quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
Vida de Antero de Quental
Análise de "Antes de nós nos mesmos arvoredos"
- a Natureza
e o «nós» fazem parte da mesma realidade perene e estão sujeitos às mesmas
condições, neste caso, à passagem do tempo e do vento (vv. 1 a 4);
- neste caso,
há uma relação de semelhança entre o Homem e a Natureza (vv. 6 a 8);
- no entanto,
há uma diferença: a passagem do tempo faz parte do ciclo habitual da Natureza,
que dela não tem consciência; já para o Homem, porque é consciente da passagem
do tempo, é motivo de agitação e perturbação – ou seja, ele é caracterizado pela
constatação da finitude e da transitoriedade, bem como pela consciência do
tempo (“Passamos” – v. 5) e da inutilidade do esforço humano (“agitamo-nos
debalde” – v. 5).
- associa-se
ao destino do Homem e ao mito das três parcas, as irmãs que determinam o
destino dos deuses e dos seres humanos: Cloto segura e tece o fio da vida – é a
deusa dos partos e nascimentos; Láquesis fia (a vida do Homem na Terra);
Átropos corta o fio da vida (momento que equivale à morte);
- relaciona-se
também às nereidas, deusas filhas do Oceano, que personificavam as ondas e que
fiavam, teciam e cantavam;
- liga-se,
igualmente, às três fases da vida do Homem: nascimento, vida e morte.
- a brevidade
da vida;
- a passagem
do Tempo;
- a
consciência da morte;
- o contraste
entre a fragilidade do ser humano e a grandiosidade do Tempo.
- “ruído”
e “vento” sintetizam a ideia central do poema: o Homem não constrói o
seu destino, antes cumpre um que lhe é imposto;
- “ruído”
representa a palavra humana, por oposição à do Fado / Destino;
- “vento”:
por um lado, associa-se ao Homem, remetendo para a efemeridade que caracteriza
a sua vida; por outro, remete para o sopro divino, com significado oposto;
- “areia”:
representa o mundo da aparência, que é uma cópia do mundo da Essência;
- “[alta]
praia”: representa o mundo da Essência. Estes elementos (areia e praia)
remetem para a conceção platónica da existência humana, através da oposição
entre a “areia” que o sujeito poético vê e a “alta praia”.
- “debalde”:
traduz a inutilidade do desejo humano, pois o Destino é inexorável e nada
escapa à sua lei;
- “inutilmente”:
traduz a oposição entre a imagem que o Homem criou de si mesmo e a função real
que ele desempenha no Todo universal, pois terá sempre de se submeter a uma
vontade que lhe é superior, daí a inutilidade do seu esforço.
Análise de "Mestre, são plácidas"
• habitualmente, na poesia, o Tempo
constitui uma metáfora do saber, do amadurecimento, da experiência;
• neste texto, o Tempo tem uma
conotação negativa: passa, destrói, produz o envelhecimento;
• o tempo passa e a vida é breve, por
isso há que desvalorizar a sua passagem, dado que é esta que nos atormenta;
• por isso ainda, há que aceitar a
efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte;
• deste modo, o sujeito poético
aceita a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte de forma voluntária,
porque não vale a pena combater o inevitável.
▪ o uso da ode;
▪ o bucolismo: “À beira-rio”,
“Colhamos flores”;
▪ a “aurea mediocritas”: “Molhemos
leves / As nossas mãos / Nos rios calmos”;
▪ o paganismo: a referência aos
deuses greco-latinos;
▪ a aceitação do Tempo e do Destino;
▪ a consciência da vida e da
inevitabilidade da morte;
▪ a vivência moderada do momento:
“Para aprendermos / Calma também”;
▪ o uso dos modos imperativo e
conjuntivo com valor exortativo.
▪ Palavras que se inscrevem no campo
lexical de Natureza (“flores”, “girassóis”, “rio”, “Sol”).
▪ A «aurea mediocritas».
▪ A referência às crianças como
modelo de existência tranquila a seguir.
▪ A atitude de contemplação da
Natureza.
▪ A atitude panteísta de
identificação com os elementos da Natureza.
Análise de "Retrato", de Cecília Meireles
De
facto, o título do texto remete exatamente para o traçar do próprio
retrato, tanto físico (as feições do rosto e do corpo) como psicológico (do
qual ressalta a angústia existencial interior, motivada pela consciência da
passagem do tempo).
O
sujeito poético começa por constatar a mudança operada no seu rosto, graças à
passagem do tempo: “Eu não tinha este rosto de hoje” – v. 1. No segundo verso,
são enumeradas três características desse rosto: “calmo”, “triste” e “magro”.
Destes traços ressalta a tristeza do «eu», originada talvez pela própria mudança
e pela consciência tardia da transitoriedade da vida. O tom negativo do retrato
é acentuado nos dois versos seguintes (anafóricos), que acrescentam mais duas
características: os olhos vazios e o lábio amargo. Os olhos azuis parecem sugerir
o vazio existencial que marca o presente do «eu», enquanto o lábio (note-se o
uso do singular) evidencia a sua amargura e, por extensão, sugere a ausência do
sorriso, motivados pela perda da beleza (do próprio «eu» e da vida).
Deste
modo, a primeira quadra destaca a preocupação, a tristeza, a amargura e a
melancolia do sujeito poético por causa da passagem do tempo e do
envelhecimento, bem evidentes nas mudanças que constata terem-se operado.
Note-se, ainda, o facto de os elementos corporais servirem não tanto para a
descrição de traços físicos, mas sim psicológicos. A única característica
física que é associada ao rosto é a magreza e, ainda assim, serve como
«justificação» para a sua tristeza.
No
verso inicial da terceira estrofe, o sujeito poético prossegue o seu
autorretrato descrevendo as mãos, que representam, frequentemente, a força e o
trabalho. No caso do poema, é destacada a sua fraqueza / fragilidade (“sem
força” – v. 5) e, logo de seguida, são descritas como “Tão paradas e frias e
mortas” (polissíndeto e tripla adjetivação), enfatizando a sua degradação e
frieza. O terceiro verso foca-se no coração, que perdeu o seu vigor e os
sentimentos, pois o «eu» observa-o e constata que está escondido: “Eu não tinha
este coração / Que nem se mostra.”
Na
terceira quadra, o sujeito lírico revela que não se apercebeu da ocorrência da
mudança ao longo dos anos: “Eu não dei por essa mudança”. Que mudança foi essa?
“Tão simples, tão certa, tão fácil.”. A tripla adjetivação, a anáfora e a
reiteração do advérbio «tão» reforçam o caráter da transitoriedade, que ocorreu
tanto física quanto interiormente. A mudança ocorreu de forma rápida e cruel.
Nos derradeiros
dois versos, está presente uma metáfora e uma interrogação em forma de discurso
direto, anunciado pelos dois pontos e pelo travessão: o espelho representa um tempo
passado, onde as feições eram outras e marcavam uma outra idade, e a face é o
reflexo da passagem do tempo e da velhice, em suma, do decurso da vida. O
último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a
essência do «eu» lírico se perdeu?
Em
suma, Cecília Meireles questiona, neste texto, a mudança na vida do ser humano decorrente
da passagem do tempo no sentido do envelhecimento. Os anos passam, o aspeto
físico das pessoas altera-se, as doenças surgem, as limitações físicas
acentuam-se e tudo isso se reflete na parte psicológica.
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Análise de "Ao volante de um Chevrolet"
O poema Ao Volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra, escrito em 1928, foi atribuido por Fernando Pessoa ao seu heterónimo e alter-ego, o engenheiro naval Álvaro de Campos, cujo entusiasmo pela maquinaria moderna e a excitação nervosa por ela proporcionada está patente no célebre poema Ode Triunfal, publicado na revista Orfeu em 1914.
O carro a que alude o título deste poema destinava-se a competições desportivas e herdou o nome do seu criador, o suiço Chevrolet, que se notabilizou ao volante nos anos 20.
No poema, o Chevrolet é inicialmente conduzido «quase devagar», numa estrada deserta entre Lisboa e Sintra e numa noite luarenta que propicia o sonhar acordado («Ao luar e ao sonho»); a lua, como recetora da luz solar que é, surge habitualmente associada à passividade e dependência humanas, em antagonismo com a capacidade criativa do sol que, graças ao facto de emitir luz própria, proporciona uma apreensão clara e objetiva da realidade, tendo sido, por isso, associado à inteligência racional; opostamente, a lua é símbolo daquilo que não se percebe com nitidez e parece confuso e ilógico, como é a misteriosa psique humana; por isso, a lua está associada à introspeção, intuição, imaginação, mistério, devaneio e sonho.
O luar acompanha a viagem do sujeito poético desde o início até ao fim e indicia, desde o segundo verso, a propensão para a divagação e sonhar acordado do inquieto condutor do Chevrolet, a inconstância que o levará a não se sentir bem em sítio nenhum («Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa»), o desejo de mergulhar no seu mundo subconsciente, na sua própria noite interior, possivelmente para encontrar uma solução ou saída para o cansaço de viver alicerçado na incapacidade de descobrir o sentido da sua própria existência. Neste poema, tal como acontece em Ode Triunfal, a máquina, por muito moderna que seja, por muito libertadora que pareça ser e por muito que entusiasme o sujeito poético ávido de progresso e modernidade, não passa de objeto criador de um bem-estar efémero que deixa de fora as necessidades do coração, da alma, enfim, disso que sabemos que existe dentro de nós e que nos torna insatisfeitos connosco e com a vida, tenhamos ou não um “Chrevolet” à porta das nossas casas.
No início desta viagem, não é o automóvel moderno, nem o prazer da sua condução que são alvo da atenção do condutor, mas as circunstâncias que envolvem o ato de conduzir: a escuridão da noite iluminada pelo luar, a solidão que sente no interior do carro («Sozinho guio») e que observa no exterior («na estrada deserta»); a condução em ritmo lento («guio quase devagar»), o estado de nervosismo e ansiedade que o afetam («sempre esta inquietação, (…)/ Esta angústia excessiva do espírito»), o desejo de fugir a esta inquietude para encontrar um equilíbrio qualquer num lugar qualquer («Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,/ Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa»). A repetição do advérbio «sempre» acentua a constância do mal-estar e fornece uma explicação para a urgência da libertação; assim, a escolha do Chevrolet não foi arbitrária; o problema é que a solução para a incapacidade de viver terá que vir de dentro do sujeito que a sente, e não de fora.
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação, sem propósito, sem nexo, sem consequência,
sempre, sempre, sempre,
esta angústia do espírito por coisa nenhuma,
na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestararm, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
é agora uma coisa onde estou fechado,
que só posso conduzir se nele estiver fechado,
que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
no pavimento térreo,
sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
e ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
e, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
à porta do casebre,
o meu coração vazio,
o meu coração insatisfeito,
o meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim….
Poesias de Álvaro de Campos, Colecção Poesia, Edições Ática
O condutor do Chevrolet sente necessidade de se libertar da «angústia excessiva do espírito» e da inquietação; ambas o minam interiormente, sobretudo porque não tem uma explicação lógica, compreensível para elas, já que as sente «por coisa nenhuma», «sem propósito, sem nexo, sem consequência» e é essa falha da inteligência racional em conseguir explicar aquilo que no seu íntimo é gerador da destruição da sua individualidade e que o transforma num passageiro sem rumo no mundo, que vai desencadear a «saída» de Lisboa em direção a Sintra, uma viagem imaginária que terá lugar dentro de si mesmo.
O desconforto permanente ao ponto de se tornar obsessivo («Sempre, sempre, sempre»), cria nele a ansiedade de manter o carro em movimento ou de «seguir» sem parar («Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,/ Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?») como se parar significasse morrer, encarar um mundo que talvez seja ainda mais misterioso, obscuro e aterrador que o seu, aquele de que quer fugir e, ao imaginar-se condutor de um automóvel, cria condições para se observar e analisar com um certo distanciamento.
O Chevrolet, que no início se deslocava em marcha lenta, agora «Galga» a estrada: «Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram»; o automóvel circula velozmente na estrada , mas o sujeito poético pára mentalmente a refletir sobre «as coisas que lhe emprestaram», «coisas» essas que não sendo suas, foram adotadas por ele e feitas suas pela razão de que não sabe o que é ser ele próprio; esses “empréstimos” dos quais se queixa («Quanto do que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!») contribuem para lhe dar uma identidade, ainda que falsa porque ele não é os outros; por outro lado, essas máscaras que lhe «emprestaram» e que ele usa como se lhe pertencessem, obscurecem a sua verdadeira identidade e dificultam-lhe o acesso à perceção da sua singularidade entre as massas humanas que, pela razão de que se mascaram diariamente, vivem naturalmente dependentes do jogo das aparências; o condutor do Chevrolet «emprestado» denuncia-as porque, vivendo constantemente debruçado sobre si próprio, sabe que também ele é uma sobreposição de máscaras e que a sua verdadeira identidade é apenas essa, o que aliás confessa: «Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!»
A diferença relativamente aos outros é a de que tem uma consciência aguda e dolorosa de que está vedado ao Homem aceder ao seu “verdadeiro” Eu, pelo menos pela via consciente.
O automóvel é visto como símbolo, mas o condutor ironiza sobre a “promoção” de um Chevrolet a símbolo: «Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita». A ironia deve-se ao facto de o automóvel ser símbolo do progresso tecnológico proporcionador de uma libertação que, na realidade, é aparente, fugidia e até “grosseira” na medida em que essa libertação se faz através de um objeto mecânico; o condutor do automóvel último-modelo constata que este não o liberta da opressão que sente, pelo contrário, transforma-se numa prisão em movimento que obedece ao condutor- prisioneiro em que se tornou o sujeito poético:
«O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,/ É agora uma coisa onde estou fechado».
Alcançar a verdadeira liberdade seria conseguir as respostas para a sua inquietação e o carro, como «coisa» que é, não as pode dar, limita-se a levar “mecanicamente” o desassossegado passageiro deixando intacto o seu desassossego.
O condutor do Chevrolet decide «virar à direita» e deixar para trás «o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.»; a viragem «à direita» opõe-se ao que fica à esquerda, a direção escolhida pelo condutor. Imaginando uma cruz, a direita e a esquerda poderiam representar os braços ou o eixo horizontal dessa cruz, símbolo da dimensão terrena do ser humano e das encruzilhadas com que se depara na vida, o qual intersecta o eixo vertical, símbolo da dimensão espiritual humana. Noutra perspetiva, a realidade situada à esquerda simboliza a vida passada que o sujeito poético decidiu «deixar para trás», optando por virar à direita, isto é, por encarar o futuro: «Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.»
Mas, à direita, encontra «o campo aberto, com a lua ao longe», isto é, um vazio porque o futuro aguarda concretização; «o campo aberto» sugere que há inúmeras possibilidades que poderão ser realizadas, mas também pode sugerir que o condutor do automóvel não enxerga nada nesse futuro à exceção da «lua ao longe», único sinal de “vida” no «campo aberto»; no futuro terá, como no presente, a companhia do sonho e da imaginação, ambos estéreis quanto à capacidade de engendrarem uma nova vida, uma mudança, uma saída para o drama da eterna busca do Eu pelo Eu. De qualquer modo, o futuro resulta do passado e se no passado há também um vazio, o futuro perspetiva-se sombrio.
O casebre, situado à esquerda, simboliza o seu mundo interior, a incapacidade de sentir devido ao excesso de racionalidade, a ausência de uma família e de laços afetivos, a fragilidade psicológica do próprio sujeito poético, a falta de unidade que reina no seu íntimo, o desgaste psicológico sofrido ao longo do tempo decorrente de uma existência ao acaso e à mercê de todas as intempéries da vida e por isso a felicidade é uma espécie de atributo dos outros e nunca dele próprio:
«A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha»
A única felicidade a que tem acesso é por via “indireta”, imaginando o olhar sonhador e cobiçoso dos habitantes do «casebre» ao vê-lo conduzir o Chevrolet: «Aquele é que é feliz.» Mas ninguém é feliz, nem o condutor que imagina a felicidade como algo que acontece aos outros, nem os habitantes do casebre que desconhecem que o automóvel é emprestado e que confundem a felicidade com a posse de bens materiais.
Os habitantes do «casebre», a rapariga casadoira e a criança, dão pela presença do condutor do automóvel através do barulho do motor e limitam-se a seguir com olhar o sujeito poético. A visão é o mais “frio” dos nossos sentidos visto que não precisa de proximidade física e o facto sugere a superficialidade das relações humanas e o interesse individual como motivação das mesmas; para a rapariga, o condutor poderá ser o «príncipe de todo o coração de rapariga», mas apenas porque conduz um Chevrolet.
Lúcido, o condutor interroga-se: «Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?». A resposta está à vista e por isso conduz agora o automóvel «desconsoladamente» na direção do «campo aberto», um deserto no qual se sente solitário, perdido e pessimista quanto ao futuro.
«E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,/ acelero…/ Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,/ À porta do casebre, (…)». O sujeito poético não pode entrar no «casebre» porque o inconsciente é inatingível, mas o que dele chega até à sua consciência é a «porta», a via de acesso a esse mundo labiríntico que o perturba e que é o mundo das emoções que a sua propensão para tudo racionalizar não deixa sentir; por isso, por mais que «acelere», o seu coração ou sede dos sentimentos, ficou encalhado no «monte de pedras» de se afastou «ao vê-lo sem vê-lo», porque o pensar se sobrepõe ao sentir. Devido a esta excessiva racionalidade, não entrevê uma solução para o drama de viver e o poema termina num tom de desalento mais vincado que nas estrofes anteriores. A repetição anafórica da última estrofe sugere que a vida do condutor do Chevrolet se desenrola num movimento circular, é uma sucessão ininterrupta de momentos de cansaço, de angústia, de experiência de vazio interior, de solidão, sensações e sentimentos dos quais se tenta evadir, sempre sem sucesso.
«Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,/ Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim.»
sábado, 16 de janeiro de 2021
Variedades sociais ou diastráticas
Variedades situacionais ou diafásicas
Variedades africanas
Variedade brasileira
Variedade brasileira |
Variedade europeia |
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F o n é t i c a |
. pronúncia de vogais fechadas como
abertas: «náriz», «levar»; . pronúncia das vogais tónicas como
médias: «Antônio»; . supressão ou velarização do /r/
final: «mudá», «falarr»; . semivocalização do /l/ final de
sílaba ou de palavra: «auguma», «Brasiu»; . palatalização do /t/ e /d/ antes de
/i/ tónico e átono e de /e/ pós-tónico: «pondje»; . introdução de /i/ entre duas consoantes
que não formam grupo consonântico em português: «rapito». |
. pronúncia de vogais fechadas como
tal: «nariz», «levar»; . pronúncia das vogais tónicas mais
baixas: «António»; . realização do /r/ simples em final
de palavra: «mudar», «falar»; . velarização do /l/ final de sílaba
ou de palavra: «alguma», «Brasil»; . não palatalização dessas
consoantes; . conservação da sequência das
consoantes: «rapto». |
M o r f o s s i n t a x e |
. uso do gerúndio na construção
aspetual: «estou comendo»; . uso do pronome pessoal átono antes
do verbo: «Me dê esse livro.»; . omissão do determinante artigo
definido (por exemplo, antes do possessivo): «todo sábado», «seu pai»; . substituição do pronome pessoal
átono “o”, “a” pelo tónico “ele”, com função sintática de complemento direto:
«Vi ela na escola.»; . uso diferente das preposições: «Fui no supermercado.»; . uso do verbo “ter” em vez de
“haver”: «Tem gente burra na sala.»; . uso do pronome pessoal átono “lhe”,
com função sintática de complemento direto: «Eu lhe beijei no sábado.». |
. uso do infinitivo pessoal
antecedido de preposição: «estou a
comer»; . uso do pronome pessoal átono após o
verbo: «Dê-me esse livro.»; . uso do determinante artigo: «todo o sábado», «o seu pai»; . uso do pronome pessoal átono “o”,
“a” com a função sintática de complemento direto: «Vi-a na escola.»; . uso das preposições: «Fui ao supermercado.»; . uso do verbo “haver”: «Há gente burra na sala.»; . uso do pronome pessoal átono “o”,
“a”, com função sintática de complemento direto: «Eu beijei-a no sábado.». |
Formas de tratamento |
. tratamento familiar: «você»; . tratamento formal: «o senhor», «a senhora», o cargo, o título. |
. tratamento familiar: «tu», «você»; . tratamento formal: «o senhor», «a senhora», nome próprio, cargo, título ou grau de parentesco. |
L é x i c o |
. “banheiro” . “café da manhã” . “ónibus” . etc. |
. “casa de banho” . “pequeno-almoço” . “autocarro” |
. vocábulos de origem africana: «xingar», «samba»; . vocábulos de origem tupi: «pipoca», «capim». |