Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.
O poema
“Mulher ao espelho” faz parte da obra Mar Absoluto, publicado em 1945.
Começando
a análise pelo título, um espelho é um objeto que, simbolicamente, reflete a
verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Assim sendo, no
caso desta composição poética, sugere a ideia de autorreflexão numa busca
existencial, nas circunstâncias de uma mulher.
O poema
abre com o advérbio de tempo «hoje», que presentifica o momento da reflexão e o
identifica com o momento da leitura. Os pronomes «esta» e «aquela» indicam a
proximidade e a distância, que podem ser espacial ou temporal: «esta» de hoje
e/ou «aquela» de ontem ou de amanhã. O estar entre estas dimensões estende-se à
reflexão existencial, pois o sujeito poético coloca-se no lugar do não ser, a
morte: “pois, seja qual for, estou morta.”
Deste
modo, podemos considerar que o vocábulo «morta» se refere à morte existencial.
É preciso ter em conta que, filosoficamente, a morte pode ser entendida como o
início de um novo ciclo de vida, como o fim de um ciclo de vida ou como
possibilidade existencial. No caso do poema, aplica-se este último sentido,
dado que o sujeito poético olha para a morte como o deixar de existir ou o
deixar de ser. Presentemente, o «eu» não é mais nada, o que é confirmado pelo
facto de o verso terminar em ponto final: ela está morta, não tem mais o que
viver.
A
partir da aceitação da morte, o «eu» dá início a uma reflexão sobre as diversas
facetas que teve ao longo da vida: «loura», «morena». Para isso, refere o nome
de quatro mulheres (Margarida, Beatriz, Maria, Madalena), referências a personagens
literárias. De facto, Margarida refere-se a Marguerite Gautier, personagem de A
Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas, e da Traviata, ópera
de Verdi, ambas contando a história de uma mulher mundana; Beatriz relaciona-se
com Beatrice Portinari, amada do poeta Dante, imortalizada por este na Divina
Comédia e na Vita Nuova, como um ser puro e ideal; Maria é,
obviamente, a Virgem, mãe de Jesus Cristo, símbolo religioso da pureza e
perfeição; por último, Madalena é a prostituta bíblica, exemplo da mulher
pecadora e arrependida. Estilisticamente, a anáfora dos versos 5ª 7, as formas
verbais no pretérito perfeito do indicativo e os adjetivos antitéticos (loura /
morena) sugerem as mudanças vividas pelo sujeito poético em busca da própria
imagem. Além disso, a antítese «loura»/«morena» representa, antes de mais, a
busca feminina pela beleza e perfeição físicas: “Quero apenas parecer bela”.
Mas não
é apenas o físico que está em questão. De facto, o «eu» reflete também sobre a personalidade,
como se pode constatar pela enumeração dos quatro nomes femininos, alternando
as imagens da mulher santa, pura, e da mulher sensual e vaidosa. Esta
referência a figuras femininas de personalidades divergentes aponta para as
mudanças de caráter e sugere a existência de alguma conflitualidade no que diz
respeito à autoimagem do «eu», mostrando a sua perturbação por ter sido tantas,
procurando agora encontrar-se ou ser alguém. De certo modo, este passo do poema
recorda a questão da despersonalização e da multiplicidade de «eus» de Fernando
Pessoa. Basta pensar, por exemplo, no poema “Não sei quantas almas tenho”.
O
último verso da estrofe mostra, através das formas verbais no pretérito
perfeito («pude», «quis»), evidencia a frustração do sujeito poético por nunca
ter sido o que queria ser: “Só não pude ser como quis.” Sucede que, com a
definição do desejo pela negativa, levanta-se a dúvida: o que queria o «eu»
ser?
A
terceira estrofe é toda ela uma interrogação. O sujeito poético, ao referir-se
à cor fingida do seu cabelo e do seu rosto, critica o facto de o mundo ser
feito de aparências. De facto, tudo parece ser «tinta», maquilhagem,
aparentemente muito bela, mas só existe para esconder ou disfarçar quem ou o
que realmente é. Deste modo, as características da cor do cabelo e do rosto
estão associadas à ideia de falsidade e superficialidade; tudo – as pessoas, o
mundo, a vida, o contentamento, o desgosto – é ilusório, é tinta.
A
transitoriedade de tudo e a efemeridade da vida são temas presentes também
nesta estrofe, tendo em conta que a tinta representa a ilusão, o engodo que vai
da aparência pessoal (cabelo e rosto) para o mundo e a vida, e atinge o íntimo
do «eu» (o contentamento, o desgosto),
ou seja, todos os sentimentos se tornam momentâneos e passageiros.
A
quarta estrofe abre com a referência a transformações ocorridas no exterior do
sujeito lírico. Assim, exteriormente manifesta o desejo de ser como a moda o determinar.
Neste contexto, a moda pode representar a busca do próprio estilo, todavia o bom
gosto que ela dita escraviza e aprisiona os indivíduos, promovendo a
despersonalização do «eu», que acaba por incorporar-se no todo e perder a noção
da própria imagem.
Por
outro lado, como a moda é um fenómeno transitório, a moda representa tudo o que
é superficial e passageiro, associando-se à vaidade dos seres humanos; trata-se
de um estereótipo da beleza que se liga à imagem exterior. Tudo isto tem
consequências para o sujeito poético: a morte. E quem é o responsável por esse
desfecho? Exteriormente, o «eu» segue a moda; por dentro, perde-se, morre: “Por
fora, serei como queira / a moda, que me vai matando.”
A gradação
dos versos 15 e 16 (“Que me levem pele e caveira ao nada”) sugere que, para o
«eu», a morte é natural e esperada. A presença da morte acentua-se nas duas
últimas estrofes, aparecendo, neste caso, ligada ao domínio do religioso.
Porquê e para quê? Se é verdade que a busca interior lhe trouxe dor e
sofrimento, ele espera que mais tarde terá a recompensa de encontrar Deus,
falar com ele. A forma verbal «viu», no pretérito perfeito do indicativo,
aspeto perfetivo, indica uma ação concluída (a lembrança do sofrimento),
enquanto «falará», no futuro do indicativo, remete para a certeza do encontro
com a divindade.
Filosoficamente,
a morte representa a libertação do sofrimento e das preocupações, não
constituindo um fim em si mesma. Pelo contrário, “mors ianua vitae” (a morte é
a parte da vida), isto é, ela constitui a libertação da alma e uma forma de a
pessoa se arrepender dos pecados. Por outro lado, a visão religiosa da morte
aponta para a ideia de eternidade. Deste modo, o fim da existência deixa de
constituir algo terrível e dramático e passa a ser encarado como uma forma de
se tornar eterno e alcançar o paraíso, proporcionando descanso para a alma, o
espírito. A presença do polissíndeto (“olhos, braços e sonhos seus / e morreu
pelos seus pecados” – vv. 18-19) sugere as etapas necessárias para se obter a
redenção.
O primeiro
verso da última estrofe indicia a libertação do sujeito poético dos seus
pecados, o espírito purificado da cabeça aos pés, quando se concretizar o
encontro com Deus: “Falará, coberta de luzes, / do alto penteado ao rubro
artelho”. De seguida, no penúltimo verso é introduzido o símbolo da cruz e, no
último, o do espelho. Assim, algumas pessoas “expiram sobre cruzes”, isto é,
constroem um modo de vida assente nos princípios de uma religião, buscando um
Deus, mesmo que tal implique dor e sofrimento (as cruzes). Por seu turno, o
espelho representa a procura de si, seguindo as materialidades do mundo (a
beleza, a moda, a vaidade, etc.), numa tentativa de a pessoa se encontrar. Seja
como for, opte-se por qualquer uma das hipóteses, o desenlace será sempre o
mesmo: a morte, porque todos morremos.