Português: Análise do Canto XVII da Ilíada

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Análise do Canto XVII da Ilíada

             O Canto XVI é dominado pela ação de duas personagens inimigas: Heitor e Pátroclo. Num plano secundário, situa-se Aquiles, cujo orgulho ferido o continua a impedir de regressar à batalha e a agir de forma nada humana e patriótica, pois não revela, mais uma vez, qualquer preocupação com o destino dos seus compatriotas e, em última análise, da sua pátria. Já a atitude de Pátroclo é absolutamente diversa: ele chora ao constatar a situação dramática e acusa Aquiles de ser frio e insensível, acusando-o de não ser filho de deuses e humanos, mas do oceano e das rochas, forças que não possuem sentimentos. Neste contexto, Homero cria um momento de ironia trágica relativo ao destino de Pátroclo: Aquiles reza pelo seu sucesso na batalha contra os Troianos e pelo seu regresso são e salvo, mas o poeta lembra ao leitor/ouvinte que o segundo termo da oração não se concretizará. Este passo recorda, de alguma forma, o poema “O menino de sua mãe”, da autoria de Fernando Pessoa, mas especificamente o momento em que a mãe e a criada rezam, lá longe, em casa, pela saúde e bem-estar do jovem, quando, na realidade, já está morto.

            Relativamente à figura de Heitor, o seu tratamento nesta fase da Ilíada parece diferente dos cantos iniciais. De facto, até aqui ele era o guerreiro mais valente e corajoso do exército troiano, o líder incontestado, heroico e exemplar, que chega a censurar fortemente o próprio irmão por se recusar a combater. Porém, chegados a este ponto, somos confrontados com um Heitor que foge da batalha após a entrada em combate de Pátroclo abandonando as tropas que comanda, certamente convencido de que se tratava de Aquiles. O seu companheiro Glauco envergonha-o aquando da primeira fuga, tarefa que cabe ao próprio tio quando a segunda tem lugar, embora neste caso saibamos que foi Zeus quem o tornou cobarde momentaneamente.

            O desejo de proteger o corpo de Sarpédon fá-lo retornar à batalha e enfrentar Pátroclo, mas, até pelo que foi dito, o percurso dos dois é marcado por um contraste óbvio: à medida que Pátroclo se glorifica, Heitor vê a sua glória pessoal de crescer. Além dos dois recuos durante a batalha já descritos, a morte do inimigo às suas mãos nada tem de heroico ou honroso, visto que Apolo retirou previamente a armadura e as armas do guerreiro grego, permitindo que um jovem soldado troiano o apunhalasse pelas costas e só então Heitor entra em cena para dar o golpe final. Em suma, os deuses fizeram a parte essencial do trabalho de conduzir à morte de Pátroclo, não Heitor. Neste contexto, o amigo de Aquiles morre em glória, pois, antes de ser liquidado da forma que conhecemos (foram precisas três figuras para tal, incluindo um deus, e parte dos ataques foi desferida cobardemente, pelas costas), elimina vários inimigos e retira-lhes a armadura, algo que, como já vimos em cantos anteriores, era muito importante na época.

            Uma última nota para a relação entre os deuses e o destino. Tendo em conta os eventos narrados neste canto, é lícito concluir que o destino não é imutável; pelo contrário, ele pode ser contrariado e mudado, visto que Zeus, na iminência da morte do seu filho Sarpédon, considera abrir uma exceção e alterar o destino, poupando a sua vida. No entanto, nem o próprio pai dos deuses se pode dar a esse luxo sem que existam consequências. Como Hera o adverte, se Zeus salvar Sarpédon, deixará de ser respeitado pelos restantes deuses e serão levados a concluir que poderão fazer o mesmo, o que acarretará problemas imprevisíveis.

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