O
sujeito poético começa por refletir sobre nomes que se gravam em agendas e aí
permanecem, sem qualquer utilidade ou préstimo, mas que não são apagados. Esses
nomes permanecem ao longo do tempo (“transitam de ano para ano”) por inércia ou
por negligência. Por vezes, a pessoa já nem se recorda das figuras a quem
pertencem, isto é, de quem são, daí o nome próprio constituir uma referência
obscura. Em suma, esses nomes perderam o seu significado e importância (porque
desapareceram da vida, por exemplo, pela morte, graças a um afastamento físico,
social, etc.), tratando-se unicamente de vestígios de um passado que ficou lá
bem atrás. Recorde-se, a este propósito, a história que Ricardo Araújo Pereira
contou sobre o número de telefone da sua avó, que ele não conseguiu apagar da
lista de contactos do seu telemóvel, porque, quando se preparava para o fazer,
lhe aparecia a mensagem Eliminar Avó.
Os
números de telefone das pessoas que conhecemos ao longo da vida e que guardamos
nas agendas perdem sentido com a passagem do tempo, acabando por se transformar
em meros “criptogramas”, isto é, em códigos indecifráveis. Esses números
indicam que, de facto, se cruzou com pessoas que se cruzaram com ele, mas entre
eles não se estabeleceu qualquer relação mais intensa ou profunda ou significativa.
Atente-se, a este propósito, no recurso ao verbo «cruzar» (repetição), neste
caso “cruzar-se com alguém que se cruza connosco”, que traduz essa ideia de pessoas
que se encontram vindas de direções opostas e, após um breve contacto, seguem
igualmente em sentidos contrários. Por isso, o «eu» afirma que trocou números
de telefone com outras pessoas «como se / trocássemos alguma coisa», expressão
que sugere o caráter vazio, oco e superficial dessa troca. Nos dois versos
seguintes, o sujeito poético desenvolve esta ideia, assente na temática da
mudança: como Camões escreveu, tudo muda na nossa existência. Neste caso, são
as pessoas que, de conhecidas, se tornam amigas e, tempos volvidos, passam a
desconhecidas. O que fará com que estas amizades terminem? Provavelmente, a
distância e o consequente esquecimento. Deste modo, parece apontar para a noção
de que as relações humanas são efémeras e instáveis, sujeitos à erosão do
tempo, que muda os seres e os seus sentimentos e emoções.
O «eu»
dispõe da possibilidade de apagar os nomes das pessoas que já não fazem parte
da sua vida da agenda, como se ele fosse velho e elas estivessem mortas, no
entanto os números permaneceriam na agenda, como uma praga de que se não
consegue libertar, «escritos / com tintas diferentes / e por vezes nas letras
erradas». Estes versos indiciam o facto de o «eu» ter dificuldade em se
desfazer dos números, dos contactos, que representam a passagem do tempo e as
marcas que deixa, nomeadamente a mudança que proporciona, bem como a desordem e
confusão que ocasionam: “e por vezes nas letras erradas”.
De
seguida, o sujeito poético conclui que não pode desfazer-se das suas agendas
(atente-se no recurso ao plural), onde guarda os números de telefone das
pessoas que conhecem, mas também não pode «começar uma todos os anos» (até
porque seria impraticável), como se fosse possível apagar o passado e recomeçar
constantemente (“todos os anos”) do zero. Reconhece, todavia, que ele mesmo
mudou e que, por isso, já não é o mesmo que era quando anotou esses números,
quando conheceu essas pessoas. Os dois pontos indiciam que se seguirá a
explicação desta ideia final e ela, de facto, não tarda.
Com
efeito, os números de telefone “observaram as minhas idades”, isto é, foram
testemunhas das mudanças que se operaram nele ao longo do tempo. O «eu» poderia
ligar para um desses números que guardou na agenda, porém o mesmo não lhe diz
nada, ou seja, não lhe desperta interesse, não lhe lembra nenhuma pessoa. Ainda
assim, poderia “contar-lhe tudo” o que viveu e sentiu, ou que vive e sente no
momento presente, a alguém que não se lembra dele, o que significa que as
mudanças não se operam somente no «eu», mas também no «tu». As pessoas
conhecem-se, aproximam-se e, posteriormente, afastam-se, porque as
circunstâncias assim o ditam.
Este
desfecho do poema deixa no ar uma vivência do «eu» caracterizada pela solidão e
pelo afastamento relativamente aos outros, bem como pela nostalgia de um passado
que foi diferente. Será que o sujeito poético, no fundo, tenta também resgatar
esse passado e a identidade perdidos? Na esteira de Camões e dos clássicos
renascentistas, a mudança no ser humano opera-se sempre para pior? Ou será que,
simplesmente, temos dificuldade em apagar algo que já fez parte da nossa vida?
Nota, a
finalizar, para o recurso constante ao plural («cruzámos», «connosco»,
«trocámos», etc.), sugerindo que aquilo que o «eu» vivenciou é um facto
extensível a todos os seres humanos. As agendas de contactos serão, afinal, o
símbolo das relações humanas que estabelecemos e perdemos ao longo da vida.