O Canto XVI é dominado pela ação de
duas personagens inimigas: Heitor e Pátroclo. Num plano secundário, situa-se
Aquiles, cujo orgulho ferido o continua a impedir de regressar à batalha e a
agir de forma nada humana e patriótica, pois não revela, mais uma vez, qualquer
preocupação com o destino dos seus compatriotas e, em última análise, da sua
pátria. Já a atitude de Pátroclo é absolutamente diversa: ele chora ao constatar
a situação dramática e acusa Aquiles de ser frio e insensível, acusando-o de
não ser filho de deuses e humanos, mas do oceano e das rochas, forças que não
possuem sentimentos. Neste contexto, Homero cria um momento de ironia trágica
relativo ao destino de Pátroclo: Aquiles reza pelo seu sucesso na batalha
contra os Troianos e pelo seu regresso são e salvo, mas o poeta lembra ao
leitor/ouvinte que o segundo termo da oração não se concretizará. Este passo
recorda, de alguma forma, o poema “O menino de sua mãe”, da autoria de Fernando
Pessoa, mas especificamente o momento em que a mãe e a criada rezam, lá longe,
em casa, pela saúde e bem-estar do jovem, quando, na realidade, já está morto.
Relativamente à figura de Heitor, o
seu tratamento nesta fase da Ilíada parece diferente dos cantos
iniciais. De facto, até aqui ele era o guerreiro mais valente e corajoso do
exército troiano, o líder incontestado, heroico e exemplar, que chega a
censurar fortemente o próprio irmão por se recusar a combater. Porém, chegados
a este ponto, somos confrontados com um Heitor que foge da batalha após a
entrada em combate de Pátroclo abandonando as tropas que comanda, certamente
convencido de que se tratava de Aquiles. O seu companheiro Glauco envergonha-o
aquando da primeira fuga, tarefa que cabe ao próprio tio quando a segunda tem
lugar, embora neste caso saibamos que foi Zeus quem o tornou cobarde
momentaneamente.
O desejo de proteger o corpo de
Sarpédon fá-lo retornar à batalha e enfrentar Pátroclo, mas, até pelo que foi
dito, o percurso dos dois é marcado por um contraste óbvio: à medida que
Pátroclo se glorifica, Heitor vê a sua glória pessoal de crescer. Além dos dois
recuos durante a batalha já descritos, a morte do inimigo às suas mãos nada tem
de heroico ou honroso, visto que Apolo retirou previamente a armadura e as
armas do guerreiro grego, permitindo que um jovem soldado troiano o apunhalasse
pelas costas e só então Heitor entra em cena para dar o golpe final. Em suma,
os deuses fizeram a parte essencial do trabalho de conduzir à morte de
Pátroclo, não Heitor. Neste contexto, o amigo de Aquiles morre em glória, pois,
antes de ser liquidado da forma que conhecemos (foram precisas três figuras
para tal, incluindo um deus, e parte dos ataques foi desferida cobardemente,
pelas costas), elimina vários inimigos e retira-lhes a armadura, algo que, como
já vimos em cantos anteriores, era muito importante na época.
Uma última nota para a relação entre
os deuses e o destino. Tendo em conta os eventos narrados neste canto, é lícito
concluir que o destino não é imutável; pelo contrário, ele pode ser contrariado
e mudado, visto que Zeus, na iminência da morte do seu filho Sarpédon,
considera abrir uma exceção e alterar o destino, poupando a sua vida. No
entanto, nem o próprio pai dos deuses se pode dar a esse luxo sem que existam
consequências. Como Hera o adverte, se Zeus salvar Sarpédon, deixará de ser
respeitado pelos restantes deuses e serão levados a concluir que poderão fazer
o mesmo, o que acarretará problemas imprevisíveis.