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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Análise do poema "Testamento", de Ana Luísa Amaral

Análise

• O sujeito poético inicia o poema com a referência a uma realidade: vai fazer uma viagem de avião.

• Os três versos seguintes sintetizam a “vida desorientada” do «eu»: “o medo das alturas”, “tomar calmantes” e “ter sonhos confusos”.

• O testamento ocupa o resto do poema e consiste, ni fundo, num tratado de (des)educação da filha.

• O verso 5 refere uma realidade plausível: a sua morte (“Se eu morrer” – v. 5). Essa possibilidade leva o sujeito poético a exprimir um desejo: que a filha não se esqueça de si.

• Os desejos do sujeito poético não se esgotam aí, pois deseja igualmente:
a) que alguém lhe cante, mesmo com voz desafinada: o canto (talvez para a embalar, recordando-nos o cenário de uma mãe a embalar um filho antes de adormecer) simboliza a alegria;
b) que lhe ofereçam fantasia (sinédoque), imaginação, quiçá através de uma história de encantar que alguém lhe leia;
c) que lhe deem amor, mesmo após a sua morte;
d) que lhe deem “ver dentro das coisas”, ver a sua essência, a sua autenticidade;
e) que lhe deem sonhos, mas sonhos diferentes dos habituais (“sonhar com sóis azuis”),

• Este é o conjunto de desejos que o «eu» lírico exprime relativamente à sua filha, caso ela morra durante a viagem de avião e, por isso, não esteja presente para os cumprir. Serão esses princípios/valores que a filha deverá aprender e valorizar na vida: a alegria, o otimismo, a fantasia, o amor e o sonho.

• As referências às “contas de somar”, “descascar batatas”, ao “horário certo” e à “cama bem feita” representam aspetos materiais e atividades rotineiras do quotidiano, que o sujeito poético desvaloriza e que deseja que não constituam os princípios e valores que nortearão a vida da filha.

• Na quarta estrofe, o «eu» poético afirma desejar que preparem a filha para a visa se morrer na viagem e se transformar em “átomo livre lá no céu”, despegada do seu corpo (um espírito em liberdade) – eufemismos. Esta preparação para a vida consiste em dar à filha amor e fantasia e fazê-la sonhar, e não prepará-la para as tarefas do quotidiano (atente-se no valor, neste contexto, assumido pelo presente do conjuntivo).

• O sujeito deseja, afinal, que a filha se recorde dela e do seu “contentamento deslumbrado” (alegria) por ver “na sua casa as contas de somar erradas/e as batatas no saco esquecidas e íntegras” (vv. 26-28). Ou seja, o que traz alegria, felicidade e deslumbramento ao «eu» (“mais tarde”, “lá no céu”, isto é, após a sua morte) é a valorização do amor, do sonho e da fantasia, que equivale, por oposição, à desvalorização do quotidiano banal, material e rotineiro: as contas de somar erradas e as batatas esquecidas e íntegras (não tocadas, não descascadas).

• No fundo, a partir da última estrofe, nomeadamente dos versos 21 a 23, pode inferir-se que o sujeito poético deseja igualmente que os ensinamentos que deseja transmitir à filha serão semelhantes aos que esta proporcionará, por sua vez, à sua própria filha.


Representação do contemporâneo: a viagem de avião.


Figurações do poeta

As figurações do poeta dizem respeito à visão feminista e liberal que a poeta tem da educação, pois no poema exprime o desejo de emancipação da mulher relativamente ao papel tradicional que ela desempenha na sociedade/na vida doméstica.
De facto, Ana Luísa Amaral revela, na sua obra, uma grande preocupação com as questões de género e com as opressões daí derivadas, bem como a reivindicação de um espaço fora da esfera doméstica para o elemento feminino. Por isso, nesta composição poética, o «eu» deseja para a sua filha uma vida em que o amor, a fantasia e o sonho assumam um papel mais importante do que as rotineiras tarefas quotidianas/domésticas.
É, no fundo, a defesa da emancipação feminina e do direito à igualdade.


Título

Um testamento é um documento através do qual um indivíduo manifesta a sua vontade e dispõe, no todo ou em parte, os seus bens para depois da morte.


Análise formal
▪ Estrofes: uma quadra, uma sextilha, duas quintilhas e uma oitava.
▪ Rima:
- acentuação: grave ou feminina;
- versos brancos ou soltos.
▪ Métrica: irregular.


Características contemporâneas:
- estrutura formal;
- linguagem sintética, precisa e racional;
- alusão ao «avião».


Intertextualidade:
▪ Estâncias 89 e 90 do canto IX de Os Lusíadas.
Os Maias:
- influência da família na educação;
- relação entre Carlos e Afonso;
- desenvolvimento da inteligência por meio do conhecimento experimental de amor, virtude e honra.

Análise do poema "Soneto científico a fingir", de Ana Luísa Amaral


Contextualização do poema

Este poema pertence ao quarto livro de Ana Luísa Amaral, intitulado E Muitos os Caminhos, e nele a poeta associa-se à tradição poética, ao mesmo tempo que se lhe opõe, subvertendo-a, modificando-a, o que quer dizer renovando-a.


Título

• A poeta chamou «soneto» ao poema, no entanto, formalmente, foge a essa definição, dado que é constituído por 5 quadras, não sendo, além disso, nenhuma delas um terceto.

• O título remete-nos, pois, em simultâneo, para a tradição clássica (foi uma tipologia textual cultivada por Petrarca, Camões, etc.), para a herança modernista de Fernando Pessoa e a sua teoria do fingimento poético (em “Autopsicografia”, por exemplo, enquanto o título desta composição clarifica desde logo que se trata de um soneto “a fingir”) e para a modernidade/contemporaneidade, para um diálogo com todas estas possibilidades.


Análise

• Na primeira estrofe, o sujeito poético remete para outras formas poéticas: as composições de mote e glosa (Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, as redondilhas de Camões), neste caso, em torno do amor.

• O primeiro verso anuncia que o tema do poema é o amor, no entanto, no título, anuncia que é um soneto «científico». Estamos, pois, a falar de ciência, mas de quê? Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para execução de uma arte? Ou a ciência que, frequentemente, é contraposta ao amor e que o explica como reação química?

• A poesia / a arte tem uma função estética: pretende deleitar os sentidos e as pessoas que a apreciam. Por outro lado, “Se for antigo, seja. / Mas é belo / e como a arte: nem útil nem moral.” (vv. 3-4-). Ou seja, na poesia/arte “não há moralidade, não há certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem preconceitos ou limitações de qualquer ordem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Além disso, “a arte não tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Ao contrário dos poetas modernistas, o «eu» explora os temas e as formas clássicas, como já vimos, em oposição aos versos e linhas “devastados” desses modernistas, o que constitui uma forma de subversão: ao retomar essas formas e temas clássicos, entra em confronto com um dos traços modernistas: a regra de não ter regra (“Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe.” (vv. 5-8).

• O sujeito poético propõe-se tratar o tema do amor num soneto. Questionando a antiguidade da forma, contra-argumenta com o mundo: “também o mundo é e ainda existe” (v. 8). No entanto, não vê qualquer vantagem na rima, o que poderá ser visto como «limite» (v. 10), como determinante para a construção do soneto, mostrando a sua indiferença (“deixa ser” – v. 10).

• Contudo, apesar de, teoricamente, o poema ser uma forma clássica, há pontos comuns ao modernismo: a ausência de rima como forma fixa, dado que também este seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / (esta rimou, mas foi só por acaso.)” (vv. 9-12). O «eu» poético assume-se como uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna. O verso entre parêntesis, caracterizado pela linguagem coloquial, ilustra o afastamento da tradição literária, visto que não corresponde ao registo de língua exigido pelo soneto.

• De facto, após manifestar indiferença pela rima (v. 9), surgem os versos 10 e 11 a rimar. O sujeito poético sente a necessidade de referir a causa do facto, em discurso parentético, sublinhando, assim, a liberdade formal que defende.

• O recurso à terceira pessoa do plural e ao futuro do indicativo no verso 10 (“Dir-me-ão”) introduz uma espécie de contra-argumento do sujeito poético: ao justificar a sua tese (a subversão da tradição), entra numa espécie de diálogo com o leitor e antecipa, deste modo, uma resposta à reação que aqueles que não partilham da sua opinião poderão ter.

• Na quarta estrofe, o «eu» aproxima-se imenso de Pessoa e do fingimento poético. Ele transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, criando assim uma nova poética, cujas características são as seguintes: não é rígida na forma de seguir a tradição nem de romper com ela. O «eu» dialoga com as tradições, subvertendo as regras precisamente por não as seguir rigorosamente. Exemplo disso é este texto: ele (ela) escreve um soneto, mas um soneto “coxo” (v. 17) e com linguagem coloquial.

• A ideia do fingimento está bem evidente nos versos 15 e 16, quando o sujeito lírico afirma que os seus versos são mentira, bem como o que mostra. O fingimento é a base da sua criação poética, aliado à rejeição da obediência às regras formais.

• O sujeito poético, socorrendo-se do fingimento poético pessoano, afirma que não pode dobrar-se demasiado para falar de si e mostrar-se na “mentira que é o verso”. Em simultâneo, não sente necessidade de abandonar por completo as formas poéticas: adaptando-se às necessidades da expressão literária, o «eu» produz um soneto «coxo» plenamente consciente das limitações impostas por um soneto, mas não obedecendo a essas limitações.

• De facto, este soneto não segue o modelo do soneto clássico: não tem14 versos, tem 20; não é constituído por 2 quadras e 2 tercetos, mas por 5 quadras; não usa uma linguagem elevada, mas uma linguagem coloquial e até irónica: “se é soneto coxo”, “paciência” (vv. 17-18); é maioritariamente composto por versos brancos, com um desvio (a rima emparelhada em “ser” e “mulher” e cruzada em “paciência” e “ciência”); os versos são maioritariamente decassilábicos, mas alguns apresentam uma métrica diferente.

• O diálogo com a tradição reside precisamente aqui: o sujeito escreve um soneto, explora ainda o tema do amor (“dar mote ao amor”) e depois tem a sabedoria (“ciência”) de se desviar do tema. O «eu» conhece a técnica tem ciência e desvia-se da tradição a partir da tradição, criando a sua própria arte (última estrofe).

• A última estrofe justifica o título, concluindo a linha de pensamento, na indiferença em relação à estrutura do “soneto” e relativamente à construção do poema: afirmar a importância do tratamento do tema “amor” e promover o desvio poético é ciência. É isso que encontramos no poema e no título – um soneto (anunciado) científico (enunciando princípios de arte poética) a fingir (porque apenas é anunciado, mas não concretizado).


Arte poética

• A criação poética de Ana Luísa Amaral assenta, pois, no fingimento e na liberdade criativa, que passa pela rejeição das regras sociais. A criação poética estriba-se, portanto, na criatividade e espontaneidade e inspira-se em temas do quotidiano, como o amor, neste caso. A desobediências às regras formais justifica-se exatamente pelo facto de a obediência às mesmas poder comprometer a criatividade do poeta.

• Ao contrário dos modernistas, Ana Luísa Amaral não nega por completo a tradição literária, mas também não se limita às suas regras. A transgressão e a inovação estão presentes, exatamente na forma de adaptar os modelos à sua expressão, subvertendo-os frequentemente.

Bibliografia:

WILLMER, Rhea Sílvia, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português

Análise do poema "Metamorfoses", de Ana Luísa Amaral

Tema

O tema do poema enquadra-se no âmbito da criação poética despertada pelo quotidiano e pelos seus acontecimentos comuns. No caso deste poema, são as tarefas domésticas.


Análise

No poema, estão representados dois espaços, um exterior (“uma despensa”) e outro interior (o “sótão mental”) ao sujeito poético.

A composição coloca-nos face à imagem de uma mulher atual, dita moderna, que, envolta nas tarefas domésticas, como, por exemplo, a organização de uma despensa, se ocupa também da criação artística, o que faz com que acabe por atribuir sentido metafórico aos aspetos desse quotidiano doméstico.

O sujeito poético abre o poema com um pedido ou um desejo: “Faça-se luz / neste mundo profano”. Essa vontade constitui, no fundo, um apelo à criatividade, a que a sua inspiração surja. Esta ideia é continuada na terceira estrofe: “Que a luz penetre / no meu sótão / mental”.

O seu gabinete de trabalho é uma despensa, qualificado como «mundo profano». Este conjunto metafórico remete o «eu» poético para a condição da mulher urbana, dita moderna, que vive dividida entre a obrigação de se dedicar às tarefas domésticas, entre “presunto e arroz /, (…) e detergentes”, e o impulso «mental» para a escrita. Por outro lado, poder-se-á considerar que o quotidiano doméstico funciona como uma fonte de inspiração para a poesia.

Assim sendo, não pode haver qualquer estranheza no facto de o campo lexical predominante do poema ser algo estranho à poesia: «presunto», «detergentes», «arroz», «despensa». Este vocabulário relembra-nos de imediato “Num bairro moderno”, de Cesário Verde, nomeadamente o momento em que o «eu» recompôs um corpo poético feminino a partir dos vegetais e frutos existentes na giga da vendedeira. Por outro lado, tal pode sugerir igualmente que o quotidiano não é propriamente a fonte de inspiração «perfeita», no entanto, é possível, através da imaginação do processo de criação poética, transformar esses produtos em poesia. Assim se compreende que, no final do poema, se transforme o presunto numa carruagem encantada, características dos contos tradicionais.

O sujeito poético vai organizando a despensa, enquanto o momento de escrever poesia não chega, daí que, nesse período de tempo, tenha de aguardar que se faça luz, isto é, que a inspiração chegue, para que o poema vá surgindo nas folhas de papel que se assemelham aos produtos de consumo.

A segunda estrofe assenta na oposição entre «As outras» e o «eu». Aquelas estão circunscritas a «sótãos», espaços físicos superiores, universos mais elevados, marcados pelo exercício da escrita, enquanto o sujeito poético está confinado a uma simples despensa, onde se move entre «presunto», «arroz», «livros» e «detergentes», compelido a cumprir as tarefas domésticas, procurando conciliar o (esse) mundano com a criação artística (por isso, está sempre acompanhada pelos «livros»).

Assim, o sujeito poético apela à inspiração, que se faça luz e que “a luz penetre / no meu sótão / mental” (isto é, que ela se materialize), de modo que o seu desejo de escrever, de abandonar a despensa (as tarefas domésticas) e atingir o sótão, se concretize e desta forma se opere a transição do espaço exterior para o interior (“transformem o presunto / em carruagem!”).

A figuração poética é construída a partir da tensão entre a realidade do «eu» e a ficção desse mesmo «eu», num permanente “estar entre”. No caso deste poema, o «eu» poético é uma mulher que se divide entre as tarefas do quotidiano, exemplificadas pela organização de uma despensa, e a escritora-poeta que se dedica à escrita. A ligação entre as duas representações acentua-se pelo facto de esse quotidiano ser aquilo que fornece inspiração ao «eu» para escrever, para criar.

De facto, o «eu» poético, dividido entre duas representações distintas, vive nesse constante «estar entre»: de um lado, o quotidiano, feito de elementos concretos e objetivos; do outro, o mundo do sonho, da imaginação, da criatividade, do abstrato, isto é, da criação poética. Ao contrário do que se poderia talvez esperar, estes dois mundos não se opõem, antes se harmonizam, complementam e coexistem: na despensa, há um “sótão mental” e folhas de papel (mentais) que permitem transformar o “presunto / em carruagem”, ou seja, os aspetos domésticos do quotidiano em poesia – a metáfora da carruagem (ao gosto dos contos de fadas) representa a força vital da poesia de Ana Luísa Amaral.

Em suma, o «eu» poético apela à inspiração, pedindo que se faça luz, que essa luz penetre no seu sótão mental, para que o seu desejo de escrever se vá materializando e seja possível, nas «folhas» que embala «docemente», a epifania da escrita, o tão ambicionado sublimar do “presunto / em carruagem”.


Características da poesia de Ana Luísa Amaral

▪ Na poesia de Ana Luísa Amaral, fazem-se sentir com frequência os ecos do quotidiano feminino, especialmente os espaços da sua vivência quotidiana, como a cozinha, a sua casa, a despensa, as tarefas domésticas e quotidianos, os elementos mais recorrentes na sua poesia, os quais acabam por constituir matéria poética.


Estrutura forma
Estrofes: quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras.
Métrica: é irregular.
Rima: versos brancos ou soltos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Classificação tipológica de Aparição

. Romance-ensaio:
. reflexão sobre a condição humana, a existência, o sentido da vida e da morte, a “morte” de Deus, a angústia e a solidão que marcam as personagens, impondo-se uma visão humanista: o Homem é o senhor de si e do seu destino;
. consciência progressiva que o “eu” vai assumindo de si e da sua vida/realidade, em “aparições” sucessivas, num processo de amadurecimento e de crescimento;
. a lição da descoberta de nós próprios.


. Romance de personagem:
. a personagem Alberto Soares ocupa a centralidade da obra e à sua volta tudo e todos gravitam;
. a intriga consiste no combate que a personagem-narrador tem de travar para vencer determinados condicionalismos, limitações e contradições até ao desnudamento de si próprio, nos limites do possível. O narrador não se apresenta como individualidade pura, mas como o modelo do ser humano.


. Romance de espaço:
. a obra é dominada por dois grandes espaços: Évora e a aldeia do narrador-personagem, que, por sua vez, se subdividem noutros espaços (interiores e exteriores), espaços esses que acompanham e contribuem decisivamente para a descoberta do eu encetada por Alberto Soares.

Contexto histórico de Aparição

CONTEXTO HISTÓRICO: Aparição (1959)
¯
. transformação das relações humanas
. luta árdua e irracional pelo poder e pela fama
. desenvolvimento da técnica e da tecnologia
. desenvolvimento de fenómenos culturais
. perda da individualidade
. maior distância entre as pessoas
. esfriamento das relações humanas
. grande solidão, nomeadamente nos grandes centros urbanos e com as pessoas menos afortunadas
. Deus tornou-se para muitas pessoas insuficiente para explicar o mundo e o destino humano
ß
® este panorama leva o Homem:
. a refletir sobre o problema da sua existência;
. à conclusão de que é ele que se constrói a si mesmo e o seu destino;
. face ao questionamento da figura de Deus, só pode recorrer a si próprio para assumir a responsabilidade da sua existência, de construir o seu destino.
ß
® Aparição – romance-ensaio / romance-problema:
. reflexão sobre a condição humana, a existência, o sentido da vida e da morte, a “morte” de Deus, a angústia e a solidão que marcam as personagens, impondo-se uma visão humanista: o Homem é o senhor de si e do seu destino;
. consciência progressiva que o “eu” vai assumindo de si e da sua vida/realidade, em “aparições” sucessivas, num processo de amadurecimento e de crescimento;
. a lição da descoberta de nós próprios.

Vida de Vergílio Ferreira

. 1916 ® Nasce, a 28 de janeiro, na aldeia de Melo, concelho de Gouveia, região da Serra da Estrela, distrito da Guarda.

. 1919 ® Os pais (António Augusto Ferreira e Josefa de Oliveira) emigram para os Estados Unidos e Vergílio Ferreira fica a viver com duas tidas e a avó maternas.

. 1926 ® Entra para o Seminário do Fundão.

. 1932 ® Abandona o Seminário, em novembro.

. 1935 ® Conclui o curso liceal, no Liceu Afonso de Albuquerque da Guarda.

. 1936 ® Ingressa na Faculdade de Letras de Coimbra, frequentando o curso de Filologia Clássica.

. 1939 ® Escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe.

. 1940 ® Conclui o curso de Filologia Clássica.

. 1942 ® Termina o estágio no Liceu D. Pedro III, em Coimbra, nas disciplinas de Português, Latim e Grego.
® Inicia a sua vida profissional no Liceu de Faro.
® Publica o ensaio “Teria Camões lido Platão?”.

. 1944 ® Começa a lecionar no Liceu de Bragança, em outubro.

. 1945 ® É colocado no Liceu de Évora, onde permanecerá catorze anos.

. 1946 ® Casa com Regina Kasprzykowsky, professora liceal de origem polaca.

. 1954 ® Publica Manhã Submersa.

. 1959 ® Publica Aparição.
® Ingressa no Liceu Camões, onde permanece até à reforma.

. 1960 ® Ganha o Prémio Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de Autores, com Aparição.

. 1965 ® Publica Alegria Breve, obra com que obtém o Prémio da Casa da Imprensa.

. 1968 ® Comemora os vinte e cinco anos de actividade literária com a publicação de Aparição em edição ilustrada por Júlio Pomar.

. 1971 ® Participa nos Cursos para Estrangeiros, na Faculdade de Filosofia e Letras de Salamanca, com uma conferência intitulada “Para un auto-analisis literário”.
. 1977 ® A Editora Inova organiza, no Porto, um colóquio em sua homenagem.

. 1979 ® Publica Signo Sinal.
® Participa na longa metragem de Lauro António, Manhã Submersa.

. 1981 ® É jubilado como professor do Ensino Secundário.

. 1983 ® Publica Para Sempre.
® Conquista os prémios do Pen Club, da Associação Internacional de Críticos Literários, do Município de Lisboa e o Prémio D. Dinis da casa de Mateus.

. 1984 ® É eleito para a Academia Brasileira de Letras.

. 1988 ® Ganha o Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, com o romance Até ao Fim.

. 1990 ® Ganha o Prémio Férina com Matin Perdu, a tradução francesa de Manhã Submersa.

. 1991 ® É galardoado com o Prémio Europália pelo conjunto da sua obra.

. 1992 ® É eleito para a Academia das Ciências de Lisboa.
® É-lhe atribuído o Prémio Camões.

. 1993 ® Realiza-se, na Faculdade de Letras do Porto, um colóquio sobre Vergílio Ferreira, em homenagem aos cinquenta anos de actividade literária.
® É-lhe conferido o grau de Doutor Honoris Causa, pela Faculdade de Letras de Coimbra.

. 1996 ® É homenageado em Viseu e em Évora, no aniversário dos 80 anos.
® A 1 de março, morre, vítima de uma crise cardíaca, na sua casa de Fontanelas, curiosamente à mesma hora em que decorria o funeral do irmão, enquanto escrevia Cartas a Sandra.
® Foi sepultado, em campa rasa, em Melo, sua terra natal.

sábado, 16 de maio de 2020

Análise do poema "Green God", de Eugénio de Andrade

Título

O título do poema surge em inglês. O adjetivo “green” remete para a cor que predomina na natureza – o verde –, a qual nos remete também para questões ambientais.

O nome “God” associa a figura descrita no poema a um “deus”, que, no entanto, possui traços humanos: o corpo (v. 3), os passos (v. 8), os braços (v. 9) e o sorriso (v. 11).

 

Análise do poema

1.ª estrofe

• O corpo do “Green God” é associado, nos dois primeiros versos, à graciosidade das fontes e, nos versos 3 a 5, é comparado a um rio e à sua serenidade.

• As fontes simbolizam a água viva e a pureza, sendo, por isso, símbolo de vida.

• O rio simboliza o movimento, a passagem, a fertilidade, a renovação, a juventude.

• Deste modo, o retrato que a primeira estrofe nos permite traçar do Green God é caracterizado pela graciosidade, pela serenidade, pela juventude e pela vitalidade, em comunhão com a natureza.

2.ª estrofe

• A segunda estrofe abre com nova comparação: “Andava como quem passa / sem ter tempo de parar” (vv. 6-7).

• De seguida, é descrito o processo de vegetalização do corpo: o “deus” vai-se metamorfoseando e fundindo com a natureza, que, por sua vez, se vai transformando à medida que ele passa:

‑ ervas nascem dos seus passos;

‑ troncos crescem dos seus braços;

‑ transforma-se numa flor ao vento, que se vai desfolhando ao dançar (vv. 12-13).

• É um deus, portanto, criador de vida.

3.ª estrofe:

• Esta estrofe inicia-se com nova comparação: o “deus” sorria como quem dança. 

• O vocabulário predominante na estrofe pertence ao campo da dança e realça a vitalidade, a graciosidade e a alegria do corpo, dançando e tremendo ao ritmo da música.

 

Retrato do Green God

▪ É um deus vivo e criador: os seus passos criam ervas e o seu corpo cria troncos.

▪ É um deus que sorri e dança quando passa, criando uma atmosfera de encantamento.

▪ É um deus que se vegetaliza, que transforma e se funde com a natureza. O processo de vegetalização do seu corpo atesta o seu caráter telúrico.

▪ É um deus associado às artes, nomeadamente à poesia, à dança e à música.

 

A tradição literária e a contemporaneidade no poema

▪ O tema da natureza está presente na literatura portuguesa desde a Poesia Trovadoresca, passando pelos clássicos renascentistas, até à contemporaneidade.

▪ O mesmo sucede com a temática do bucolismo, presente na imagem da flauta.

▪ O uso do verso heptassílabo está presente na literatura nacional desde o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, e dos clássicos renascentistas.

▪ A modernidade/contemporaneidade deste poema reside na abordagem ecológica da temática da natureza.

Análise de "Quando em silêncio passas entre as folhas"

O sujeito poético dirige-se a um «tu» que passa, silenciosamente, na natureza.

Essa natureza relembra, de certa forma, o «locus amoenus» clássico: as folhas, a ave, as espigas e as fontes são os elementos que a representam.

O «tu» tem um grande impacto e enormes efeitos na natureza:

faz renascer as aves;

as espigas, maduras, tremem;

as fontes param, contemplando-lhe a face.

Em suma, ele provoca alegria na natureza e é detentor de um poder divino, o de dar vida: ele traz da morte as aves.

O sujeito poético mostra-se fascinado com esses efeitos que o «tu» tem na natureza.

Ainda que curto, o texto é bastante rico em matéria de recursos expressivos:

▪ a personificação da natureza (“comedidas / param as fontes”);

▪ metáfora:

. “tremem maduras todas as espigas”;

. “param as fontes a beber-te a face”;

comparação: “como se o próprio dia as inclinasse”.

Estes recursos enfatizam a humanização da natureza e os efeitos nela provocados pela passagem do ser descrito.

O poema é constituído por uma única estrofe, de 7 versos (sétima), todos eles brancos ou soltos e de rima cruzada, de acordo com o esquema rimático ABCDEDE.

Análise de "Agora as palavras", de Eugénio de Andrade

Ao longo do poema, opõe-se dois tempos: o presente (“agora” – v. 1) e o passado.

Com a passagem do tempo, a relação do sujeito poético com as palavras alterou-se e, no presente, é caracterizada pelo seguinte:

» passou a sentir mais dificuldade em dominar as palavras (“não fazem / caso do que lhes digo” – vv. 3-4), que o ignoram;

» as palavras começaram a resmungar (“A propósito / de nada resmungam” – vv. 2-3);

» as palavras não lhe obedecem (vv. 1-2) ou obedecem-lhe muito menos;

» as palavras desrespeitam-no, desrespeitam a sua idade (“não respeitam a minha idade.” – v. 5);

» as palavras são “ariscas” e escapam-se-lhe “por entre / as mãos” (vv. 16-17);

» as palavras mostram-lhe os dentes, como forma de protesto (verso 17).

A referência à idade do «eu» lírico no verso 5, associada aos dois versos finais, significa que, com a passagem do tempo, aquele reconhece que a sua relação com as palavras se alterou e parece não ter a certeza acerca de quem é responsável por essa mudança. De facto, embora ao longo do texto lhas pareça atribuir, a interrogação desses dois últimos versos parece indiciar que não tem a certeza disso.

Ao longo do poema, predomina a personificação das palavras, a quem são associados atributos humanos e que parecem ter vida própria. Sobretudo no presente, mostram-se independentes, sentem, reagem e lutam com o sujeito poético.

Por outro lado, é-lhes associado um caráter metafórico, ao serem associadas a animais: elas são desobedientes, arreganham os dentes (como um cão, por exemplo), eram controladas pela rédea (como um cavalo) do sujeito poético. Todos estes recursos, incluindo a personificação, contribuem para dar vida às palavras e sugerir que o ofício de ser poeta é bastante exigente.

Os versos 6 a 9 permitem-nos compreender perfecionismo e o processo de criação artística sustentado pelo «eu»: é um processo meticuloso e rigoroso – ele trabalha as palavras com rigor (“mão rigorosa” – v. 8), caracterizado também por um controlo absoluto delas (daí o uso do nome «rédeas») e pela recusa dos artifícios (“a indiferença pelo fogo de artifício.”).

Pelo contrário, no passado, as palavras gostavam do sujeito lírico (“e elas durante muitos anos / também gostaram de mim” – vv. 11-12), eram obedientes, causavam-lhe alegria e entre ambos havia uma relação harmoniosa (“dançavam / à minha roda quando as encontrava.” – vv. 12-13). Esta relação passada entre o «eu» e as palavras é explicitada a partir dos dois pontos.

A metáfora do verso 14 (“Com elas fazia o meu lume”) estabelece uma associação entre palavra, poesia e vida. O lume, o fogo, equivale a vida.

A interrogação final, como já foi referido, aponta para uma explicação alternativa para a mudança operada nas palavras: talvez tenho sido, afinal, o sujeito poético quem mudou, visto que passou a procurar as palavras mais difíceis (“Ou será que / já só procuro as mais encabritadas?” – vv. 18-19).

Ao longo do texto, o sujeito poético enuncia as possíveis causas para esta alteração de comportamento das palavras. Em síntese:

1.ª) o envelhecimento do sujeito poético (“não respeitam a minha idade” – v. 5);

2.ª) o sujeito poético não sabe escolher as palavras mais apropriadas (vv. 18-19);

3.ª) as palavras cansaram-se do controlo excessivo por parte do sujeito poético (“Provavelmente fartaram-se da rédea” – v. 6).

 

Intertextualidade

Se relacionarmos este poema com outros de Eugénio de Andrade, como, por exemplo, “As palavras”, verificamos que, neste último, as palavras se deixavam dominar e controlar pelo poeta, ao contrário do presente, em que se mostram rebeldes, esquivas e indomáveis.

 

Processo de criação artística

O sujeito poético relaciona-se de modo quase conflituoso com a sua poesia, em decorrência da tensão que existe entre a sua vontade de trabalhar as palavras e a incapacidade de o fazer, como confessa nos versos 16 e 17.

Por outro lado, declara todo o rigor, perfecionismo e recusa do “fogo de artifício” com que encara o processo de criação poética.

Análise do poema "Amoras", de Eugénio de Andrade

Neste poema, o sujeito poético começa por associar o seu país a algo positivo – as amoras bravas no verão: ambos têm o mesmo sabor.

De seguida, nos versos 3 e 4, através da personificação, identifica alguns traços negativos do país: a simplicidade e a pequenez (“não é grande” – v. 3), a falta de inteligência (“nem inteligente” – v. 4). Estamos, portanto, perante um país pequeno, fechado (v. 10), pouco inteligente e feio.

A conjunção coordenativa (“mas” – v. 5) introduz uma outra visão do seu país, novamente positiva, como no início do texto: é doce e alegre, mesmo em circunstâncias difíceis, ideia presente na referência às silvas (v. 6), uma planta selvagem que causador e sofrimento quando nelas nos picamos.

No verso 7, o sujeito poético declara que raramente falou no seu país e assinala uma possível (advérbio “talvez”) razão que está na base desse facto: a falta de afeto por ele (“nem goste dele” – v. 8), a juntar aos defeitos apontados anteriormente: a ausência de dimensão, de inteligência e elegância.

O verso 10 associa ao país do sujeito poético um outro traço negativo: o fechamento, o isolamento, a falta de horizontes e liberdade, como se pode inferir da referência a “os seus muros”.

No entanto, a oferta de amoras bravas por parte de um amigo faz com que o sujeito poético ganhe consciência de que o seu país é humilde e alegre, de certa forma, o que o faz libertar-se temporariamente da contrariedade que constituem os “seus muros”, que limitam os horizontes. Nesse momento de generosidade e amizade, os muros parecem-lhe brancos (paz, pureza) e apercebe-se de que o céu é, ali, também azul, ou seja, também ali é possível ter uma existência feliz.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Análise do capítulo I de Os Maias

Localização espacial de temporal da ação
Espaço: Ramalhete, em Lisboa.
Tempo: outono de 1875.

1. Descrição do Ramalhete

1.1. Objetivo da descrição: permitir, à maneira naturalista, um melhor enquadramento das personagens e definição dos carateres, como espaço de convergência e harmonia entre o ambiente e seus anfitriões e frequentadores.

1.2. Descrição do Ramalhete (espaço histórico-familiar) – presente:

▪ é a residência da família Maia, em Lisboa;

▪ situa-se na Rua de S. Francisco, às Janelas Verdes;

▪ é um “sombrio casarão de paredes severas”;

▪ tem “um renque de estreitas varandas de ferro”;

▪ possui também “uma tímida fila de janelinhas”;

▪ “tinha o aspeto tristonho de residência eclesiástica”;

▪ estivera desabitado durante longos anos, pelo que ganhara tons de ruína;

▪ é um edifício de “gravidade clerical”;

interior:

- “disposição apalaçada”;

- “tetos apainelados”;

- “paredes cobertas de frescos”.

 
1.3. Origem do nome Ramalhete: um painel de azulejos representando um ramo de girassóis, substituindo o escudo heráldico da família.
 
1.4. Descrição do quintal do Ramalhete:
▪ pobre, inculto e abandonado;
▪ cheio de ervas bravas;
▪ elementos que nele existem: um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque cheio de entulho e uma estátua de Vénus Citereia enegrecendo a um canto por causa da humidade.
 

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