domingo, 1 de agosto de 2021
Análise do Canto XV da Ilíada
O Canto XV constitui o princípio do fim para Heitor, precisamente quando atinge o auge do seu poder. É isso que Zeus revela a Hera quando acorda, incluindo a queda da cidade de Troia, que não é descrita na Ilíada, que termina com os funerais de Heitor. Juntando essa a outras revelações – as mortes de Pátroclo e de Aquiles –, o leitor fica a saber antecipadamente o desenlace da história. Esta forma de construir a narrativa contrasta com a usual na ficção contemporânea, que procura criar tensão dramática, criar suspense, mantendo o leitor na expectativa do que irá suceder.
É verdade que, no caso, por exemplo,
de certos romances policiais, o leitor fica a conhecer ab initio quem é
o criminoso, mas tal constitui uma exceção à regra. A literatura moderna faz
depender, frequentemente, o desfecho da história da ação das personagens
individuais e das escolhas que fazem na vida. Ora, este paradigma narrativo é
mais complexo de encontrar na Ilíada, pois as narrativas antigas
assentam muitas vezes na tradição mitológica, o que implicava que o
leitor/ouvinte seria confrontado com uma história cujo desfecho já era do seu
conhecimento. Neste contexto, a tensão dramática não resulta da interferência
da mentalidade e da personalidade das personagens nos eventos, mas da forma
como estes afetam as personagens. O leitor, nesta fase do poema, já está ciente
da queda de Troia e da morte de Heitor, do mesmo modo que Aquiles sabe
perfeitamente que, se regressar à luta, irá perder a vida. Assim sendo, não é o
desenlace da história e o fim das personagens que cativam a sua atenção, mas
ficar a saber como elas respondem a um fim já conhecido. Quando o espectador
compra o bilhete e entra na sala do cinema, tem consciência de que a personagem
encarnada por John Wayne irá castigar os maus e triunfar no fim da história,
mas, ainda assim, quer ver como o vai conseguir. Tudo isto ganha foros
caricaturais quando assistimos ao avanço de Heitor e dos Troianos, sabendo já
que a sua vida irá terminar em breve.
Note-se, contudo, que nem sempre a
ação se desenvolve de acordo com o esquema descrito. De facto, há momentos em
que os eventos estão dependentes das opções das personagens. É o caso flagrante
de Aquiles, que se tem vindo a confrontar com um dilema: retornar à guerra,
salvar os seus companheiros e auxilia-los a derrotar Troia, ou conservar a sua
cólera e o seu orgulho e deixá-los entregues à sua sorte. Estes conflitos internos,
tão comuns nos textos teatrais (quem se pode esquecer dos de D. Madalena ou
Telmo Pais no Frei Luís de Sousa?), contribuem para a criação de um
ambiente dramático, mas, ocasionalmente, são igualmente envolvidos por um certo
clima irónico. Por exemplo, no Canto I, depois de ver o seu orgulho ferido
pelas ações de Agamémnon, Aquiles, através da sua mãe, pede a Zeus que castigue
os Gregos (não teria esta hybris de ser punida pelos deuses mais tarde
ou mais cedo?); no entanto, agora é a ação do mesmo Zeus em prol dos Troianos
que contribuirá também para a perda do seu amigo Pátroclo.
O outro plano do poema – o da
mitologia – prossegue a todo o vapor. Hera escapa à punição de Zeus protestando
a sua inocência e atribuindo as culpas para cima de Poseidon. No entanto, o seu
juramento no rio Estige – um voto que os deuses não podem quebrar – mostra a
sua falsidade. É verdade que ela não enviou Poseidon em auxílio dos Gregos, mas
aproveitou o ensejo para o ajudar no processo e assim, indiretamente, acabam
por os ajudar.
Por seu turno, a postura do deus do
mar justifica-se pela rivalidade que cultiva com Zeus, seu irmão mais velho.
Enquanto primogénito, este detém muito mais poder e autoridade, mas o que mais
irrita Poseidon é o facto de ele ter de desistir dos seus próprios interesses
em prol das prioridades e interesses de Zeus. Ora, este conflito desenvolve-se
paralelamente ao de Agamémnon e Aquiles, que hostiliza o primeiro, o todo
poderoso rei dos Gregos, porque espera que o filho de Tétis abdique de algo que
lhe pertence (Briseida) em seu favor. Poseidon cede, com medo do poder e do
castigo de Zeus, mas solta uma ameaça; também Aquiles cede, mas não sem
procurar uma dupla vingança sobre Agamémnon: abandona o combate e pede ao pai
dos deuses que castigue os Gregos.
Por último, há que atender ao
seguinte no que diz respeito a Heitor: quando ele finalmente atinge os navios
inimigos, a promessa de Zeus está cumprida. De ora em diante, o curso da guerra
alterar-se-á em desfavor de Troia, cumprindo-se, deste modo, a profecia do todo
poderoso deus.
Resumo do Canto XV da Ilíada
Enquanto as tropas troianas são repelidas, Zeus desperta do seu sono e observa o que aconteceu enquanto dormia. Ameaça castigar Hera, mas esta protesta a sua inocência, desviando a culpa para cima de Poseidon. Ele diz-lhe que, não obstante os eu apoio aos Troianos, troia está condenada a cair e que Heitor morrerá depois de lutar e matar Pátroclo. Por outro lado, Zeus parece aceitar a inocência da esposa, mas força-a a trabalhar no sentido de desfazer as ações de Poseidon, pedindo-lhe que chame Íris e Apolo. Ela obedece, mas antes incita Ares a quase desafiar o pai dos deuses para vingar o seu filho, sendo apenas travado por Atenas. Íris ordena a Poseidon que abandone o campo de batalha, enquanto Apolo dota Heitor e os seus companheiros de novas forças.
De seguida, Heitor lidera um ataque
contra os Gregos, que sustentam a ofensiva inicialmente. No entanto, com um grito
de guerra, Apolo agita o escudo de tempestade de Zeus contra as tropas gregas,
que recuam aterrorizadas. Apolo enche, então, a trincheira em frente às
fortificações aqueias, permitindo que os Troianos derrubem as muralhas.
Os exércitos lutam junto ao
acampamento grego e perto dos navios. Ájax e Heitor enfrentam-se novamente. O
arqueiro Teucro derruba vários soldados troianos, todavia Zeus parte o seu arco
quando faz mira em Heitor. Ájax incentiva os seus companheiros a lutar, mas o
líder troiano reúne as suas tropas e, passo a passo, avançam com a ajuda de
Zeus, até que Heitor chega a um navio.
Análise do Canto XII da Ilíada
Este canto contém indícios do destino de Heitor e de Troia, à semelhança do que tinha sucedido com a cena de Nestor e Pátroclo, também ela premonitória. Assim, de acordo com as previsões dos adivinhos, a cidade está condenada a cair. Em simultâneo, Homero não deixa de sugerir ao leitor que a morte de Heitor, bem como a partida dos Gregos no décimo ano.
No entanto, por outro lado, são
vários os sinais de sentido oposto, desde logo porque Zeus manipula a batalha,
ora derramando sangue sobre os Gregos, ora permitindo que Heitor se torne o
primeiro troiano a cruzar as fortificações do inimigo. Os Aqueus reconhecem o
dedo de Zeus no curso dos acontecimentos e compreendem que, ao combater os de
Troia, se opõem também ao deus. Neste contexto, Diomedes conclui que o chefe
dos deuses já selecionou o vencedor do conflito: os Troianos. Deste modo,
perante sinais contraditórios, o leitor hesita, não sabendo em quais confiar, pelo
que o desenlace da história permanece em aberto, por causa desses sinais
ambíguos. Os dois lados em conflito ficam confusos sobre a vontade de Zeus:
ambos reclamam o seu apoio, mas as suas intervenções nada clarificam.
Voltando a Heitor, no momento em que
ignora o conselho de Polidamos, dá mais um passo rumo ao destino que lhe está
reservado. Note-se, contudo, que recuar naquele instante constituiria um
comportamento desonroso, além de sem sentido, pois a batalha está a ser
francamente favorável aos Troianos. Assim, que razão haveria para recuar? Deste
modo, é perfeitamente normal que Heitor ignore o presságio e prossiga a luta em
defesa da sua pátria, cumprindo, em simultâneo, o destino que Zeus lhe traçou.
Resumo do Canto XII da Ilíada
À medida que os Troianos avançam sobre as fortificações gregas, o poeta dá-nos conta que elas serão destruídas quando Troia cair. Entretanto, elas continuam a cumprir o seu papel: resistir aos avanços dos inimigos – a trincheira aberta à sua frente bloqueia os carros troianos e impede-os de avançar. Por isso, Heitor segue o conselho de Polidamas, ordena aos soldados que desçam dos carros e ataquem as muralhas a pé. Quando se preparam para atravessar as trincheiras, algo de extraordinário acontece: uma águia voa sobre a ala esquerda do exército troiano, é mordida pela grande cobra que transporta e deixa-a cair no meio dos combatentes. Polidamos interpreta esta cena como um sinal de que os Troianos serão derrotados pelos Aqueus e aconselha Heitor a recuar, mas este zomba dele e decide prosseguir o ataque.
Assim, Glauco e Sarpédon atacam as
muralhas, enquanto Menesteu, auxiliado por Ájax, a defende. Sarpédon abre uma
brecha no muro, enquanto Heitor destrói uma das portas com uma rocha. Ato
contínuo, os Troianos invadem as fortificações, e os Gregos recuam, apavorados,
para os seus navios.
Na aula (XLI): profundos conhecimentos geográficos
Marrocos é uma ilha.
Marco E.
Análise do Canto XI da Ilíada
O Canto XI abre com a aristeia de Agamémnon. O poeta faz uma descrição efetiva do seu armamento e armadura, ricamente decoradas com materiais preciosos que enfatizam a sua riqueza. Dos vários elementos destaca-se a Górgona que está no seu escudo, a qual também marca presença no escudo de Atenas, e que simboliza o apoio dos deuses. Por instantes, o chefe dos Gregos vira a maré da batalha contra os Troianos, apesar das intenções de Zeus serem de sentido oposto.
O pai dos deuses continua a ser o
único a poder intervir no curso da guerra, o que ele faz em favor de Troia.
Neste passo da obra, a deusa Íris atua como uma extensão da sua vontade e uma
evidência da brutalidade da guerra, algo que perpassa toda a Ilíada, mas
isso não significa propriamente uma condenação dos conflitos bélicos. Apesar de
ser um acontecimento trágico, onde milhares de homens são sacrificados, a
guerra constitui igualmente uma forma de alcançar a glória e a honra pessoais,
tão importantes no mundo antigo. De acordo com a visão de Homero, a guerra faz
parte da vida humana.
Neste canto, Pátroclo assume uma
importância que não tinha tido até aqui e que se vai estender para o futuro
imediato. Quando ele responde ao chamamento de Aquiles para questionar Nestor,
o poeta afirma que, a partir desse momento, a sua condenação era um dado adquirido,
condenação essa que se adensa com a sugestão de Nestor para que Pátroclo finja
ser Aquiles e entre em combate. Por outro lado, a figura de Pátroclo funciona
também como contraponto do seu amigo. De facto, embora sejam bastante inimigos
e irmãos adotivos, são personalidades bem diversas. Pátroclo mostrará todo o
seu humanismo e toda a sua compaixão na cena de Eurípilo, enquanto Aquiles já
demonstrou, em mais de uma ocasião, todo o seu orgulho, que se sobrepõe ao
destino dos seus próprios companheiros, algo que o próprio amigo desaprova.
Resumo do Canto XI da Ilíada
Na manhã seguinte, os exércitos voltam a enfrentar-se e Zeus faz chover sangue sobre o campo aqueu, causando enorme pânico entre os Gregos, que sofrem um massacre nessa fase do combate. No entanto, da parte da tarde a maré começa a mudar: Agamémnon mata diversos inimigos e faz recuar de novo os Troianos até aos portões da cidade.
Porém, Zeus envia uma mensagem a
Heitor através de Íris para ele esperar até Agamémnon ser ferido e só então dar
início ao seu ataque. De facto, o comandante grego acaba por ser ferido por
Coon, filho de Antenor, logo após matar o seu irmão. Mesmo ferido, continua a
lutar e liquida Coon, no entanto a dor que sente força-o a abandonar o campo de
batalha.
Heitor reconhece a situação e
avança, fazendo recuar os Aqueus, que entram em pânico, mas Ulisses e Diomedes
incentivam-nos a resistir e insuflam coragem nos seus corações. Diomedes
arremessa uma lança que atinge Heitor no capacete que o deixa atordoado e o
obriga a recuar. Em rápida sucessão, a maioria dos melhores lutadores gregos é
ferida e até Diomedes é atingido no pé pro uma seta disparada por Páris, o que
o arreda do resto do poema e deixa Ulisses numa situação delicada, ferido
também e cercado por inimigos. O estratega do Cavalo de Troia luta com todos,
mas um adversário chamado Socus fere-o nas costas, sendo salvo por Ájax, que o
carrega de volta ao acampamento.
Entretanto, Heitor regressa à ação
noutro setor do combate e, juntamente com outros soldados, força Ájax a recuar
enquanto Nestor leva Machaon (um curandeiro grego que tinha sido ferido por
Páris) de volta à sua tenda. Enquanto isso, atrás das linhas, Aquiles assiste à
batalha e envia o seu amigo Pátroclo para identificar o lutador ferido que
Nestor transporta. Este relata-lhe todos os revezes que os Gregos estão a
sofrer e implora-lhe que convença Aquiles a retornar à luta, ou pelo menos o
deixe a ele, Pátroclo, entrar na batalha disfarçado, envergando a armadura do
próprio Aquiles. Esse estratagema teria um duplo efeito: por um lado, daria
coragem aos Gregos; por outro, intimidaria os inimigos. De outra forma, Nestor
vê muito difícil a tarefa de resistir aos Troianos. Pátroclo promete falar com
Aquiles.
"Everybody Wants To Rule The World", Tears for Fears
sábado, 31 de julho de 2021
Análise do Canto X da Ilíada
O Canto X decorre na mesma noite que o IX, mas, ao nível do conteúdo, constitui uma pausa no combate. Em vez disso, Homero concentra-se sobretudo na questão da espionagem e da guerra psicológica. A única ligação de continuidade entre os dois cantos é o desespero dos Gregos, que é acentuado pela teimosia de Aquiles, que tira o sono de Agamémnon e Menelau e os deixa tão desesperado que estão dispostos a quase tudo para o fazer regressar à luta. No entanto, nessa noite existem duas embaixadas, uma de espionagem, efetuada em pleno território inimigo, e outra tendo como destino final a tenda de Aquiles. A primeira é caracterizada pelo êxito, enquanto a segunda redunda em fracasso. O dado comum às duas expedições é a figura de Ulisses.
O rei de Ítaca é caracterizado como
uma pessoa inteligente e astuta, no entanto também algo traiçoeiro, pois
promete falsamente a Dolon que não será morto. Algo parecido sucede com
Diomedes, que, logo depois de manifestar sentimentos de amizade com um inimigo,
executa um homem indefeso e se questiona sobre qual seria a pior coisa que ele
poderia fazer.
No que diz respeito ao desenlace da
incursão no território troiano, não é tanto a perda de um pequeno número de
lutadores e de uma carruagem que afetará o decurso da guerra em termos
materiais, mas antes o que o ataque representa em termos de desmoralização. Em
contraponto, este pequeno sucesso simboliza um impulso de motivação junto da
parte grega.
Por outro lado, as diferenças
linguísticas e de técnica compositiva entre este e outros cantos da Ilíada
levantam algumas questões sobre a autoria desta parte da obra. Foi composto por
Homero para mostrar uma perspetiva diferente da guerra, ou tratou-se de um
acrescento introduzido por um colaborador posterior? Seja como for, constitui
uma pausa na batalha e introduz uma nota diferente numa fase do conflito em que
os Gregos estão a sofrer grandes revezes.
Resumo do Canto X da Ilíada
Agamémnon e Menelau não conseguem dormir, tal é sua preocupação com o curso dos acontecimentos, e, eventualmente, acordam os outros comandantes e reúnem-se em campo aberto para planear o movimento seguinte. Nestor sugere que enviem um espião, a coberto da escuridão noturna, que se infiltre no acampamento troiano e tome conhecimento dos planos do inimigo. Diomedes oferece-se como voluntário e é acompanhado por Ulisses. Os dois homens armam-se e, apoiados por Atenas, a quem oram, esgueiram-se em direção ao campo adversário.
No lado troiano, Heitor é assaltado
por uma ideia semelhante e quer saber se os Gregos planeiam fugir. Ele
seleciona Dolon, um homem muito feito, mas veloz como um relâmpago, para
desempenhar o papel, e promete recompensa-lo com a carruagem e os cavalos de
Aquiles. Dolon parte para a sua missão, mas é avistado por Diomedes e Ulisses,
que rapidamente o capturam. Os dois gregos interrogam-no, e ele, na esperança
de conservar a sua vida, informa-os das posições dos Troianos e dos seus
aliados, bem como de que os Trácios, recém-chegados ao local, eram
especialmente vulneráveis a ataques. Ulisses promete poupar Dolon, mas Diomedes
mata-o e tira-lhe a armadura.
De seguida, os dois espiões aqueus
penetram sorrateiramente no acampamento trácio adormecido, onde matam doze
soldados e o seu rei, Rhesus, que chegara atrasado à batalha e, por isso, nem
chega a combater. Além disso, roubam os cavalos e as carruagens do monarca
trácio. Atenas avisa-os que algum deus zangado pode acordar os outros soldados,
o que faz com que Diomedes e Ulisses e retornem ao seu acampamento na carruagem
roubada, onde são recebidos calorosamente pelos seus camaradas, que já os viam
mortos.
Análise do Canto IX da Ilíada
Esta segunda interação entre Agamémnon e Aquiles, concretizada neste caso através de intermediários, é marcada por questões de orgulho e honra mais uma vez. A iminência da derrota força o chefe dos Aqueus a pôr de lado o seu orgulho, mas apenas na medida do necessário, argumentando que estava louco e cego quando confrontou Aquiles (Canto I), responsabilizando o seu estado mental instável pelo sucedido e não assumindo, assim, a responsabilidade total e consciente pelo episódio. Neste passo da obra, Agamémnon mostra-se sensato ao aceitar a sugestão de Nestor de se reconciliar com Aquiles, no entanto o seu recuo estratégico não é propriamente uma admissão de culpa nem resulta na sua humilhação. Por exemplo, há a considerar que ele nunca faz um pedido de desculpas, antes procura comprar a lealdade de Aquiles, em vez de procurar um entendimento sério e honesto. Além disso, a aceitação da proposta da parte do filho de Tétis significaria que este se submeteria à autoridade de Agamémnon. Ora, Aquiles é igualmente um homem orgulhoso e percebe que, não obstante Ulisses ter omitido sabiamente a exigência do líder aqueu de que o chefe dos Mirmidões se curvasse perante si, a falta de um pedido de desculpas. Ele não quer tesouros, mas antes a reparação do ultraje de que fora vítima, a reparação da honra e da glória pelas quais tanto trabalhou. A única honra de que necessita é o destino que Zeus lhe reservou: a de uma morte gloriosa. Por outro lado, como julga não ter uma vida muito longa, os tesouros de pouco lhe serviriam.
Note-se que a oferta de presentes
muito valiosos é um gesto muito importante e significativo, pois os gregos da
época observavam a posse de bens materiais, ganhos na guerra ou concedidos por
reis, como sinónimo de honra pessoal. No entanto, no caso vertente da Ilíada,
a oferta generosa de Agamémnon está associada à afirmação do seu status
superior: “Deixa-o curvar-se diante de mim! Eu sou o rei maior” (IX.192). Isto
só vem confirmar que o rei dos Gregos, embora parecendo sensato e mais
pragmático, é tão orgulhoso e egocêntrico como Aquiles.
A embaixada enviada por Agamémnon
constitui uma das cenas mais comoventes da Ilíada. Durante o encontro,
são contadas várias narrativas, que cada lado usa para persuadir o outro, mas o
poeta socorre-se delas para humanizar Aquiles e para nos apresentar
sumariamente aspetos do seu passado e antecipar o futuro. Além disso, este
episódio relembra-nos a sua cólera e o seu orgulho, contudo, em simultâneo,
revela-nos as pressões que sofreu em Ftia (uma antiga região da Tessália, na
Grécia setentrional, a pátria dos Mirmidões) e destaca o dilema que enfrenta,
mostrando-nos os seus conflitos interiores.
A forma mais cândida como Aquiles
responde ao apelo de Ájax mostra que ele valoriza o respeito dos seus
companheiros, embora não pareça particularmente incomodado por estarem a morrer
na sua ausência. No entanto, o seu orgulho sobrepõe-se a isso e ele não
consegue perdoar a ofensa à sua honra. Até este momento da obra, a cólera de
Aquiles parecia ser justificada, todavia a recusa da proposta de Agamémnon por
uma questão de orgulho lança uma sombra sobre a sua figura. Aquiles é descrito
e age como um deus e o egocentrismo e a mesquinhez da sua reação lembram os
rancores de divindades como Hera e Poseidon.
Os discursos deste canto constituem
demonstrações da habilidade oratória, um talento que os Gregos valorizavam
imenso, tanto quanto a perícia no campo de batalha. Fénix faz referência a
esses dois valores quando afirma ter criado Aquiles para ser um homem de
palavras e de ação. O discurso de Ulisses é o mais bem estruturado, sendo
constituído por um conjunto de apelos diferentes para tentar mudar o intento do
filho de Tétis.
Resumo do Canto IX da Ilíada
Os Aqueus estão desesperados. Agamémnon chora e declara que a guerra foi um fracasso, por isso propõe regressar à Grécia em desgraça, contudo Diomedes argumenta contra tal cobardia e afirma que ficará e lutará, mesmo que todos os outros partam. Nestor intervém de seguida, comungando das palavras do companheiro, e sugere a reconciliação com Aquiles, de modo que ele possa regressar ao combate. Reconhecendo a validade do discurso de Nestor, Agamémnon decide oferecer ao chefe dos Mirmidões um conjunto de presentes bastante valioso: Briseida, um futuro saque, uma das suas filhas e sete cidades. Isto obviamente se regressar à guerra e reconhecer a sua autoridade. Três homens entregam a proposta: Ájax, Ulisses e Fénix, o velho que criou Aquiles.
A embaixada grega encontra-o a tocar
lira na sua tenda com o seu amigo Pátroclo. Ulisses verbaliza a proposta de
Agamémnon, mas Aquiles recusa-a, por causa do seu orgulho ferido e declara que
pretende retornar à sua terra natal, onde poderá viver uma vida longa e
prosaica, em vez da gloriosa, mas curta, se decidir ficar. Dirigindo-se a
Fénix, propõe-lhe que o acompanhe, mas este pede-lhe, de forma emocionada, que
fique. E recorda a história de Meléagro, outro príncipe guerreiro que, durante
um episódio de raiva, se recusou a lutar, para mostrar como era importante
responder aos apelos de amigos indefesos. Ájax incentiva Aquiles a conquistar o
amor dos seus camaradas e coloca a sua ausência em perspetiva, mas ele
mantém-se irredutível, sentindo ainda na carne o insulto de Agamémnon.
Quando Ulisses e Ájax regressam e
transmitem a resposta de Aquiles, os Gregos ficam perplexos e afundam-se de
novo no desespero.
Na aula (XL): definição de cobiça
- O que é a cobiça?
- É uma festa, não é?
André A.