais.
    A segunda estrofe repete o conteúdo da primeira: o sujeito lírico ouvir falar acerca das habilidades e da experiência da mulher (“Ca me fazem en sabedor / de vós que havedes bom sem / de foder e de tod’o bem”), por isso faz-lhe um pedido intrigante: “ensinade-me mais, senhor, / como foda, ca o nom sei” (vv. 11-12). Estas palavras parecem insinuar que o trovador já teria tido algum tipo de experiência sexual com a abadessa. Além disso, coloca-se numa posição de inferioridade, pois argumenta que não teve pai nem mãe que o ensinassem, daí a sua falta de conhecimento. Note-se o recurso à expressão “fic’i pastor”, conferindo um tom dramático e, simultaneamente, irónico ao verso, ao afirmar que “fica por aí como um garoto inexperiente”.
    Na terceira cobla, o sujeito poético faz uma proposta à mulher: se aprender com ela o “mester [a arte] de foder” (o calão cru é um traço da linguagem da cantiga), toda a vez que fizer sexo, lembrar-se-á da abadessa e rezará um Pai Nosso por ela: “cada que per foder direi / Pater Noster e enmentarei / a alma [e rezarei pela alma] de quem m’ensinou.” Atente-se na presença da oração subordinada adverbial condicional, que introduz a condição fundamental: as lições da abadessa. Dito de outra forma, o «eu» pede-lhe que lhe ensine o que há de fazer à recente esposa, pois é muito experiente nas artes do sexo, por oposição à sua inexperiência na matéria (antítese experiência / inexperiência). De cada vez que o fizer, ele rezará um Pai Nosso pela abadessa e, desse modo, poderá ganhar “o reino de Deus”, como afirma, sarcasticamente, na derradeira cobla: “E per si podedes gaar, / mia senhor, o reino de Deus, / per ensinar os pobres seus” – vv. 22 a 24).
    O tom de escárnio acentua-se quando afirma que não são os jejuns que a farão ganhar o reino dos céus, mas, sim, a boa ação de “ensinar os pobres seus” (v. 24). Observe-se o uso irónico do determinante indefinido «outro» na expressão “outro jajuar”, que se refere indiretamente ao jejum sexual, isto é, ela ganhará o reino dos céus mais por ensinar-lhe a arte do sexo do que pelo jejum (ou abstinência) sexual. O trovador vai mais longe quando sugere que as próprias mulheres inexperientes deveriam procurar a abadessa e beneficiar dos seus ensinamentos, conhecimento e experiência.
    Em suma, o trovador satiriza a abadessa, que deveria obedecer ao voto de celibato, por, pelo contrário, ser experiente na arte do sexo (certamente por o praticar insistentemente), de tal como que seria capaz não só de ensinar, mas de ganhar a recompensa espiritual máxima (o reino de Deus) pela qualidade dos seus ensinamentos. A religiosa, em tese, não deveria ser versada na arte do sexo, todavia, a realidade da época era bem diferente. É verdade que a vida no interior dos mosteiros, conventos e beatérios nem sempre respeitava os princípios cristãos, as regras da Ordem ou os votos formulados quando os religiosos professavam. Quer a literatura, que as fontes históricas veiculam diversos exemplos de monjas que não levaram uma vida indecorosa, que mantiveram relações sexuais com homens, incluindo clérigos, ou chegaram a ser mães. Foi o caso, por exemplo, da abadessa do monastério burgalês de Las Huelgas nos finais do século XIII, cujo filho, Dom Juan Nunez, foi mestre da Ordem de Calatrava.
    Religiosos, fossem homens ou mulheres, faziam sexo, embora não se saibam as proporções que o comportamento sexual assumiu entre os membros do clero. Seja como for, foi em número suficiente para levar à existência de sátiras como a presente, o que não significa que a cantiga visasse uma abadessa específica.
    Relativamente ao sujeito poético, ao longo da cantiga encontramos expressões que caracterizam, ironicamente, a sua inabilidade no ofício do amor / sexo: “ogano casei” (v. 5); “asno de foder” (v. 7); “fiqu’i pastor” (v. 14).
    Por outro lado, a cantiga evidencia a mistura entre o sagrado e o profano. O primeiro é marcado pela referência a orações (“Pater Noster” – v. 20), ao culto (“reino de Deus” -v. 23; “amor de Deus” – vv. 4-5),ao rito (“jajuar” – v. 25), enquanto o segundo é traduzido pelo ato sexual (“foder” – vv. 7, 10, 17 e 19; “ambrar” – v. 28).
    Além disso, a cantiga representa a ação sexual como acesso ao domínio de um conteúdo, de uma prática, de um método, sendo esse conhecimento atingido através de outrem, no caso, de uma abadessa. Logo, mapeiam-se, no domínio-alvo (ação sexual), saberes relativos ao domínio-fonte (conhecimento), de tal modo que são mapeados, especificamente, saberes sobre o que se aprende empiricamente, descartando os conhecimentos, por exemplo, que se adquirem através dos livros, daí que ocorra, igualmente, nesta cantiga, uma metonímia do tipo parte pelo todo, bem como outra todo pela parte (“mui sabedor de tod’o bem”).

Análise da cantiga "Vós, que por Pero Tinhoso preguntades, se queredes", de Pero Viviães

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Pero Viviães, é constituída por três sextilhas (um terceto mais um refrão de três versos), de rima emparelhada (AAARRR) e versos de 15 sílabas métricas (segundo a perspetiva de Rodrigues Lapa; no entanto, a disposição dos cancioneiros é de versos de 7 sílabas métricas).
    De forma genérica, podemos considerar que o sujeito poético se dirige a um TU plural (“Vós”) que deseja saber o paradeiro de Pero Tinhoso. No que diz respeito ao tema, estamos na presença do retrato de um homossexual que é portador de doenças venéreas.
    Assim sendo, podemos desde já ter presente que o alvo d sátira é um indivíduo de nome Pero Tinhoso, sobre o qual não se dispõe de dados que o permitam identificar. Deste modo, “Tinhoso” poderá constituir uma alcunha, embora tenhamos de ter em cinta que o termo aparece duas vezes nos Nobiliários, uma delas em Fernão Pires Tinhoso, tio de Lopo Galo, vassalo dos Briteiros, aparecendo igualmente um Lopo Tinhoso na documentação do mosteiro galego de Toxos Outos, em Santiago de Compostela. Enquanto adjetivo, o vocábulo designa alguém que tem tinha, que é repelente ou nojento, ao passo que, como nome, se refere àquele que sofre de tinha. Assim, se considerarmos que se trata de uma alcunha, é evidente que estamos na presença de um jogo de palavras destinado a satirizar a homossexualidade da pessoa e as doenças venéreas contraídas por essa prática sexual (indiscriminada?). Dito de outra forma, apalavra carrega um tom pejorativo, remetendo para alguém doente, debilitado ou desprezível.
    Passando a uma análise mais pormenorizada da cantiga, o sujeito poético dirige-se, repetimos, a uma terceira pessoa (plural) que o teria questionado querendo saber notícias de Pero Tinhoso. No entanto, o «eu» desconhece «novas», contudo oferece três sinais que mais ninguém conhece, através dos quais se pode (re)conhecê-lo: “traz o toutiço [topo, cabeça] nu”, tem “câncer no pisso” (pénis) e “alvaraz [tumor] no cuu”. Através do recurso ao calão, o sujeito poético ataca a aparência física do alvo da sátira: (uma possível) calvície, cancro do órgão genital e uma úlcera ou ferida no ânus, certamente resultado da prática da homossexualidade. Assim, por meio do calão, da ironia e do sarcasmo, o alvo é satirizado de forma cruel e vulgar.
    Os três primeiros versos de todas as estrofes constituem um «continuum» e são seguidos por um refrão que denuncia as características pelas quais aqueles que procuram por Pero Tinhoso podem encontra-lo: ele possui uma série de doenças venéreas, certamente causadas por práticas homossexuais, do tipo passivo, e que o expõem à vergonha.
    O verso inicial da segunda estrofe liga-se à primeira, confirmando o tal «continuum», através nomeadamente do advérbio de tempo «Já», da forma verbal no pretérito perfeito «preguntastes» e da expressão «noutro dia», que dá a noção de continuidade no discurso: ele já tinha sido questionado nessa altura (vaga e imprecisa, pois não se especifica exatamente a data em que ocorreu) acerca de Pero Tinhoso, porém, nesse momento, não sabia as informações perdidas (“e entom non’as sabia” – v. 8), ao contrário do que sucede agora: “mais por estes três sinaes quem quer o conhosceria”. E repete-se o refrão.
    A última estrofe abre com uma anáfora (com o verso inicial da primeira: “Vós” / “Vós”). O recurso à perifrástica “andades preguntando” indicia que o «vós» tem insistido nas questões sobre Pedro Tinhoso, querendo saber novas dele, insistência essa que sugere que há algo nele peculiar, que desperta interesse, curiosidade. De novo, o sujeito poético elenca três sinais (ou características) que o identificam. No entanto, esses sinais não são imediatamente óbvios, pois exigem ser procurados minuciosamente, como o denuncia o gerúndio «catando». E compreende-se esta ironia, pois as doenças venéreas no pénis e no ânus não são visíveis de imediato; é necessário que a pessoa fique nua e seja olhada com atenção para serem percebidos. Além disso, a forma verbal implica uma observação detalhada, cuidada e paciente, bem como uma busca persistente. Por exemplo, a doença no ânus não é visível a olho nu, necessita até do toque físico para ser desvendada. Por último, o sufixo -ando indica uma ação prolongada, o que confirma que a descoberta dos tais sinais não é imediata, ocorre ao longo de um processo de observação.
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