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domingo, 29 de dezembro de 2024

3. A origem da tragédia

    A tragédia grega terá nascido do culto de Dioniso – o deus do vinho, da alegria, da exuberância, das potências geradoras e “da excitação de toda a espécie e da união mística” (Heinz-Mohr 1994: 137). De facto, a tragédia grega era uma das principais festividades religiosas anuais que se realizavam em Atenas, as Grandes Dionísias Urbanas.
    Atenas, como as restantes cidades gregas, tinha o seu calendário anual pautado por diversas festividades. Com efeito, cada cidade grega tinha a sua própria bandeja de festas e o seu próprio calendário. Mais do que isso, dentro da mesma cidade, sucedia por vezes haver festas exclusivas de determinada tribo. Em Atenas, supõe-se que 60 dias anuais eram dedicados exclusivamente a festividades religiosas. A importância destas manifestações é atestada também pelo facto de os nomes dos meses estarem ligados às festividades mais importantes realizadas naquele período de tempo.
    A festividade na qual eram apresentadas as tragédias era a que se destinava a homenagear Dioniso. Na Ática, os principais festivais em honra do deus eram as seguintes:

1) Leneias: as festas dos tonéis de vinho, aproximadamente em janeiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho novo.

2) Antestérias: o mais antigo festival dionisíaco, por isso também chamado “Velhas Dionisíacas”, aproximadamente em fevereiro, quando os barris eram abertos e se provava o vinho.

3) Oscofórias: o festival da colheita das uvas, realizado sensivelmente em outubro, quando havia uma corrida de rapazes levando ramos de parreira-

    Para o caso – a origem da tragédia grega –, o mais importante festival em honra de Dioniso eram as Dionísias (que se dividiam em urbanos e rurais), especialmente a primeira, que ocorria em dois momentos distintos: uma tinha lugar logo na primavera, após as Antestérias, em finais de março, quando o vinho do último ano estava maduro, pronta para beber, fazendo-se, portanto, a abertura dos barris (o sentimento geral era de que a terra estava a acordar para uma nova vida); a outra ocorria no inverno e marcava o fim do trabalho anual e que ocorria no início de janeiro em Atenas.
    Quanto às Dionísias Rurais, tinham uma dimensão inferior e lugar em dezembro. Nelas, um kômos, isto é, um grupo de foliões, carregando um falo de grandes proporções, cantava canções dirigidas a Dioniso, as chamadas «canções fálicas». Nos intervalos, o líder entretinha os espectadores com vulgaridades, na forma de monólogo ou de diálogo. Diversos autores creem que esse kômos foi uma das origens do coro, um dos traços mais importantes do teatro grego, tanto na tragédia como na comédia.
    As Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias tinham a seguinte forma. Iniciavam-se por uma procissão que escoltava uma antiga imagem de Dioniso ao longo da estrada que levava à cidade de Eleutéria e retomava depois ao altar do deus, em Atenas, onde um bode era sacrificado no meio de danças e canções. Uma virgem liderava a procissão, enfeitada com ornamentos dourados, transportando uma cesta cheia de bolos e flores. Os demais participantes levavam oferendas rurais (uvas, figos, vinho, etc.) e o animal que seria sacrificado. Além disso, um falo era transportado no alto.
    Neste cortejo ritual, os participantes ativos que se dirigem para um objetivo, durante o percurso, interagem com o outro grupo que se forma simultaneamente ao longo do caminho, ou seja, os espectadores. A finalidade da pompé (equivalente ao latim pompa) é um santuário no qual terá lugar o sacrifício, mas o próprio caminho também tem significado, é «sagrado». Noutras procissões religiosas, são apresentadas já dramatizações de caráter mimético da partida, o abandono do santuário, prefigurando no ritual a futura forma dramática.
    Os participantes ativos desempenham papéis bem definidos, como a portadora do cesto, ou os portadores do falo, no caso das Grandes Dionísias, a portadora da água, o portador do fogo, das taças, etc. O estatuto particular dos participantes é indicado não só pelo vestuário festivo, mas também pelas coroas, faixas de lã e pelos ramos que levam nas mãos. O uso destes sinais exteriores dos papéis durante o ritual será mais tarde apropriado pelo teatro.
    Deste modo, as procissões, os hinos e as danças de caráter festivo-religioso prefiguram, de certo modo, as formas que o teatro grego assumirá mais tarde. O divertido kômos e a solene pompé constituem a contrapartida puramente ritual dos coros cómicos e trágicos do teatro grego.
    Outra semelhança entre o ritual de Dioniso e a tragédia tem a ver com a forma como o festival dionisíaco acontecia na Ática, que era bem diferente das suas manifestações orientais, nas quais existia violência selvagem e extática, além de serem realizadas no inverno e à noite. Assim, observa-se neste ritual a passagem de uma simplicidade rude e às vezes brutal à graça, à dignidade e refinamento que serão também características da tragédia ática.

2. Origem e significado da palavra tragédia

    A tragédia é uma forma dramática ou peça de teatro, em geral solene, cujo fim é excitar o terror ou a piedade, envolvido num acontecimento funesto. Nela expressa-se o conflito entre a vontade dos homens e os desígnios inelutáveis do destino, nela se geram paixões contraditórias entre o indivíduo e o coletivo ou o transcendente. Em sentido lato, pode abranger qualquer obra ou situação marcada por acontecimentos trágicos, ou seja, em que se verifique algo de terrível e que inspire comoção.
    A palavra tragédia vem do grego tragoidia, uma palavra formada por duas outras: trágos, que significava bode, e õide (odé), que queria dizer canto. Assim, etimologicamente, tragédia significa canto do bode. Crê-se que resultou de os atores se vestirem com pele de cabra ou de, primitivamente, na Grécia, nas festas em louvor a Dioniso (o deus grego do vinho e da alegria, tal como Baco entre os Romanos), se sacrificar um bode (tragos) ao som de canções (odé) executadas por um corifeu (elemento destacado do coro, que pode cantar sozinho) acompanhado por um coro. De acordo com uma das interpretações que procura explicar essa origem, Dioniso teria ensinado aos homens, em Ícaro, pela primeira vez, a arte de cultivar vinhas. Assim que as videiras cresceram, um bode destruiu-as, por isso foi morto. Depois de o perseguirem em esquartejarem, os homens começaram a dançar e a beber em cima da sua pele, até caírem desmaiados. Este episódio, ao que parece, passou a integrar os rituais dionisíacos anualmente. De facto, durante os festivais, era oferecido um bode a Dioniso e, posteriormente, cantava-se e dançava-se até à exaustão. Os cantares e os dançarinos travestiam-se de «sátiros», que eram concebidos pelo imaginário popular como “homens-bode”.

1. Introdução à tragédia grega clássica

    Habitualmente, pensamos numa tragédia como um livro que lemos no sentido de compreendermos como os gregos sentiam o trágico nas suas vidas e como o expressavam artisticamente. No entanto, não era assim que os gregos antigos procediam. De facto, é só por volta do século V a.C., no período de maior fulgor do teatro grego, que surge na Grécia uma cultura verdadeiramente letrada, nomeadamente com a edição e circulação (venda) de livros, ainda que de forma incipiente. Neste contexto, há que ter em conta que, nesta fase, persiste uma tensão entre o oral e o escrito, que se prolonga pelo século seguinte e que é visível, por exemplo, na obra de Platão, que olha para a escrita com alguma desconfiança.
    Gradualmente, porém, a escrita / a leitura de tragédias vai fazendo o seu caminho, até Aristóteles (38 a.C. – 322 a.C.) declarar que é possível obter também o efeito trágico apenas lendo uma peça, sem necessidade de uma representação pública.


Biografia de Alexandre O'Neill

 
·         19 de dezembro de 1924 – Nasce em Lisboa, no n. 39 da Avenida Fontes Pereira de Melo, Alexandre Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, filho de António Pereira d’Eça O’Neill de Bulhões, empregado bancário, e de Maria da Glória Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, doméstica, mãe pela segunda vez aos 19 anos, e nero da escritora Maria O’Neill.

O apelido O’Neill, de origem irlandesa (o primeiro rei católico da Irlanda – 410 d.C. – chamava-se Eogan Vi Niall), foi herdado da avó paterna, Maria da Conceição, havendo registo da sua presença em Portugal desde 1736, ano em que Shane O’Neill, um refugiado, chega ao nosso país e se instala na Quinta da Arealva, em Cacilhas.

A escolha do apelido O’Neill como “nome de guerra relacionar-se-á possivelmente com a demarcação de qualquer «modo funcionário de viver»”, bem simbolizado pelo clã O’Neill na Irlanda: durante quase mil anos e cerca de trinta gerações, segundo as crónicas, não houve um O’Neill que morresse de morte natural. Por sua vez, o apelido Bulhões aponta para figuras importantes, como, por exemplo, Santo António de Lisboa.

·         1926-1937 – Mora em Lisboa com a família, constituída pelos pais e pela irmã, Maria Amélia, mais velha do que o futuro poeta, no 4.º Esq. do número 19 da Rua da Alegria, uma época que o próprio retratou da seguinte forma: “Era um chato, uma tristeza, era filho de gente que não me deixava sair à rua. Era um miúdo fechado, um bocado triste e passava muito tempo à janela. […] Não foi uma infância feliz nem infeliz. Foi um tempo cinzento, sem relevos.”

Mais felizes foram os períodos de férias de verão em Amarante, terra natal da mãe, entre os seis e os dezasseis anos, onde conheceu e conviveu com diversas pessoas, nomeadamente o tio-avô José Vahia, em cuja companhia faz longos passeios que lhe dão a conhecer a região do Douro e a poesia de Guerra Junqueiro e que estão refletidos no seu poema “Autocrítica”.

·         1932 – Começa a frequentar a Escola Primária, situada na Rua de S. José dos Carpinteiros.

·         1933 – Ingressa no Colégio Português de Educação Feminina, uma instituição de ensino particular, na qual conclui a instrução primária e inicia o curso dos liceus.

·         1935 – Conhece Teixeira de Pascoaes no Café Central de Amarante.

·         1936 – Contacta pela primeira vez com a poesia dimensionista de António Pedro através da revista “Revolução”, a que tem acesso por meio da sua professora, Virgínia Lima.

Inicia-se a Guerra Civil espanhola, que seguirá com grande atenção.

Inscreve-se, obrigado, na Mocidade Portuguesa.

·         1937 – Ainda em Amarante, conhece Alexandre Pinheiro Torres, que se tornará desde aí seu companheiro de aventuras, e Bento de Jesus Caraça, que se encontrava também na localidade na época e a quem pediu um autógrafo.

·         1938 – Muda-se com a família para a Rua Arnaldo Gama, no Bairro Social do Cego, mudança essa que o leva a mudar de escola e a frequentar o Colégio Valsassina, na Avenida António Augusto de Aguiar, por força da lei da separação dos sexos nas escolas.

Contacta com a poesia de Mário de Sá-Carneiro, bem como com a poesia neorrealista, graças às conversas pós-aulas que mantém com o seu professor Avelino Cunhal, “a quem horroriza o entusiasmo” de O’Neill por uma poesia que considerava “doentia e malsã” (a de Sá-Carneiro).

·         1939 – Reprova a Matemática no 3. Ano de liceu. Após frequentar aulas particulares, repete o exame e obtém anota de 19 valores.

Começa a ler (por exemplo, Júlio Verne, autor comum aos jovens da sua idade, bem como outros escritores que os da sua idade não liam) e a escrever.

O triunfo de Franco na Guerra Civil espanhola, a ascensão dos regimes fascistas e nacionalistas (Mussolini, Hitler e Salazar) e o início da Segunda Guerra Mundial agudizam a sua visão angustiada da História e da vida.

·         1941 – Ainda no Colégio Valssassina, conhece o professor António Dias Miguel, que o inicia na leitura dos autores do Novo Cancioneiro.

Obtém todos os prémios de um concurso literário organizado pela direção do colégio.

·         192 – Conhece, pela mão de Ribeiro Couto, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Almada Negreiros, António Dacosta e António de Navarro, membros, entre outros, do chamado “Grupo dos Jantares dos Dias 13”, que têm lugar na Esplanada do Rato, e para os quais Alexandre O’Neill passou a ser convidado. Deles resultará um convite, formulado por Ribeiro Couto, no sentido de colaborar na revista “Litoral”, dirigida pelo escritor Carlos Queiroz.

Escreve poemas com sabor ao heterónimo pessoano Ricardo Reis e a um certo imaginário próximo do Neorrealismo, povoados por figuras como fadas, gnomos, etc., e tendo como interlocutora uma Lídia, que, de facto, nos leva de imediato até Reis.

·         1943 – Publica os primeiros versos num jornal de Amarante, o “Flor do Tâmega”.

·         1944 – Concluído o liceu, reprova no exame médico para admissão ao Serviço Militar, devido à asma e à miopia.

Sofre novo desgosto quando conclui, após terminar o primeiro ano do curso de Pilotagem da Escola Náutica de Lisboa (a admissão requeria apenas que os candidatos soubessem nadar), que jamais poderá ser piloto por causa da miopia, no momento em que tenta obter, na Capitania do Porto de Lisboa, uma cédula para navegar como praticante de piloto.

Volta, posteriormente, ao liceu para frequentar, como aluno externo, o Curso Complementar de Letras.

·         1945 – Conhece Mário Cesariny de Vasconcelos no café A Cubana, dando início a uma relação de amizade e cumplicidade intelectual, cimentada pelo envolvimento de ambos nas atividades do MUD Juvenil e pela renitência face ao Neorrealismo.

Publica os poemas “Explosão”, “Nocturno”, “Cavalos” e “Estátua Equestre” na revista “Litoral”.

·         1946 – Agravam-se conflitos no seio da sua família: a relação com o pai nunca fora pacífica e a mãe tinha sempre tentado afastar O’Neill da literatura, rasgando todos os versos que encontrava, pois sonhava para o filho uma carreira na advocacia. Em consequência dessas desavenças sai de casa e vai viver para casa do tio António Vahia de Castro, na Avenida Visconde de Valmor.

Começa a trabalhar na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio, na secção de Arquivo e Expedição de Correspondência, como escriturário de terceira classe, ganhando 600 escudos (o equivalente a três euros) por mês. Aí permanecerá durante seis anos.

·         1947 – Troca correspondência com Mário Cesariny, que vive então em Paris, revelando o seu entusiasmo pelas atividades diversificadas a que se dedica: desenho, escrita, estudos (por exemplo, da obra de Freud), escultura, etc.

Participa, juntamente com outras figuras, como António Pedro, José-Augusto França, Cândido Costa Pinto, entre outros, em outubro, na primeira reunião do futuro Grupo Surrealista de Lisboa, que se formará antes do final deste ano, e que será constituído pelo próprio O’Neill, por Mário Cesariny, António Pedro, José-Augusto França, Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, António Domingues e Vespeira. Cândido Costa Pinto fora afastado entretanto, acusado de assumir compromissos estranhos aos do grupo, nomeadamente com a galeria de exposições do SNI.

A adesão ao Surrealismo leva-o a colecionar objetos estranhos, em casa dos pais, como ossos, que levam a mãe ao desespero e que o «forçam» a arrendar um «atelier» numas águas-furtadas de um prédio antigo, na Avenida Liberdade, juntamente com António Domingos e Mário Cesariny. Esta iniciativa vem substituir outra, que nunca concretizará, de alugar uma casa em conjunto com José Cardoso Pires e / ou João Moniz Pereira. É nesse «atelier» que os locatários ensaiarão experiências de colagens, poemas, esculturas e pinturas.

·         1948 – Cria, nessas águas-furtadas, A Ampola Miraculosa, uma história, em poucas páginas, construída em torno de gravuras de antigos manuais de Física.

O Grupo Surrealista de Lisboa torna pública, através do “Diário de Lisboa”, a sua oposição ao aproveitamento e apropriação oficiais da figura de Gomes Leal, aquando da celebração do centenário do seu nascimento. Anos depois, O’Neill, juntamente com Francisco de Cunha Leão, organizará uma antologia poética de Gomes Leal.

Ainda neste ano, dá-se uma cisão no Grupo Surrealista de Lisboa, motivada por divergências estético-ideológicas e protagonizada por Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Pedro Oom e Henrique Risques Pereira.

·         1949 – Em janeiro, num sótão do n.º 25 da Rua da Trindade, abre ao público a primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, onde expõem os seus trabalhos Alexandre O’Neill, António Pedro, José-Augusto França, entre outros. A exposição é encerrada pela polícia devido ao seu cariz subversivo. A capa do catálogo ostenta a cruz azul do lápis da censura: o texto dessa capa, de facto, assinado por José-Augusto França, apoia a candidatura do general Norton de Matos contra Óscar Carmona e nele é possível ler frases como “É absolutamente indispensável votar contra o Fascismo.”, por isso é cortado com uma enorme cruz.

·         1950 – A 12 de janeiro tem lugar a Conferência de Nora Mitrani, intitulada “La Raison Ardente”, uma francesa de 29 anos ligada ao movimento surrealista de André Breton que chegara a Lisboa em finais do ano anterior. Alexandre O’Neill traduz a conferência para português, para ser publicada nos Cadernos Surrealistas, e apaixona-se loucamente pela conferencista.

Quando Nora Mitrani parte de regresso, os dois combinam que o poeta irá encontrar-se com ela a Paris, no entanto, entretanto, a PIDE confisca-lhe o passaporte, que apenas reaverá anos mais tarde.

Ainda neste ano realiza-se, na livraria A Bibliófila, a segunda exposição do Grupo Surrealista Dissidente, na qual O’Neill expõe, extracatálogo, não obstante fazer parte do grupo original.

·         1951 – Em novembro, é editado, em Cadernos de Poesia (fascículo 11), o seu primeiro livro de poemas: Tempo de Fantasmas. Num texto intitulado “Pequeno Aviso do Autor ao Leitor”, uma espécie de prefácio, o escritor demarca-se do Surrealismo e passa-lhe mesmo um atestado de menoridade.

Aproxima-se temporariamente do Partido Comunista Português, um namoro que começara em 1948 com a entrada para o MUD Juvenil, porém o poeta nunca seria um homem de grandes convicções partidárias.

Em dezembro, o Grupo Surrealista Dissidente reage à posição de O’Neill com o texto “Do capítulo da Probidade”, que o ataca, bem como o Grupo Surrealista de Lisboa, José-Augusto França e Jorge de Sena.

·         1952 – É posto sob “vigilância especial” na Caixa de Previdência, onde trabalha, depois transferido de secção e, por fim, demitido compulsivamente da Função Pública por se ter recusado a usar gravata pela morte do marechal Óscar Carmona.

·         1953 – Em março, torna-se funcionário da secção de Sinistros Automóveis, na Companhia de Seguros Metrópole.

Colabora em diversos jornais e revistas: “Litoral”, “Mundo Literário”, “Seara Nova”, “Diário de Lisboa”, “Cadernos de Poesia”, “Vértice”, “Journal des Poètes” e “Unicórnio” (1951), revista dirigida por José-Augusto França onde foi publicado o poema “Um Adeus Português” e, em 1956, “Meditação na Pastelaria”.

É preso pela PIDE no aeroporto de Lisboa por ter ido esperar Maria Lamas, escritora, jornalista e ativista política, que regressava de reuniões do Conselho Mundial da Paz, ocorridas em Bucareste, na Roménia, e encarcerado durante 40 dias. Nesse período de tempo, é visitado semanalmente pela irmã, à revelia dos pais. É posto em liberdade graças às influências movidas pela mãe, contra a vontade do próprio filho.

·         1954 – A 13 de março pede a demissão da companhia de seguros onde trabalhava desde março do ano anterior, alegando um estado de saúde frágil e a necessidade de repouso absoluto.

Em 1 de agosto, começa a trabalhar como escriturário para a divisão agro-química da Sandoz.

·         1957 – Em 27 de dezembro, casa com Noémia Delgado e vai morar para a Rua do Jasmim, quebrando, a partir daqui, o ciclo de idas e voltas de casa dos pais.

·         1958 – Publica No Reino da Dinamarca, na coleção “Poesia e Verdade”, da Guimarães Editores.

No fim de junho, abandona o emprego de escriturário da Sandoz.

·         1959 – A partir de julho, trabalha como encarregado da Biblioteca Itinerante n.º 17 da Gulbenkian, com ponto de irradiação em Lisboa.

Branquinho da Fonseca, diretor do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, à falta de técnicos, «recruta» os encarregados entre os jovens poetas da época, como Herberto Hélder e António José Forte, além do próprio O’Neill.

Inicia a sua atividade como redator de publicidade, onde permanecerá até ao fim da vida, trabalhando sucessivamente em quase todas as maiores empresas do ramo: Telecine Moro, Publicis, Ciesa NCK e McCann Erickson. Nos anos 80, trabalhará com dois amigos na Publinter (Rui de Brito) e na Lápis (com Arnaldo Aboim). Ficam famosos diversos slogans da sua autoria, nomeadamente um, o mais conhecido e que acabou por se converter em provérbio: “Há mar e mar, há ir e voltar”.

A 23 de dezembro, nasce o seu primeiro filho: Alexandre Delgado O’Neill.

·         1960 – É publicado Abandono Vigiado, na coleção “Poesia e Verdade”, da Guimarães Editores.

Em maio, abandona o emprego na biblioteca itinerante e volta para a Sandoz.

·         1961 – Nora Mitrani suicida-se em Paris aos 40 anos. Ela e O’Neill nunca se voltaram a ver.

O poeta colabora com Ilse Losa na tradução da obra Teatro I, da autoria de Bertolt Brecht, para a editora Portugália.

Em finais de setembro, abandona em definitivo a Sandoz.

·         1962 – Na coleção Círculo de Leitores, da editora Moraes, é publicada a obra Poemas com Endereço.

Publicam-se também duas antologias poéticas de sua autoria, uma de Teixeira de Pascoaes (em parceria com Francisco da Cunha Leão), a outra de Carl Sandburg.

·         1963 – Organiza uma antologia de poemas escolhidos do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que é publicada na Portugália, na coleção “Poetas de Hoje”.

Traduz as letras das canções de O Círculo de Giz Caucasiano, para o volume Teatro II, de Bertolt Brecht, prosseguindo assim a colaboração com Ilse Losa.

·         1965 – A Ulisseia edita Feira Cabisbaixa.

·         1966 – É editada, pela Einaudi, de Turim, uma tradução de poemas seus intitulada Portogallo Mio Remorso, da responsabilidade de Joyce Lussu, um reflexo do interesse que O’Neill sempre teve pela cultura, história e língua italianas.

·         1968 – É publicado O Poeta Apresenta o Poeta, uma antologia da poesia de Vinicius de Moraes organizada por O’Neill. O poeta brasileiro vem a Lisboa e os dois tornam-se amigos.

·         1969 – É publicada a segunda edição de No Reino da Dinamarca.

·         1970 – É editada a coletânea de textos As Andorinhas não têm Restaurante, que reúne textos em prosa editados nos livros de poesia e crónicas que publicava periodicamente em jornais, nos “Cadernos de Literatura” da D. Quixote.

·         1971 – A 15 de janeiro, divorcia-se de Noémia Delgado e, a 4 de agosto, casa com Teresa Patrício Gouveia. O novo casal vai morar na Rua da Escola Politécnica, n.º 48-2.º, onde Alexandre O’Neill viverá até ao final da vida.

O segundo matrimónio coincide com um período de maior desafogo económico e com uma fase de estadas numa casa da família, em Azeitão, muito apreciada pelo poeta.

·         1973 – Prepara, com Jorge Listopad, o programa “Museu Aberto” para a RTP.

·         1974 – Colabora com o realizador Artur Ramos (com quem já havia colaborado nos anos 60, no filme Pássaro de Asas Cortadas) na produção da peça Schweik na II Guerra Mundial, da autoria de Bertolt Brecht, para a Companhia de Teatro da Rtp.

·         1975 – Em novembro, sai o primeiro número da publicação “Critério – Revista Mensal de Cultura”, dirigida por João Palma-Ferreira e O’Neill, como diretor-adjunto, defensora da democracia de tipo socialista. Entre os colaboradores contam-se figuras relevantes como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, António José Saraiva, Álvaro Manuel Machado, António Tabucchi e Vitorino Magalhães Godinho. Em simultâneo, O’Neill torna-se simpatizante do Partido Socialista, dando início a uma relação pontuada por vários solavancos, exemplificada por slogans eleitorais como o seguinte: “Ele não merece, mas vota no PS”.

·         1976 – Abandona, juntamente com Palma-Ferreira, a direção da revista “Critério”, de que ainda sairão dois números sob uma direção interina.

Em maio, nasce Afonso, o seu segundo filho.

Traduz A Mandrágora, da autoria de Nicolau Maquiavel.

É internado, durante algum tempo, no Hospital de Santa Maria, na sequência de um episódio grave do foro cardíaco.

·         1977 – Organiza, para a Dom Quixote, Casa Branca Nau Preta / Felicidade na Austrália, uma coletânea que abarca poemas de trinta poetas portugueses contemporâneos, desde “Orpheu” até 1975, que, contudo, jamais foi publicada.

Edita outra antologia, intitulada Poesia Portuguesa Contemporânea, na qual colabora na seleção e notas.

A 17 de dezembro, participa no “Encontro de Poetas” que marca o início de diversas iniciativas culturais promovidas pela Casa de Mateus, nas quais participam também Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner, Pedro Tamen, Alberto Pimenta, Vasco da Graça Moura, entre outros.

·         1978 – Em colaboração com Mendes de Carvalho, escreve a peça Jesus Cristo em Lisboa, uma tragicomédia em duas partes inspirada na obra homónima de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes.

Colabora com o programa Perfil, produzido pela Interfilme para a RTP, diário e com a duração de 5 a 8 minutos, cujo objetivo era dar a conhecer o perfil de escritores ou artistas.

Em agosto, juntamente com Álvaro Guerra, Jorge Listopad e Raul Solnado, integra uma embaixada portuguesa ao Festival Internacional de Poesia, na então Jugoslávia.

·         1979 – Edita A Saca de Orelhas e colabora no projeto teatral de Ricardo Pais, Ninguém, uma adaptação de Frei Luís de Sousa feita por Maria Velho da Costa.

Durante o inverno viaja por Itália, ficando alojado em casa de Antonio Tabucchi, seu amigo e admirador.

Separa-se de Teresa Patrício Gouveia.

·         1981 – Passa alguns períodos de tempo em Constância, em casa de Rui de Brito, com quem vinha colaborando desde 1978.

·         1982 – Graças à ação de Vasco da Graça Moura, é publicada a obra Poesias Completas 1951/1981, que integra um novo livro, de 1981, As Horas já de Números Vestidas.

·         1983 – Adere, em conjunto com outras personalidades da vida literária e artística, a um abaixo-assinado contra a programação da RTP que acusa a empresa estatal de televisão de chantagem e coação moral.

A 7 de abril, o “Diário Popular” publica uma tomada de posição de O’Neill contra a proposta do Conselho Federal de Cultura do Brasil de extinção das cadeiras de Literatura Portuguesa nas Faculdades de Letras brasileiras.

·         1984 – É publicada a segunda edição das Poesias Completas, que inclui já a produção do poeta até ao ano de 1983. Sofre um AVC.

·         1985 – É reeditada Uma Coisa em Forma de Assim.

Em março, interrompe a sua colaboração com o “Jornal de Letras” por motivos de saúde: é internado no Hospital de Santa Maria durante oito dias para fazer uma desintoxicação medicamentosa.

·         1986 – A 9 de abril, é acometido de novo episódio cardíaco enquanto trabalha na Publinter e internado na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Santa Cruz, sendo posteriormente transferido para o Hospital Egas Moniz, onde acaba por falecer a 21 de agosto.

Análise da ode "Temo, Lídia, o destino. Nada é certo", de Ricardo Reis

    Esta ode de Ricardo Reis é constituída por uma única estrofe de nove versos – uma nona, portanto – brancos ou soltos, de métrica irregular.
    O sujeito poético abre o poema apostrofando Lídia, para, em tom confessional, lhe dar conhecimento do seu receio face ao Destino. Qual a justificação para esse receio? A resposta é simples: o «eu» teme o incerto e o desconhecido, as fontes de todas as suas angústias: “Nada é certo.” O ser humano não está a salvo de, a qualquer momento, lhe suceder algo que transforme a sua existência, geralmente para pior. Assim sendo, qualquer coisa que façamos fora do que conhecemos, quando arriscamos e, por nós próprios, entramos no desconhecido, sentimos medo e insegurança, exatamente porque estamos a entrar no desconhecido e não sabemos o que nos espera, o que nos vai acontecer. Deste modo, devemos ter a inteligência de nos mantermos fiéis ao que conhecemos, até porque o Destino pode mudar tudo a qualquer momento, o que gera desconfiança e incerteza.
    Os deuses, graves, as forças poderosas e misteriosas que comandam os seres humanos e têm apenas acima de si o Fado / o Destino, guardam as coisas belas da vida, o que significa que nós, meros e frágeis humanos, não temos qualquer controlo sobre a nossa existência. Assim sendo, devemos recear a mudança e a novidade, que, regra geral, se operam em sentido negativo.
    Como agir, então, perante esta constatação e este estado de coisas? Na esteira da filosofia estoica e epicurista, e dado que não somos deuses, o sujeito poético aconselha Lídia a viver o presente, o momento, e a não se aventurar no desconhecido, isto é, aconselha-lhe moderação, prudência e o gozo das coisas simples da vida.
    Na parte final da ode, o «eu» lírico usa o adjetivo «parca», que pode significar «escasso», «moderado», apontando, assim, para a ideia de a vida ser escassa, isto é, breve (“E a parca vida”), como pode apontar igualmente para o apelo à prudência e à moderação. Além disso, o adjetivo remete para as Parcas, ou seja, as agentes do destino que eram responsáveis pelo fio metafórico da vida humana e que personificam o nascimento, a vida e a morte. As Parcas, filhas de Zeus e Témis ou de Nix e Érebro, escreviam o destino das pessoas numa parede de bronze e ninguém o poderia apagar. Cloto tecia os fios da vida com a sua roca; Láquesis decidia qual a extensão do fio de cada existência humana (é representada como uma matrona a desenrolar uma tira de papel onde estava escrito o destino de cada vida humana ou como uma velha coxa e feia); Átropos era a responsável por cotar o fio da vida com a sua tesoura. Em suma, Cloto fiava o fio, Láquesis media o seu comprimento e Átropos cortava-o.
    A referência às Parcas e ao facto de os seres humanos não serem deuses enfatiza a ideia da inexorabilidade do Destino e a certeza dos limites finais da existência, não comportando, pois, a exiguidade da vida as surpresas trazidas pela novidade. “Não somos deuses” constitui uma declaração sintomática onde são confrontadas, ainda que em termos de não identificação, da essência humana e da essência divina. O ser humano é cego, isto é, não conhece o que o espera, o seu destino, que é comandado pelos deuses, por isso receia o que ele(s) lhe destina(m), por isso deve valorizar a vida que lhe foi dada, por mais breve e limitada que seja, e não arriscar-se e experimentar coisas novas, que podem ser perigosas: “Não somos deuses: cego, receemos, / E a parca dada vida anteponhamos / À novidade, abismo.”

Análise do poema "A flor que és, não a que dás, eu quero"

    O poema abre com uma epígrafe em latim: “Ad juvenem rosam offerentem”, que significa “Ao jovem que oferece uma rosa”. O sujeito poético dirige-se a um tu, presumivelmente feminino, que trata metaforicamente por flor, metáfora essa que indicia a sua beleza e delicadeza, para exprimir um desejo: quer a sua essência, não o que ela tem a oferecer de superficial – “A flor que és, não a que dás, eu quero”. Segue-se uma interrogação, através da qual reclama da mulher amada o facto de esta lhe negar o que ele não pede, ou seja, o seu verdadeiro «eu». A vida humana é breve; mesmo a mais longa revela-se efémera (“Tão curto tempo é a mais longa vida”), bem como a fase da juventude, um momento da existência mais fugaz ainda dentro dela.
    O «tu» vive de forma vã, porque não se cumpre flor, ou seja, não cumpre a sua essência enquanto flor (beleza, delicadeza, harmonia…). Se, entretanto, ela morrer (atente-se nos eufemismos e perífrases de sabor clássico), não passará de sombra absurda que busca a sua essência, que o «eu» não lhe dá, velando eternamente: “Perene velarás”. O advérbio «perene» significa durante muito tempo, eternamente, enquanto «velar» quer dizer vigiar, ficar acordado durante a noite. Isto significa que essa busca será eterna.
    O início da terceira estrofe coloca-nos perante uma paisagem sombria e fria, onde há lírios a crescer em terras infernais, longe da luz do dia: “Na oculta margem onde os líricos frios / Da infera leiva crescem”. Ressalte-se o facto de os lírios serem flores exuberantes que exalam um perfume exuberante que seduz qualquer pessoa. Por outro lado, a sua flor possui um pistilo saliente, com aspeto fálico, o que remete para o campo da sexualidade. Além disso, está ligada à religiosidade e ao misticismo, daí ser usada em buquês de noivas, decorando festas de casamento e comemorações religiosas. O seu simbolismo varia também de acordo com a sua cor. Por exemplo, o lírio branco representa a pureza de corpo e alma, a inocência, a lealdade e o amor incondicional; o azul simboliza segurança, estabilidade e confiança; o amarelo remete para a amizade; o lilás representa o matrimónio e a maternidade; o laranja, a atração e a renovação amorosa; e o rosa ou vermelho, amor, desejo e sensualidade.
    Outra imagem de sabor clássico que encontramos no poema é a do rio, que, regra geral, representa a vida e a passagem do tempo. Neste caso, o «eu», o antepenúltimo e no último verso, apresenta-nos a imagem de um rio que, monotonamente, corre sem rumo, sem saber onde é o dia.

Análise da ode "A cada qual, como a estatura, é dada", de Ricardo Reis

    Cada pessoa possui uma medida de justiça que lhe é dada pelo fado, que determina a sorte de cada um, sem que haja mérito por parte de quem recebe ou tal constitua uma recompensa. A justiça, para uns, é a estatura e, para outros, a felicidade.
    Nada na vida constitui uma recompensa ou um castigo, é apenas o resultado de uma casualidade, um acaso: “Nada é prémio: sucede o que acontece.” Em jeito de conclusão, dirigindo-se a Lídia, o sujeito poético declara-lhe que o ser humano nada deve ao fado, a não ser aceitá-lo como ele é: “Nada, Lídia, devemos / Ao fado, senão tê-lo.”
    O destino é a entidade suprema, que tudo comanda e a quem todos obedecem – deiuses e seres humanos –, pelo que de nada adianta tentar evitá-lo ou contrariá-lo. Perante este cenário, a atitude adequada é aceitá-lo com resignação.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Análise da ode "Seguro assento na coluna firme", de Ricardo Reis

    Estamos na presença de uma ode de Ricardo Reis, publicada originalmente na revista “Athena”, em outubro de 1924 e incluída posteriormente na obra Odes, um projeto que Fernando Pessoa planeou publicar em cinco volumes, porém o poeta apenas concluiu o primeiro.
    Nesta ode, o «eu poético», socorrendo-se da metáfora, associa os seus versos a uma coluna firme, os quais lhe proporcionam um lugar firme (sinónimo) e duradouro no mundo, mesmo confrontado com as questões da passagem do tempo e do esquecimento. Assim, o sujeito não receia o futuro (“Nem temo o influxo inúmero futuro” – v. 3) nem o esquecimento (“o olvido”), pois a sua mente cria uma realidade que não está dependente dos reflexos do mundo, mas, sim, da arte. Os “reflexos do mundo” são as imagens que a sua mente capta das coisas externas ao «eu», mas que não correspondem à essência das coisas. A mente, quando se fixa na sua própria atividade criadora, transforma os reflexos exteriores em matéria para a sua criação, para a sua arte. Posteriormente, essa mesma arte cria o mundo, isto é, dá forma e sentido ao que é caótico e transitório. A arte não é uma criação ou projeção da mente, mas algo independente e superior.
    Nos dois últimos versos da ode, introduzidos pelo advérbio «assim», em jeito de conclusão, através de nova metáfora («placa», isto é, a sua poesia), o «eu» lírico sugere que os seus versos, a sua arte, lhe garantirão um lugar firme e duradouro no mundo. Ele grava o seu ser na placa, ou seja, os seus versos, que duram mais que o “instante externo”, quer dizer, o que sucede em seu redor, o que ocorre no exterior da sua mente, no mundo sensível e transitório, que se opõe ao seu ser, isto é, à sua essência, à sua personalidade, ao seu modo de ver e sentir as coisas. O seu ser permanecerá na placa, ou seja, na sua obra, mesmo depois de o poeta ter morrido ou esquecido. A poesia confere-lhe imortalidade.

Análise de "Esta tarde a trovoada caiu", de Alberto Caeiro

    Podemos entender este poema de Alberto Caeiro, o quarto de O Guardador de Rebanhos, datado de 10 de maio de 1914, como o real começo da obra, no seguinte sentido: no poema I, Caeiro definiu-se; no II, definiu o modo como encarava a realidade, clarificando a sua postura anti-metafísica meditativa; no III, libertou-se das suas influências literárias, pois poderiam poluir a sua escrita, se optasse pela imitação dos seus modelos. Nesta composição em concreto, Caeiro vira a sua atenção para o exterior, para a realidade, o mundo que ele capta agora através apenas das sensações.
    O sujeito poético abre o poema referindo-se à trovoada, exatamente o fenómeno natural que mais fascinava e aterrorizava Fernando Pessoa, nomeadamente os relâmpagos, como contou a sua irmã Henriqueta Dias em entrevista ao “Jornal de Letras” em 1985. Almada Negreiros contava que, certo dia, no Martinho da Arcada, café predileto do poeta, estava sentado à mesa com Pessoa quando rebentou subitamente uma fortíssima tempestade. Ele levantou-se e foi à porta do café. No momento em que retornou à mesa, Pessoa estava escondido debaixo da mesa. Almada, então, fez o seguinte: “Puxei-o. Pálido como defunto transparente. Levantei-o. Inerte senão morto. Pus-lhe os gestos de sentar-se e apoiar-se de corpo sobre a pedra da mesa.” O próprio Fernando Pessoa, em carta ao seu amigo Mário Beirão, qualifica o seu medo das trovoadas como uma “terrivelmente torturadora fobia”.
    A primeira parte da descrição do fenómeno por parte do sujeito poético é pautada pelo paganismo: “Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do céu abaixo (…) / Como alguém que duma janela alta / Sacode uma toalha de mesa, / E as migalhas, por caírem todas juntas, / Fazem algum barulho ao cair”. A metáfora sugere que existem presenças divinas por detrás desse fenómeno natural. Embora divinas, essas presenças têm hábitos humanos: o paganismo passa também pela aproximação das divindades de quem as reverencia. Essa aproximação prossegue nos versos seguintes: “Os relâmpagos sacudiam o ar (…) / Como uma grande cabeça que diz que não”.
    O sujeito poético declara não sentir medo da trovoada, nomeadamente dos relâmpagos, mesmo tratando-se de um fenómeno terrível, como indiciam as comparações com um pedregulho enorme a rolaer encosta abaixo e da chuva com alguém a sacudir as migalhas de uma toalha de mesa de uma janela aberta, que, por caírem juntas, fazem barulho ao cair, sugerindo a violência, o ruído dos trovões, bem como a intensidade da chuva, que “enegreceu os caminhos”. No entanto, dá por si a rezar a Santa Bárbara, a santa protetora contra as trovoadas, cujo dia é 4 de dezembro. Essa contradição aponta para o fingimento: se o «eu» tivesse medo, não faria sentido apelar a ser como a Natureza, dado que não se teme o que é nosso semelhante. O sujeito poético justifica essa ausência de medo por se sentir “ainda mais simples / DO que julgo que sou…”. É como se estivesse consciente de que está a passar por um processo, em quem vai abandonando a complexidade que ainda existe nele.
    Isto significa que, afinal, o pastor não se sentia verdadeiramente simples. A figura do pastor terá impressionado Fernando Pessoa pela simplicidade que lhe é associada e terá sido motivada por uma leitura de juventude, concretamente o poema “The Shepherdess”, da autoria de Alice Meynell. Rezar a Santa Bárbara é um gesto mais simples, mais comum, ou seja, é o que um pastor faria ao ver-se, e ao seu rebanho, envolvido numa tempestade com aquela intensidade. No caso de um intelectual, o apelo à religião seria ridículo e inócuo porque tratar-se-ia de nova superstição. Tal não sucede, porém, com o «eu lírico, que opta pela simplicidade.
    Depois de rezar, o sujeito lírico sugere que duvida da crença simples na Santa: “Sentia-me alguém capaz de acreditar em Santa Bárbara… / Ah, poder crer em Santa Bárbara! / (Quem crês em Santa Bárbara, / Julgará que ela é gente visível, / Ou que julgará dela?”. Se antes rezava para ser mais simples, depois de rezar, duvida até da crença simples na Santa. Na realidade, nem Santa Bárbara existe, pois a única existência é a Natureza: “(Que artifício! Que sabem / As flores, as árvores, os rebanhos, / De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore / Se pensasse nunca podia / Construir santos nem anjos…”. O sujeito poético nega o artifício da religião, que cria santos e anjos a partir da imaginação humana, por oposição à simplicidade e à pureza da Natureza, que não pensa nem constrói ficções produto da imaginação humana. Ele valoriza e identifica-se com as flores, com as árvores, com os rebanhos, elementos naturais que não pensam, não sabem nada de santos, nomeadamente de Santa Bárbara, a padroeira contra as tempestades, mas que existem harmoniosamente com os demais elementos.
    Recorrendo ao modo condicional, o sujeito poético coloca a hipótese de “julgar que oi sol / É Deus, e que a trovoada / É uma quantidade de gente / Zangada por cima de nós…”, ou seja, de seguir o caminho daqueles que explicavam fenómenos e elementos da Natureza por meio da religião, da crença em entidades divinas. Encontramos aqui uma dupla visão: a de certos homens que inventam deuses e mitos para explicar aquilo que não compreendem e a do «eu», que nega essas crenças (a negação é logo antecipada pelo uso do condicional), valorizando a sensação e a observação da Natureza, sem a tentar compreender, recorrendo à razão e à fé. Daí que o sujeito lítico qualifique esses homens como “doentes e confusos e estúpidos” (enumeração e polissíndeto): “(…) como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade / E saúde em existir / Das árvores e das plantas!”. A antítese (por exemplo, os outros vs. «eu»; doença vs. saúde) torna claro o contraste entre a estupidez e a doença dos outros homens, por recorrerem à religião e à crença para conseguirem explicar o que não compreendem, e a simplicidade e a saúde em simplesmente existir por parte dos elementos naturais, que não pensam e, por isso, não sofrem, limitando-se a existir. O sujeito lírico vê o erro dos outros homens e deixa de ser seu semelhante. Como? Pensando nisso.
    Na última estrofe, o «eu» revela que o facto de pensar o deixa triste (“menos feliz”), sombrio, doente e soturno, ou seja, o facto de pensar nesse contraste entre a sua visão da Natureza e a dos outros homens. Seguidamente, ele compara esse seu estado de espírito com um dia “em que todo o dia a trovoada ameaça / e nem sequer de noite chega.”, isto é, a trovoada ameaça, mas não chega, não se concretiza, ou seja, um dia de uma expectativa frustrada e de angústia permanente. Pode depreender-se que o sujeito poético se sente infeliz por não conseguir comunicar com os outros, por não comungar nem compreender a sua fé.
    O sujeito lírico quer ser natural, quer ser como a Natureza, porém acaba por reconhecer que não pode ser somente a Natureza, visto que é, afinal, e será sempre, um ser humano. É nessa qualidade que deverá encontrar o seu lugar na Natureza. “Se procurar a sua própria completa anulação, nunca poderá fazer parte de algo maior do que ele mesmo.” Deste modo, ficará no limbo: “(…) sombrio e adoecido e soturno / Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça / E nem sequer de noite chega…”.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ai amor, amore de Pero Cantone", de Fernão Soares de Quinhones

    Esta cantiga, da autoria de Fernão Soares de Quinhones, apresenta a curiosidade de começar pelo refrão, que depois repete, como é habitual, no final de cada uma das cinco sextilhas.
    No que diz respeito ao seu tema, o professor Rodrigues Lapa propôs o amor, desde logo pelo facto de a palavra ocorrer vinte e sete veze, incluindo a forma paragógica, todavia Filgueira Valverde vê no vocábulo «amor» uma “palavra cuberta” (isto é, um termo cujo verdadeiro sentido está oculto ou disfarçado por, por exemplo, um duplo sentido) com o significado de “vinho”.
    O poema abre com a referência ao amor de Pero Cantone, uma figura de difícil identificação, embora se suponha que se possa tratar do irmão de Rui Canton, que surge numa cantiga incompleta de João Airas de Santiago (“Rui Martiiz, pois que este assi”), e que ambos fossem cavaleiros de origem leonesa. O segundo verso reitera o nome «amor», qualificando-o como “tam saboroso” e “sem tapone”. Ora, embora aplicável noutros contextos, o adjetivo «saboroso» pertence ao campo semântico alimentar, pelo que suporta a tese do vinho. Por outro lado, o vocábulo «tapone» significava tampão, rolha, aparecendo numa das Cantigas de Santa Maria, exatamente com o sentido de rolha de uma pipa de vinho. Desta forma, optando por tal linha de leitura, o refrão inicial sugere que o amor de Pero Cantone é o vinho, que é saboroso e derramado sem reservas.
    Os versos 3 e 4 parecem confirmar a tese do vinho, pois, além de o qualificarem como «viçoso» e «são» (dupla adjetivação), recordam a circunstância de os vinhos medievais não se conservarem facilmente, havendo alguns que rapidamente se tornavam impróprios para consumo. Yves Renouard especifica que começavam a azedar ao fim de seis meses, tornando-se, a partir da primavera, cada vez menos bebíveis, até que, em maio, deixava de haver vinhos disponíveis. Um documento de 1391, publicado por Humberto Baquero Moreno, confirma esta informação, quando refere, a propósito dos vinhos vermelhos provenientes de cepas coimbrãs, “que se nom teem despois que ssom colheitas que 3 meses”. Nos dois versos seguintes, o trovador alude a duas personagens de difícil identificação. O primeiro é Chorrichão será provavelmente um dos membros da linhagem galega dos Churrichãos, talvez Gonçalo Fernandes Churrichão, que deposou Sancha Anes de Montenegro, de quem teve um filho, Rica Fernandes, a qual lhe deu dois filhos, e Sancha Fernandes de Orzelhon, com quem gerou doze filhos. É possível que a referência da cantiga esteja associada, não só a estes sucessivos casamentos, mas também a um episódio relatado pelo Nobiliário, o rapto de Sancha Rodrigues de Segamardi, quando esta teria seis anos de idade, com quem viveu até que, por pressão do arcebispo de Santiago, João Airas, parente da ofendida, e da restante linhagem, foi obrigado a casá-la com o seu filho primogénito, Fernão Gonçalves, o Farroupim. Seja ou não o Churrichão referido, a referência que lhe é feita na cantiga é obviamente uma alusão satírica. O segundo é Martim Gonçalves de Orzelho, também este de difícil identificação. Orzelhon é uma localidade galega pertencente à comarca de Ourense, mas era igualmente uma praça castelhana fortificada, próxima da fronteira entre os reinos de Leão e Castela, pelo que Martim Gonçalves seria provavelmente um cavaleiro desta última localidade. No entanto, a referência, no verso anterior, ao Churrichão parece indicar que se trataria de um cavaleiro galego. Convém também não esquecer que a terceira mulher desse mesmo Churrichão pertencia a esta mesma linhagem de Orzelhon, pelo que é possível que Martim Gonçalves fosse seu parente. Uma hipotética leitura aponta para que os dois indivíduos referidos constituam emblemas do amor forte e fecundo, em oposição ao de Pero Cantone.
    A segunda estrofe qualifica o amor de Pero Cantone como “tam delgado e tam frio” (dupla adjetivação no grau superlativo absoluto analítico), intensificando as suas qualidades. O termo «delgado» aparece na cantiga de Afonso X “Joan Rodríguiz foi osmar a Balteira”, aplicado ao órgão sexual masculino: “e, por que é grossa, non vos seja mal, / ca delgada pera gata ren non val”. Nesta cantiga, se entendido com o significado de «delicado», poderá constituir uma referência equívoca ao vinho cortado com água. Por sua vez, o adjetivo «frio» surge também em cantigas de Afonso X, quer em contexto sexual, quer apresentado como uma das razões admissíveis legalmente para o fim do matrimónio.
    O verso 10 faz-nos retornar ao campo do vinho (“mais nom creo que dure até o Estio”), confirmando que os vinhos medievais não iam além do meio da primavera, pois deixavam de ser bebíveis a partir do mês de maio, daí serem deitados fora por estarem estragados: “ca atal era outr’amor de meu tio, / que se botou a pouca de sazone”. Rodrigues Lapa atribui à forma verbal “botou” o sentido de “deitar fora”, no que é apoiado pelo Tentative Dictionary of Medieval Spanish e pelos capítulos especiais de Torres Novas das Cortes de Elvas de 1361,que fornece os equivalentes “embotar” e “debilitar”, a partir da Vida de Santo Domingo de Silos, de Berceo, e o artigo 4.º dos capítulos referidos alude a uns vinhos que “se azedam e botam per tal guisa que nom ham deles prol.” Na esteira da professora Elsa Gonçalves, a locução “a pouca de sazone” equivaleria a “o vinho que se estragou em pouco tempo”.
    A terceira estrofe abre com um verso pontuado por novo adjetivo: “pontoso”. Segundo o professor Rodrigues Lapa, esta palavra significaria “fino, agudo, delicado”. De acordo com o Grande Dicionário de Morais, “pontoso” designa o indivíduo “escrupuloso em pontos de honra; pundonoroso, brioso”. José Pedro Machado faz derivar este qualificativo de “ponto” e atesta-o pela primeira vez na écloga Encantamento, de Sá de Miranda, mas esta observação é contrariada por esta cantiga de Fernão de Quinhones, a única da lítica galego-portuguesa onde o termo figura. Além disso, o trovador aconselha a provar esse «amor», pois fará chorar (pela sua elevada qualidade ou por estar impróprio para consumo?)m e assemelhar-se-á ao “amor de Dom Palaio de Gordone”, uma nova personagem de difícil identificação. Pelo nome, poderemos supor que seria talvez leonês, de uma linhagem sediada em Gordón (possivelmente a atual localidade de Gordoncillo, a sul da cidade de Leão). Segundo Carlos Alvar, um D. Paio de Gordón aparece como tenente do castelo de Corel (atual Corella, em Navarra) em 1199. Todavia, esta cronologia parece demasiado recuada em relação à data provável da composição da cantiga.
    O verso 22 alude à conveniência de o vinho de Pero Cantone estagiar, mais do que terá acontecido na realidade, antes de proceder à sua venda e consumo. É o que se depreende dos versos 22 a 24, que aludem ao soterramento, que pode significar “em repouso” ou, mais particularmente, “conservação por baixo da terra”. O estágio subterrâneo é característico de alguns vinhos, como, por exemplo, o de Boticas, por isso sugestivamente chamado “vinho dos mortos”. Apenas o soterramento pelo período de um ano poderia permitir que alguém lucrasse com este vinho e daí a alusão à “boa rençone” ou “boa vençone” (v. 24). “Vençone” queria dizer “venda” e provém de “venditione”. Esta prática tradicional de enterrar o vinho para melhorar a sua qualidade tem a sua origem associada aos anos das Invasões Francesas, época em que os produtores de vinho transmontano, para o esconde dos soldados sequiosos, enterravam-no e, com o uso repetido do método engendrado em desespero de causa, acabaram por constatar que sepultar a bebida por tempo suficiente tinha como resultado a melhoria da sua qualidade. Por isso, continuaram a dar-lhe o mesmo tratamento e batizaram-no de vinho dos mortos.
    Na última estrofe, o vinho é caracterizado como “pungente”, adjetivo que significa “que nasce”, “que desponta”, pelo que caracteriza o vinho novo, mas também pode querer dizer “que pica”. Ora, o nome que lhe corresponde – “pongimento” – consta com esse sentido de uma lista de nove sabores que aparece no apócrifo aristotélico Segredo dos Segredos. Dela fazem parte “dolcura amargor salgado E temperado E azedo E sen sabor E pongimento E secura E agudeza”. Nesta listagem, “pongimento” não se confunde com “azedo”, o que parece diminuir a hipótese de o amor de Pero Cantone se ter estragado por ter azedado.
    A enóloga Marsilla Arroza escreveu um tratado onde aborda uma doença chamada “picado” ou “repunte” ou “avinagramento”. A partir desse texto, é possível encontrar um significado de “pungente” mais adequado à cantiga. São os vinhos jovens os que estão mais sujeitos ao mal do “picado”, que é frequentemente causado por oxidação do álcool, resultante de contacto indevido com o ar, e por má fermentação. Ora, o “amor” de Pero Cantone aproxima-se muito deste perfil: é qualificado como «viçoso», pelo que deve tratar-se de um vinho novo; é dito “sem tapone”, ou seja, sem rolha para vedar a boca das pipas, o que permite a entrada do ar no recipiente e, deste modo, precipita a deterioração do vinho. Mais especulativo é ligar o desejo de que o amor de Pero Cantone fique em “remordente”, com a necessidade de ter uma fermentação adequada. Como a fermentação faz desaparecer a maior parte do açúcar contido no mosto e o substitui pelo álcool, ajudando assim à conservação do vinho, não admira que o amor de Pero Cantone dure pouco e seja delgado. Com efeito, no capítulo do Leal Conselheiro sobre o pecado da gula, D. Duarte recomenda que se beba “vynho o mais do tempo com duas partes daugua. E que seja delgado, (…)”, adjetivo explicado por Piel como “fraco, pouco alcoólico”. Aliás, no verso 9, a ditologia composta por «delgado» e «frio» tem caráter sinonímico, porque o segundo qualificativo se aplica ao vinho que não é muito alcoólico.
    Esta cantiga fala, portanto, do vinho de Pero Cantone, cuja efemeridade natural, semelhante à dos outros vinhos medievais, é agravada por deficiências de preparo que impedem a sua comercialização com lucro. A cantiga ficciona a deterioração rápida do vinho no próprio tempo que demora a ser cantada e ouvida, pois começa por afirmar que ele é são, na primeira estrofe, e acaba, na última, por proclamar o seu pungimento.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt/, “À primeira vista, parece tratar-se de uma sátira a um apaixonado que jura um amor eterno e pungente, mas de cuja duração e sinceridade se duvida. No entanto, pelas diversas alusões da cantiga, talvez se possa entender que o verdadeiro amor desta figura, Pero Cantone, seria o vinho (e as declarações de amor feitas sob o seu efeito). Uma outra hipótese de leitura é a de a composição ser uma espécie de cantiga de amigo parodística, dita por uma mulher – que confessaria os seus amantes face ao platonismo do tal Pero Cantone. Vicente Beltran sugere ainda a hipótese de a cantiga se relacionar, de alguma forma, com os problemas financeiros e familiares para os quais a biografia do trovador parece apontar. A dupla referência, que encontramos na cantiga, a um tio e um parente do trovador poderá dar alguma plausibilidade a esta hipótese. São pistas de leitura que o leitor poderá ou não seguir.
    A cantiga é ainda curiosa pelo emprego que faz do «e» paragógico nas terminações nasais em «on» (“cantone”, “tapone”, etc.) – o que poderá ser um recurso para acentuar o ridículo, ou um mero arcaísmo gráfico dos copistas.”

Bibliografia:
cantigas.fcsh.unl.pt
“Medioevo y literatura”, João Dionísio

Análise da cantiga "Agora oí d’ua dona falar", de Fernão Rodrigues de Calheiros

    Esta cantiga de escárnio e maldizer é constituída por duas sextilhas, antecedidas por uma rubrica que clarifica que o poema se centra numa dona que tinha uma ligação com um criado chamado Vela, como se verá na primeira estrofe.
    O verso inicial remete para a cantiga de amor e a sua temática, a partir da referência a uma dona, cuja fama chega ao conhecimento do sujeito poético, antes mesmo de a conhecer pessoalmente, o atrai e desperta nele o amor “de longe”. Ele ouviu falar dessa dona (“Agora oí d’ua dona falar”), a quem quer bem (“que quero bem”), porém não a conhece, nunca a viu (“pero a nunca vi”), pois ela soube guardar-se muito bem, isto é, soube preservar a sua boa reputação (“por tam muito que fez por se guardar”). Como? A mulher guardou-se, pondo “vela sobre si”. Ora, o uso do nome «Vela» é ambíguo, dado que se presta a um duplo entendimento: por um lado, a expressar “pôr Vela sobre si” significava, em sentido corrente, “pôr-se sob vigilância”, resguardar-se, conservar a sua reputação; por outro, «Vela» é um nome de um seu criado, como nos informa a rubrica, um homem de condição social inferior, portanto um par inadequado para uma dona, uma mulher nobre (“por se guardar de uma nomeada, / filhou-s’e e pôso Vela sobre si”). “Pôso” é uma forma arcaica de «pôr», contudo presta-se ao equívoco “pôs o”. Neste sentido, “pôso Vela sobre si” constitui uma alusão de caráter sexual bem explícita: a dona “pôso Vela sobre si.”, isto é, pôs o criado sobre si.
    Em suma, na primeira estrofe, o trovador dirige a cantiga a uma dona não identificada, que mantinha uma relação com um seu criado, mas procurava resguardar-se da má fama.
    José Carlos Ribeiro Miranda, professor da Universidade do Porto, considera que esta mulher era solteira e fez-se monja, mesmo contra a vontade do pai, a cuja guarda se encontrava (“nunca end’ouve seu padre sabor”; “e, a pesar dele, sem’o seu grado”), para se “guardar”. A referência ao pai permite questionar os papéis tradicionais de pais e filhas neste contexto: tradicionalmente, são aqueles que velam as filhas, que as “guardam”, porém, na cantiga, é a filha que resolve “pôr vela” sobre si própria. Tendo em conta a epígrafe da composição poética, na realidade a «vela» que a dona decidiu pôr sobre si é o “peom Vela”, numa “aequivocatio” que é esclarecido pelo pequeno texto em prosa que antecede o poema. Deste modo, podemos concluir que a composição poética configura uma crítica implícita às “liberalidades” paternas. Deste modo, a dona conseguiu iludir a vigilância paterna por não estar devidamente “guardada”.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "As mias jornadas vedes quaes som", de Afonso Anes do Cotom

    Afonso Anes do Cotom é um trovador provavelmente de origem galega, integrante do círculo do Infante Afonso, futuro Afonso X, autor de 19 poesias trovadorescas, além de três de autoria duvidosa, dentre as quais “As mias jornadas vedes quaes som”, uma composição incompleta que se situa a meio caminho entre a cantiga de amor mais ou menos jocosa e a sátira às regras do amor cortês, nomeadamente a do segredo sobre a identidade da mulher amada. O poema, o que chegou até nós pelo menos, contém rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático abbacca, e versos decassílabos (As | mi | as | jor | na | das | ve | des | quaes | som |) e eneassílabos (meus | a | mi | gos | me | te | d’i | fe | meu |).
    Através de uma apóstrofe dirigida aos amigos (“meus amigos”), o sujeito poético convida-os a tomar conhecimento das etapas da sua viagem, que apresenta uma estrutura circular, visto que começa e termina em Castro, provavelmente Castronuño, uma povoação a sul de Valladolid, embora também se possa referir a uma pequena localidade chamada Castro de Fuentidueña, a sul de Burgos, na província de Segóvia, ou Castro Urdiales. A viagem do sujeito poético incluiu passagens por Burgos (capital da província do mesmo nome, em Castela-Leão, e uma das mais importantes paragens do Caminho de Santiago), Palença (cidade e província de Castela-Leão, a norte de Valladolid) e Carrion (Carrión de los Condes, município da província de Palencia, no Caminho de Santiago). A enumeração de lugares sugere que se tratou de um percurso árduo e contínuo que implicou esforço físico e, quiçá, emocional. Metaforicamente, esta viagem pode representar a jornada que é a vida e os desafios que esta implica. Como consequência dessa viagem, o sujeito poético tem uma aparência de felicidade, tal não passa exatamente disso – aparência –, pois, na realidade, sente-se muito triste. Ou seja, há aqui uma dualidade entre a aparência externa e o sentir autêntico interior, o que denuncia talvez a necessidade de manter uma imagem pública distinta do sentimento real.A segunda estrofe esclarece a razão do sofrimento do trovador: uma «dona”, uma mulher. O uso do nome «dona» remete-nos para a linguagem da cantiga de amor, bem como para um dos traços centrais do código de amor: a não identificação da mulher amada, desde logo porque era casada. A forma verbal «andar» sugere não tanto movimento físico, mas o estado emocional do «eu». De seguida, enumera as possíveis condições sociais da mulher: casada, viúva ou solteira ou monja (os três nomes enumerados referem-se à mesma figura, a da freira; o nome «touquinegra» designa uma freira que veste uma touca negra, uma designação bastante comum na Idade Média). Ironicamente, o trovador satiriza, com essas enumerações, as regras do amor cortês, nomeadamente a referente ao segundo sobre a identidade da mulher amada. Qualquer mulher poderia ser aquela que o trovador elogiava nas suas cantigas, independentemente do seu estado civil, um esquema que se repetia nas várias composições poéticas, com diferentes figuras femininas. Ou seja, o poeta compunha sucessivas cantigas em que exaltava a(s) mulher(es) e manifestava a «sua» coita por não ser correspondido amorosamente por ela(s), num esquema repetitivo. Note-se que até as mulheres que deveriam ser intocáveis ou inacessíveis, como as religiosas, pode ser objeto de desejo ou de sofrimento.
    O verso 11 parece constituir um alerta irónico do «eu» dirigido aos amigos, no sentido de se guardarem, de se precaverem. A influência e o sofrimento causado pela dona são tão intensos que mesmo aqueles que creem estar seguros devem estar atentos e precavidos. E usa como exemplo a sua própria situação: “e ar se guarde quem s’há por guardar, / ca mia fazenda vos dig’eu sem falha” (vv. 11-12). A concluir a estrofe, o sujeito poético suplica a Deus que o ajude e lhe valha, mas que não o faça relativamente a “quem mi mal buscar”, perífrase que refere a mulher que o faz / faça sofrer. Ora, o verso 14 desobedece às regras do amor cortês, ao código da “fin’amors”, segundo o qual o trovador deveria respeitar e servir sempre a «senhor», sem a desrespeitar ou causar mal.
    O primeiro verso da terceira estrofe, o último completo que chegou até nós, anuncia que o trovador nada mais irá revelar sobre a mulher que lhe causa dor e sofrimento, sendo que, na realidade, nada destapou sobre ela.

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana


VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


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