Uma senhora pediu-me
um poema de amor.
Não de amor por ela,
mas "de amor, de amor".
À parte aquelas
trivialidades
"minha rosa, lua
do meu céu interior"
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?
Sem o objeto, o poema
é uma redação
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.
Alexandre O'Neill, Poesias Completas
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
domingo, 2 de dezembro de 2012
Os maias, 'Os Maias' e o fim do mundo
Por Ferreira Fernandes
DIZ-SE dos tolos que, quando se aponta a Lua, eles olham para o dedo. Os maias tinham a reação inversa. Ótimos astrónomos, enquanto apontavam para o alinhamento dos planetas não viram chegar os espanhóis que deram cabo deles. De que lhes serviu serem uma civilização superior? Pois esses notórios incapazes de preverem o desastre próprio ganharam agora fama por anunciarem o fim dos outros: um antigo calendário maia marcou o fim do mundo para o próximo 21 de dezembro. Tolice acreditada por meio mundo - a Internet pôs-se nervosa, anunciaram-se suicídios - a ponto de, ontem, um cientista da NASA ter de desmentir. O choque de planetas, a tempestade solar e outros apocalipses antes do Natal, tudo aldrabices.
Acredito, e aconselho a leitura não do fatídico calendário dos maias, mas de Os Maias. No fim do romance de Eça, os amigos Carlos da Maia e João da Ega dedicam-se a conversa dramática: "Não a vale a pena viver...", diz um. O outro concorda. E ambos chegam à conclusão de a única certeza ser o pó que nos espera. Porquê correr, pois, por alguma coisa?... Aí, Carlos olha para o relógio e vê que estavam atrasados para o jantar no Hotel Bragança. E deitam-se os dois a correr atrás da carruagem que os levará ao "paio com ervilhas"...
Assim acaba Os Maias, e é uma mensagem que merece mais Internet do que a outra, dos maias.
Leitor, quando lhe apontarem o fim do Mundo, a 21, olhe para o bacalhau e a couve tronchuda, dias depois.
Diário de Notícias, 1 de dezembro de 2012
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Corrupção na Educação
O mote é o mais ou menos o seguinte: "Dinheiros públicos, vícios privados: corrupção na Educação".
Segunda-feira, Repórter TVI, logo a seguir ao Telejornal.
"O deus Pã não morreu"
Antes de iniciar a análise
propriamente dita do texto convém esclarecer quem são as entidades mitológicas
nele referidas.
Assim, Pã era o deus dos pastores da
região da Arcádia (região central do Peloponeso) e representava o poder e a
fecundidade da natureza selvagem, com fortes implicações sexuais. Era
representado com orelhas, chifres e pernas de bode. Além disso, como era amante
da música, transportava consigo sempre uma flauta. Por sua vez, os Romanos
identificaram-no como o deus itálico Fauno. Uma lenda conta que, no reinado do
imperador romano Tibério (século I d. C.), o piloto de um navio ouviu uma voz
que lhe ordenou que anunciasse a seguinte mensagem: «o Grande Pã está morto».
Quando o marinheiro obedeceu, toda a natureza começou a gemer. Frequentemente,
é associado à palavra grega “pan”,
que significa “tudo”, uma associação
errada, no entanto deu origem à ideia de que Pã simbolizava «o Grande Todo», ou
seja, o poder universal da vida.
Por seu turno, Apolo era o deus do
sol e da música, irmão gémeo de Artemis, deusa da lua e da caça, filho de Zeus
e da ninfa Leto. Por outro lado, Apolo amava a música, tendo sido presenteado
com uma lira por parte de Hermes, feita a partir da carapaça de uma tartaruga e
de tripas de gado.
Quanto a Ceres, era, entre os
romanos, a deusa das colheiras e do cereal, o equivalente a Deméter entre os
gregos.
O deus Pã simboliza o neoplatonismo
para os neoplatónicos e para os cristãos, daí a sua «adoção» por parte de
Ricardo Reis, em cuja filosofia existencial – a do paganismo da decadência ‑ se
inscreve a ideia da sobrevivência dos deuses pagãos (“O deus Pã não morreu” –
v. 1), bem como no programa do neopaganismo (de Fernando Pessoa ele mesmo e dos
seus heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e António Mora).
O neopaganismo sustentava o reatar
da alma grega na arte, na religião e nas instituições políticas, ao considerar
que nada, depois dos gregos clássicos, pode igualar a sua civilização. Neste
sentido, o cristianismo é visto como um retrocesso, um atraso civilizacional.
Neste poema, Cristo é apresentado
num plano de igualdade com os deuses pagãos referidos. Ele não “matou outros
deuses”, é apenas “um deus a mais, / Talvez um que faltava”, o que indicia que
é um deus dispensável, pois é “apenas mais um”. Assim, a noção do Cristianismo
segundo a qual Cristo seria o único e verdadeiro deus é implicitamente rejeitada,
afirmando-se, pelo contrário, que todos os deuses pagãos antigos permanecem.
Cristo, de facto, “não matou outros deuses”, é apenas “ Quanto ao ser humano,
falta-lhe reconhecer essa permanência dos deuses pagãos.
A relação entre o ser humano e os
deuses carateriza-se pela distância e pela indiferença, dado que estes estão “Cheios
de eternidade / E desprezo por nós” (vv- 18 e 19).
O perfil dos deuses é traçado com
clareza: são “claros e calmos” (v. 17), eternos / imortais, regem o mundo (“Trazendo
dia e a noite / E as colheitas douradas”), mas não por causa dos seres humanos
(“Sem ser para nos dar / O dia e a noite e o trigo”, antes por razões que não
estão ao alcance da compreensão humana e alheias à sua vontade (“por outro e
divino / Propósito casual” – vv. 24-25).
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
"A pequena angústia"
O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses emigrassem...
- Pé de gazela
na lua.
Um desejo adusto fora d'uso.
Um lírio.
Seria livre.
Ilimitado,
como nuvem humilde
quando se dissolve.
O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses regressassem...
A pergunta tenta como osso
debaixo da carne.
Ruy Cinatti (1969)
poderia ser
se todos os portugueses emigrassem...
- Pé de gazela
na lua.
Um desejo adusto fora d'uso.
Um lírio.
Seria livre.
Ilimitado,
como nuvem humilde
quando se dissolve.
O que Portugal
poderia ser
se todos os portugueses regressassem...
A pergunta tenta como osso
debaixo da carne.
Ruy Cinatti (1969)
terça-feira, 27 de novembro de 2012
"Sim, sei bem"
Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me me crer
O que nunca poderei ser.
8-7-1931
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me me crer
O que nunca poderei ser.
8-7-1931
Odes de Ricardo Reis
Linguagem e estilo de Ricardo Reis
- Aspetos fónicos:
- composição preferida: a ode horaciana, com estrofes regulares em verso decassilábico, alternado ou não com o hexassílabo;
- eufonia;
- verso branco / solto;
- irregularidade métrica (por vezes);
- recurso frequente à assonância, à aliteração e à rima interior.
- Aspetos morfossintáticos e semânticos:
- subsmissão da expressão ao conteúdo: a uma ideia perfeita corresponde uma expressão perfeita;
- sintaxe alatinada:
- ordem inesperada das palavras;
- anteposição do complemento direto ao verbo («As rosas amo...» em lugar da ordem tradicional da língua portuguesa: «Amo as rosas...»);
- uso de latinismos: "astro", "ledo", "ínfero", "vila", "vólucres", "inscientes", etc.;
- uso frequente da inversão (hipérbato e eanástrofe) e da elipse;
- uso frequente do imperativo (de acordo com a feição moralista das odes) ou do conjuntivo com valor de imperativo;
- uso do gerúndio;
- perífrases (remetem para um contexto religioso e mitológico grego ou latino);
- eufemismos (traduzem / suavizam a ideia de morte, que Ricardo Reis, afinal, teme);
- estilo denso e rigorosamente elaborado, construído, pensado, nos antípodas, por exemplo, de Alberto Caeiro;
- seleção cuidada de fonemas ou vocábulos sugestivos das ideias que pretende exprimir (a elevação, a nobreza, o classicismo da linguagem).
Temas da poesia de Ricardo Reis
- Epicurismo:
- busca da felicidade relativa;
- moderação dos prazeres / busca de um prazer relativo;
- fuga ao sofrimento e à dor (aponia);
- ataraxia (tranquilidade ou indiferença capaz de evitar a perturbação, a dor e o sofrimento).
- Estoicismo:
- ideal da apatia:
- aceitação das leis do Destino / Fado, entidade inexorável que oprime deuses e homens;
- indiferença face às paixões e aos males (moderação).
- abdicação de lutar;
- autodisciplina, autodomínio.
- Paganismo:
- crença nos deuses;
- crença na civilização romana;
- sente-se um "estrangeiro" fora da sua pátria, a Grécia
- Horácio (horacianismo):
- carpe diem: fruição do momento presente ("Colhe o dia / Porque és ele");
- aurea mediocritas: a felicidade possível no sossego do campo (proximidade de Alberto Caeiro);
- símbolos clássicos do sorriso, do vinho, das flores: tentativa de iludir o sofrimento resultante da consciência aguda da efemeridade da vida, do fluir contínuo do tempo e da fatalidade da morte.
- Intelectualização das emoções (o oposto de Alberto Caeiro).
- O culto do Belo como forma de superar a brevidade e a transitoriedade dos bens terrenos e da vida.
- A intemporalidade das suas preocupações:
- a angústia humana perante a brevidade da vida e a certeza da morte;
- a busca de soluções tendentes a limitar o sofrimento que carateriza a vida humana.
- Outros temas clássicos:
- a miséria da condição humana;
- a efemeridade da vida;
- a velhice e o medo da morte;
- a fatalidade da morte;
- a aceitação calma e serena das coisas;
- o equilíbrio interior pela busca de um prazer relativo.
Caeiro e as ovelhas
* * * * * * * * * *
Observe os dois cartunes apresentados.
Elabore um pequeno texto de apreciação crítica sobre uma das imagens.
Se selecionar o primeiro, relacione-o com a poética de Alberto Caeiro.
Se optar pela crítica do segundo, relacione-o com a ode de Ricardo Reis «Vem sentar-te comigo, Lídia...".
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
Branca de Neve procura emprego
É PROVÁVEL que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre os dispensaram.
Até agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente rumo ao index dos eurodeputados.
O index será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn, criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma, corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
Por sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os "estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a "auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações, escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que confunde a fantasia com o quotidiano.
Não tenho opinião sobre os modelos imaginários que devem orientar as criancinhas. Em compensação, parecem-me evidentes os modelos palpáveis de que as criancinhas devem ser protegidas a todo o custo - a menos, claro, que os pais lhes desejem um emprego em Bruxelas, a incomodar o próximo para entreter o ócio e realizar uma vocação.
DN, 25 de novembro de 2012
Linguagem e estilo de Alberto Caeiro
- Linguagem simples, familiar e objetiva.
- Pobreza lexical.
- Verso livre, geralmente longo.
- Irregularidade / liberdade estrófica e métrica.
- Despreocupação a nível fónico.
- Adjetivação pobre e objetiva.
- Pontuação lógica.
- Predomínio do presente do indicativo, modo do real.
- Frases simples.
- Predomínio da coordenação.
- Aproximação à prosa.
- Metáforas e comparações originais, relacionadas com elementos naturais: "Minha alma é como um pastor", "Pensar incomoda como andar à chuva", "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento".
- Marcas de oralidade.
domingo, 25 de novembro de 2012
"Vem sentar-te comigo, Lídia..."
No início do poema, o sujeito
poético, situado num espaço bucólico, através da apóstrofe presente no primeiro
verso (que, juntamente com o recurso ao modo imperativo e ao presente do conjuntivo,
remete para a existência de um interlocutor a quem o discurso é dirigido e cuja
elaboração desvanece o individualismo de Ricardo Reis, que, assim, procura
ultrapassar o negativismo do ortónimo, fechado em si mesmo), convida Lídia a
sentar-se consigo e a contemplar o rio e a sua corrente como metáforas da
brevidade e transitoriedade da vida e do fluir do tempo (“fitemos o seu curso”, v. 2), numa atitude de observação, passividade
e de não intervenção. A vida é, assim, apresentada como uma viagem que flui
como um rio e cujo fim é inevitável e inexorável. De facto, esse convite
transforma-se, logo de seguida, num exercício intelectual (“aprendamos” – v. 2; “pensemos”
– v. 5) – a razão deverá predominar sobre a emoção. Assim, a partir da observação
e interação com a Natureza, comandada pela razão (“aprendamos”), ele convida-a a aprender uma lição: tal como o rio,
a vida passa e não volta (recorde-se, a este propósito, Heraclito, que afirmou
que ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio, símbolo, portanto, da
constante mudança do indivíduo e do seu percurso a caminho do fim). Esta é, em
suma, a lição de vida que o «eu» pretende transmitir a Lídia.
Essa constatação da brevidade da
vida é aceite de modo sereno e conduz ao desejo de fruir o momento e assumir
compromissos. Note-se, a propósito, os parêntesis do verso 4, que funcionam
como uma espécie de aparte, uma hipótese transitória: o raciocínio do sujeito
poético é, momentaneamente, quebrado pelo impulso amoroso de “entrelaçar as
mãos”, expressando o desejo de fruir o momento presente, único bem que nos é
dado possuir. Esta atitude é compreensível em quem (re)toma consciência da
brevidade da vida, no entanto é um mero instante de “distração”, uma mera
hipótese que jamais se concretiza. Porém, rapidamente o sujeito poético conclui
pela rejeição de qualquer compromisso com Lídia. Da constatação de que “não estamos de mãos enlaçadas” (v. 3),
parte para a possibilidade de “Enlacemos
as mãos” (v. 4), que seria uma hipótese possível de relacionamento amoroso,
mas que, analisada a situação, se afigura inconsequente. Daí a afirmação do
verso 9. Em suma, este enlaçar de mãos (v. 4), a simbolizar o compromisso, o
adotar atitudes e decisões, o «fabricar» qualquer coisa que fique, não é,
portanto, mais do que uma hipótese, cuja concretização de nada valeria.
No início da segunda estrofe, o
sujeito poético reforça o apelo à racionalidade (“pensemos”). De seguida, o paradoxo “crianças adultas”, em forma de modificador do nome apositivo,
destaca a Natureza paradoxal dos amantes que, apesar de possuírem a ingenuidade
das “crianças”, aludida na primeira estrofe, são, afinal, adultas, por isso
sujeitas ao pensamento, que as obriga a reconhecer a passagem do tempo, a
efemeridade da vida, a qual não depende do sujeito, e a morte, representada
pela imagem eufemística do “mar muito
longe” (v. 7), onde todos os rios (todas as coisas humanas) vão desaguar. O
sujeito poético e Lídia têm uma consciência “adulta” de que a passagem do tempo
é inexorável e de que a vida é efémera. Por isso, adotam uma postura de
rejeição estoica ao desenvolvimento amoroso, mantendo uma ligação pura e sem
paixão, como se fossem crianças. De facto, na hierarquia do comando da vida
humana, a posição mais alta cabe ao Fado / Destino, entidade a quem até os
deuses obedecem, ideia expressa pela comparação dos versos 7 e 8. Recorde-se, a
este propósito, a passagem da Ilíada
em que Zeus, podendo salvar o seu filho Sarpédon, não o fez, porque sabia ser
vontade do Destino que ele morresse.
Dito de outra forma: porque a vida é
fugaz e eles não estão de mãos dadas (não estabeleceram laços, não se
comprometeram, nada produziram que dure), talvez fosse oportuno enlaçarem as
mãos. Porém, refletindo melhor (possuidores da racionalidade do adulto e,
simultaneamente, da ingenuidade das crianças), a fugacidade da vida é tão
desconcertante (notar o paralelismo de construção “a vida passa e não acaba” – pleonasmo – e “nada deixa e nunca regressa”) que definitivamente o sujeito
poético se decide pela não assunção de qualquer compromisso afetivo.
A terceira estrofe inicia-se com a
afirmação do refrear do impulso amoroso por parte do sujeito poético (“Desenlacemos as mãos” – v. 9) e que se
prolonga pelo resto da composição (vv. 17, 19-20 e 21-22), que vai num
crescendo de passividade que culmina numa atitude de quase indiferença. Ou
seja, em consequência da reflexão que desenvolve sobre a vida, o sujeito
poético decide desenlaçar as mãos das de Lídia, por considerar que se trata de um
dos “desassossegos grandes” (v. 12), isto é, compromissos ou emoções /
sentimentos extremos (“amores” – v.
13; “ódios” – v. 13; “paixões” – v. 13, “invejas” – v. 14 – enumeração gradativa sindética) e as preocupações
que lhes são inerentes (“cuidados” –
v. 15), que podem impedir que viva “silenciosamente”
(v. 11), ou seja, em tranquilidade, sem agitação. Ao evitar esses “desassossegos”, o sujeito poético atinge
a ataraxia desejada, pois não vale a pena qualquer esforço, dado que, “quer gozemos, quer não gozemos, passamos
como o rio” (v. 10). Dito de outra forma, o sujeito poético tem consciência
de que o que quer que façamos (ou não façamos) não vai ter qualquer influência
na nossa vida que, implacável e inexoravelmente, seguirá o seu curso em direção
à morte. Assim, dada a efemeridade da vida, ele justifica o desenlace das mãos
com a inutilidade do cansaço que esse gesto implica, isto é, as ligações, os
afetos e os compromissos não valem o esforço.
Esta filosofia de vida é clara e
consiste na abdicação voluntária e consciente face aos sentimentos e prazeres
da existência. Se o curso desta é irreversível e “passamos como o rio” (comparação ‑ v. 10), “não vale a pena cansarmo-nos” (v. 9) com sentimentos que perturbem
essa passagem. Estilisticamente, aquela é sugerida pela repetição da preposição
“sem” (vv. 12-13) e da conjunção
coordenativa copulativa “nem” (vv.
13-15), que concorrem para intensificar a ideia de recusa, introduzindo a
enumeração dos sentimentos e das ações que se rejeitam, em prol da
tranquilidade desejada.
Na quinta estrofe, o sujeito poético
«sugere» a Lídia que se amem tranquilamente (v. 17), ou seja, sem os excessos
decorrentes do envolvimento físico ou de sentimentos intensos. Note-se como
esta atitude de passividade e de quase indiferença é de caráter voluntário (“podíamos / se quiséssemos”), dado que
existe a possibilidade de um envolvimento físico e emocional intenso: “trocar beijos e abraços e carícias” (v.
18) – notar a enumeração e o polissíndeto ‑, e está dependente da sua vontade,
determinada pela constatação racional da inexorabilidade da vida. Por essa
razão, opta por uma existência caracterizada pela ataraxia, traduzida pelos
advérbios “tranquilamente” (v. 17) e “sossegadamente” (v. 23). Assim, o
sujeito poético e Lídia ficarão sentados, lado a lado, ouvindo e vendo correr o
rio, isto é, assistindo à passagem da vida, apenas como mais um elemento
natural, como as flores e o rio, enquanto “Pagãos
inocentes da decadência” (v. 24), metáfora que aponta para o paganismo de
Reis: dois pagãos despreocupados com a passagem do tempo, com o declínio e a
degeneração que aquela acarreta (“não
cremos em nada” – v. 23).
Ora, esta decisão do sujeito poético
tem como finalidade evitar as sensações extremas e as perturbações que
implicam. Por outro lado, trata-se de uma forma de integrar o curso regular e
inevitável do mundo (traços epicuristas). Além disso, é evidente a preocupação
com a aceitação das forças superiores do universo (os deuses, o fado), através
da adoção de um estado de apatia conseguido por meio da recusa das paixões e da
imitação da Natureza. Assim, conjugando os princípios epicuristas e estoicos, o
sujeito poético atinge o estado que permite não recear a morte, o destino, etc.
Ao longo das estrofes, a mensagem /
a lição moral do sujeito poético assenta no uso de frases de tipo imperativo
com os verbos no modo imperativo (“pega”)
e no presente do conjuntivo (“Desenlacemos”,
“Amemo-nos”) com a utilização de
advérbios de modo (“silenciosamente”,
“tranquilamente”, “sossegadamente”).
As duas estrofes finais constituem a
conclusão do poema, a justificação da recusa aos fugazes prazeres da vida: é a
única forma de evitar o sofrimento causado pela antevisão da morte. A ausência
de perturbação e de emoções fortes durante a vida evita o sofrimento quando chegar
a morte. No momento inevitável da separação, quando a morte chegar, o sofrimento
não será tão penoso. Neste contexto, o tempo verbal utilizado é o futuro (do
indicativo e do conjuntivo: “lembrar-te-ás”,
“terei”, “for”) que indicam factos posteriores ao momento da enunciação e
têm um efeito de antecipação.
O sujeito poético propõe a Lídia uma
relação tranquila, contida, sem envolvimento nem paixão, nem sequer emoção,
como única forma de evitar o sofrimento provocado pela separação que a morte de
um deles acarreta. Esse medo é tão grande que a morte não é nomeada senão
através de eufemismos (vv. 25 e 29).
Os eufemismos utilizados para referir
a morte contribuem para a sua apresentação como algo leve e natural que
corresponde ao curso indeclinável da Natureza e da vida. De acordo com os
princípios estoicos e epicuristas, a morte não trará sofrimento se a vivência
não fizer “sofrer” (v. 30).
Os seres humanos devem procurar uma
existência semelhante à dos elementos naturais. Assim, aceitando-se efémeros,
reconhecem-se nas “flores” (v. 21)
transitórias e no “rio” (vv. 1, 10,
15 e 20) que segue de forma irreversível o seu curso, tal como os humanos devem
aceitar o destino que lhes coube.
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