O Canto XV constitui o princípio do fim para Heitor, precisamente quando atinge o auge do seu poder. É isso que Zeus revela a Hera quando acorda, incluindo a queda da cidade de Troia, que não é descrita na Ilíada, que termina com os funerais de Heitor. Juntando essa a outras revelações – as mortes de Pátroclo e de Aquiles –, o leitor fica a saber antecipadamente o desenlace da história. Esta forma de construir a narrativa contrasta com a usual na ficção contemporânea, que procura criar tensão dramática, criar suspense, mantendo o leitor na expectativa do que irá suceder.
É verdade que, no caso, por exemplo,
de certos romances policiais, o leitor fica a conhecer ab initio quem é
o criminoso, mas tal constitui uma exceção à regra. A literatura moderna faz
depender, frequentemente, o desfecho da história da ação das personagens
individuais e das escolhas que fazem na vida. Ora, este paradigma narrativo é
mais complexo de encontrar na Ilíada, pois as narrativas antigas
assentam muitas vezes na tradição mitológica, o que implicava que o
leitor/ouvinte seria confrontado com uma história cujo desfecho já era do seu
conhecimento. Neste contexto, a tensão dramática não resulta da interferência
da mentalidade e da personalidade das personagens nos eventos, mas da forma
como estes afetam as personagens. O leitor, nesta fase do poema, já está ciente
da queda de Troia e da morte de Heitor, do mesmo modo que Aquiles sabe
perfeitamente que, se regressar à luta, irá perder a vida. Assim sendo, não é o
desenlace da história e o fim das personagens que cativam a sua atenção, mas
ficar a saber como elas respondem a um fim já conhecido. Quando o espectador
compra o bilhete e entra na sala do cinema, tem consciência de que a personagem
encarnada por John Wayne irá castigar os maus e triunfar no fim da história,
mas, ainda assim, quer ver como o vai conseguir. Tudo isto ganha foros
caricaturais quando assistimos ao avanço de Heitor e dos Troianos, sabendo já
que a sua vida irá terminar em breve.
Note-se, contudo, que nem sempre a
ação se desenvolve de acordo com o esquema descrito. De facto, há momentos em
que os eventos estão dependentes das opções das personagens. É o caso flagrante
de Aquiles, que se tem vindo a confrontar com um dilema: retornar à guerra,
salvar os seus companheiros e auxilia-los a derrotar Troia, ou conservar a sua
cólera e o seu orgulho e deixá-los entregues à sua sorte. Estes conflitos internos,
tão comuns nos textos teatrais (quem se pode esquecer dos de D. Madalena ou
Telmo Pais no Frei Luís de Sousa?), contribuem para a criação de um
ambiente dramático, mas, ocasionalmente, são igualmente envolvidos por um certo
clima irónico. Por exemplo, no Canto I, depois de ver o seu orgulho ferido
pelas ações de Agamémnon, Aquiles, através da sua mãe, pede a Zeus que castigue
os Gregos (não teria esta hybris de ser punida pelos deuses mais tarde
ou mais cedo?); no entanto, agora é a ação do mesmo Zeus em prol dos Troianos
que contribuirá também para a perda do seu amigo Pátroclo.
O outro plano do poema – o da
mitologia – prossegue a todo o vapor. Hera escapa à punição de Zeus protestando
a sua inocência e atribuindo as culpas para cima de Poseidon. No entanto, o seu
juramento no rio Estige – um voto que os deuses não podem quebrar – mostra a
sua falsidade. É verdade que ela não enviou Poseidon em auxílio dos Gregos, mas
aproveitou o ensejo para o ajudar no processo e assim, indiretamente, acabam
por os ajudar.
Por seu turno, a postura do deus do
mar justifica-se pela rivalidade que cultiva com Zeus, seu irmão mais velho.
Enquanto primogénito, este detém muito mais poder e autoridade, mas o que mais
irrita Poseidon é o facto de ele ter de desistir dos seus próprios interesses
em prol das prioridades e interesses de Zeus. Ora, este conflito desenvolve-se
paralelamente ao de Agamémnon e Aquiles, que hostiliza o primeiro, o todo
poderoso rei dos Gregos, porque espera que o filho de Tétis abdique de algo que
lhe pertence (Briseida) em seu favor. Poseidon cede, com medo do poder e do
castigo de Zeus, mas solta uma ameaça; também Aquiles cede, mas não sem
procurar uma dupla vingança sobre Agamémnon: abandona o combate e pede ao pai
dos deuses que castigue os Gregos.
Por último, há que atender ao
seguinte no que diz respeito a Heitor: quando ele finalmente atinge os navios
inimigos, a promessa de Zeus está cumprida. De ora em diante, o curso da guerra
alterar-se-á em desfavor de Troia, cumprindo-se, deste modo, a profecia do todo
poderoso deus.
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