● Sumário
O sumário deste capítulo revela a
grande variedade de assuntos abordados no capítulo, cumprindo assim Garrett o
projeto de fazer múltiplas «viagens».
● Localização espacial da viagem
O espaço compreende a distância
que vai desde o Terreiro do Paço (Lisboa) até Santarém, com referências
concretas a Vila Nova (cap. II), Azambuja (cap. V), ao café do Cartaxo (cap.
VI), à Charneca (cap. VIII) e, finalmente, ao Vale de Santarém (cap. X).
● Localização temporal: fim da tarde.
● Estrutura interna do capítulo
▪ 1.ª parte: Descrição do Vale de
Santarém.
▪ 2.ª parte: Reflexões a propósito
de uma janela.
▪
3.ª parte: Reprodução de um diálogo entre o narrador e um companheiro de
viagem.
▪ 4.ª parte: Preâmbulo a uma
história que o narrador irá reproduzir.
● Descrição (romântica) do vale
▪
Simbolismo: o vale é descrito como um lugar ameno e deleitoso, com uma
vegetação frondosa, uma harmonia suavíssima, uma simetria de cores, um sítio simples,
sereno e harmonioso habitado pela paz, pela saúde, pelo sossego de espírito,
pelo repouso de coração, pelo amor, pela benevolência e pela inocência, isto é,
propício ao desenvolvimento de estados de espírito e de caracteres bons,
serenos, saudáveis. É o locus amoenus clássico.
▪ O
vale é associado a um Éden, a um Paraíso, isto é, um local idílico e aprazível,
símbolo de harmonia, que influencia e transforma quem ali vive: “As paixões
más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão
fugir para longe.”. Essa associação justifica-se por haver nele uma pureza
original e um estado de perfeição e de bondade paradisíacas que a sociedade
perdeu. É o paraíso puro, ainda livre de todo o mal que a sociedade gera (mito
do bom selvagem, de Rousseau).
▪ A
paisagem está em harmonia com o estado de alma: “… tudo está numa harmonia
suavíssima e perfeita (…) não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do
espírito e o repouso do coração devem viver ali…”.
▪ A
paisagem descrita é claramente romântica, sendo marcada pela harmonia, pela
suavidade, pela simetria de cores, pela paz, pela saúde, pela perfeição, traços
que se adequam a Joaninha.
▪ O
cenário adquire, assim, um estatuto alegórico intemporal, acentuando o caráter
mítico do cenário onde a novela se vai desenrolar.
▪ O
objetivo da descrição é colocar, neste cenário, Joaninha, bem como a
avó, personagens que partilham esse estado de pureza original e se harmonizam
com este ambiente idílico, pois são espontâneas, boas e naturais como aquele
espaço.
▪ A
descrição é feita do geral para o particular.
▪ Na
descrição são usados diversos recursos estilísticos:
- Valorização do
indefinido: um, tudo, nada.
- Nomes abstratos: suavidade,
harmonia, beleza, …
- Personificação: “A
faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos” (sugere a proximidade dos
ramos das árvores, que formam espécies de tetos).
- Enumeração: “As
paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não
podem senão fugir para longe” (sugere a grande variedade de árvores, arbustos e
plantas menores).
- Metáfora: “a
congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão” (sugere a
suavidade e a delicadeza da cobertura de ervas).
- Interrogação
retórica: “Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?”.
- Comparação:
“Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço”.
- Sinédoque: “Parei e
pus-me a namorar a janela”.
- Metonímia:
“Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e
com a virgindade do seu coração”.
● Prólogo da história da “Menina dos
Rouxinóis”
▪ O
narrador começa por falar de uma habitação antiga, situada no meio de uma
paisagem paradisíaca, e, em seguida, de uma janela entreaberta e, finalmente,
de um vulto. É a partir deste que um companheiro de viagem lhe fala na história
da Menina dos Rouxinóis. Quem lhe conta a história é, de facto, esse
companheiro de viagem, mas o narrador acaba por se apropriar dela: “… minha
Odisseia…”), para poder continuar a fazer as suas digressões ou divagações.
▪
Quando depara com a janela, o narrador produz um monólogo interior, motivado
pela observação da própria janela (“encantava-me como um feitiço”) e pelo vulto
vestido de branco (símbolo de pureza) e de olhos pretos. De facto, numa atitude
sonhadora e imaginativa, ele idealiza a existência de um vulto feminino,
vestido de branco, numa atitude meditativa e com olhos pretos. Ele perde-se,
fascinado, imaginando: quem a habitará?, que felicidade será morar ali? Imagina
uma cortina, um vulto – feminino, como não poderia deixar de ser. Ou seja,
Garrett vai preparando, habilmente, a entrada em cena da novela.
▪
Porém, o companheiro de viagem corrige-o, esclarecendo que os olhos eram verdes
«como duas esmeraldas» (comparação que realça o brilho dos olhos e os associa à
natureza) e acrescenta que outrora existiu ali uma figura feminina, um anjo,
conhecida como a menina dos rouxinóis.
▪
Os olhos da Menina dos Rouxinóis – verdes – são a representação simbólica da
essência natural de uma personagem que habita aquele lugar natural, harmonioso
e puro.
▪ O
rouxinol é o símbolo do sentimento amoroso (Menina e Moça, de
Bernardim Ribeiro), mas também o prelúdio da desgraça amorosa (janela dos
rouxinóis → Menina dos Rouxinóis).
▪ O
interesse do narrador pela janela é despertado por diversos motivos:
1.º) O mistério que a
rodeia, pois o narrador não a vê totalmente (“vê-se por entre um claro das
árvores»), ela encontra-se «meio aberta», julga ver um vulto através dela e
imagina uma personagem e uma história.
2.º) A sua
antiguidade, que decorre das marcas que o tempo nela deixou (“carregada na cor
pelo tempo e pelos vendavais do sul”), pelo que deve estar associada a várias
histórias.
3.º) O canto dos
rouxinóis.
▪
No excerto, entrevê-se a mulher romântica: a mulher namorada, a mulher
idealizada, a mulher-anjo.
▪
Público-alvo da novela: as «belas e amáveis leitoras», por considerar que
estariam mais predispostas a uma novela sentimental.
▪
Por que razão o narrador a classifica como «novela», rejeitando a hipótese
«romance»? Segundo ele, a história que vai contar tem uma ação simples, sem
«aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros». A sua narração
será igualmente simples, sem grande trabalho formal, no entanto «sinceramente
contada».
▪ O
narrador associa a narração da novela à Odisseia, através de uma
metonímia: «É o primeiro episódio da minha Odisseia». Com isto, sugere a
aventura da escrita, mas também todos os obstáculos que poderão ocorrer durante
esse processo.
▪ A
história da Menina dos Rouxinóis é inserida no relato da viagem através da
técnica do encaixe.
● Digressão sobre o poeta e a mulher
apaixonada
Através de uma sinédoque (esta
mulher – a parte – representa todas as mulheres apaixonadas – o todo –,
mostrando que há uma essência comum a todas), o narrador afirma que há uma
semelhança entre o poeta e a mulher apaixonada: ambos se elevam a um estado
superior, pensam e sentem de forma especial, diferente dos demais, e superam a banalidade
do mundo.
Naquele enquadramento idílico e
paradisíaco, caracteristicamente romântico, o vulto que imagina à janela só
poderia, de facto, ser uma mulher apaixonada ou um poeta, pois são ambos seres
dotados de uma sensibilidade única, que «veem, sentem, pensam, falam como a
outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala».
● Concretização do projeto anunciado no
capítulo:
→
Ver: descrição do vale e da janela.
→
Ouvir: história de Joaninha, da Menina dos Rouxinóis.
→ Sentir: visão subjetiva da
paisagem – aprecia o vale como «um destes lugares privilegiados pela natureza».
→ Pensar: reflexões sobre a
janela, sobre quem morou ali, sobre o homem e a mulher apaixonados e sobre a
receção da sua «odisseia», isto é, da novela que vai contar.
● Planos narrativos
Neste capítulo, os planos da
viagem e da novela cruzam-se e relacionam-se de forma indissociável.
De facto, a novela da Menina dos
Rouxinóis é contada ao narrador por um companheiro de viagem, que a ouve e dela
acaba por se apropriar. Ora, tal significa o concretizar do projeto anunciado
pelo narrador no primeiro capítulo:
● Narrador
O narrador é heterodiegético:
o efetivo é um companheiro viajante de Garrett, mas o narrador da obra acaba
por se apropriar da história e acrescentar aspetos de cariz ideológico, moral e
social, etc.: “É o primeiro episódio da minha Odisseia…”.
Por outro lado, o capítulo contém
diversas expressões que denotam o protagonismo do narrador e o caráter
romântico das suas “meditações”: “Interessou-me aquela janela”; “Parei e pus-me
a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como um feitiço”; “Se o vulto
fosse feminino!... era completo o romance”.
● Narratário
Na parte final do capítulo, o
narrador dirige-se às «belas e amáveis leitoras». O apelo à leitora
surge em contextos muito próprios, sobretudo quando se processo o relato da
novela, que é suscetível de ser apreendida como história de índole romanesca e
sentimental, mas o narrador depressa esbate essa hipótese: “Ainda assim, belas
e amáveis leitoras, entendamo-nos o que eu vou contar não é um romance… é uma
história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.”.
A leitora não é, porém, invocada
quando está em causa a discussão de matérias de caráter intelectual, como
História, Filosofia, Política, etc., o que parece revelar por parte do narrador
uma exclusão tática da leitora, porque esta estaria mais predisposta à receção
de outros assuntos. De facto, o narrador seleciona um interlocutor feminino ou
masculino de acordo com o assunto que aborda.
Esta imagem da leitora representa
a mulher que apenas tinha acesso a um leque de temas relacionados com o foro
sentimental e íntimo e com as narrativas de índole sentimental.
● Marcas românticas
▪ A
descrição de uma natureza romântica, inspirada pelo «locus amoenus» clássico.
▪ Identificação da natureza com o
estado de alma.
▪
Gosto pelo vago: “É amiudar muito der mais a pintura, que deve ser a grandes e
largos traços para ser romântica, vaporosa.”.
▪ A
natureza espontânea.
▪
Gosto pelas coisas antigas: “uma habitação antiga”.
▪ O
gosto pelo que é nacional: o vale de Santarém é algo que nenhuma outra nação
tem; a defesa da língua portuguesa («… dizem as damas e os elegantes da nossa
terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei
quê.»).
▪ A
ideia de encantamento: “Encantava-me aquela janela”.
▪ O
poeta como ser sentimental, diferente dos outros homens.
▪ A
ideia de que o afastamento da sociedade, a convivência com a natureza purifica
o homem – mito do bom selvagem, de Rousseau.
▪ O
rouxinol.
▪ O
pôr do sol.
▪ A
sensação do misterioso (a janela meio aberta).
● Características clássicas
▪ A harmonia patente no texto.
▪ O sentimento de paz e bem-estar.
▪ O locus amoenus.
● Tipos de discurso
» Descrição: frases
longas, verbos de estado, enumerações, nomes e adjetivos.
» Monólogo interior:
frases curtas, interrogativas e exclamativas, repetições.
» Diálogo: discurso
direto, língua oral, frases incompletas, frases-feitas.